O COMEDOR DE CORAÇÕES
Amâncio adentra a casa e sente um cheiro forte de sangue vindo da parte de cima. O odor perturbador vinha da escada de uma maneira que assustava e ao mesmo tempo parecia convidá-lo a descobrir sua origem. Ele sobe as escadas correndo e abre de supetão a porta do quarto dos filhos e ver Adameu no chão banhado em sangue e com um buraco no peito no lugar do coração. Ele olha pra cama e ver Aristeu também ensanguentado e com o mesmo rombo no peito. Ele grita como se fosse um animal ferido. Ele pede explicações aos céus. Pergunta, esbraveja, clama por respostas, entretanto não as tem. Apenas o silêncio ecoante e espectral ali morava de forma absoluta. Num ímpeto ele carrega Adameu para a cama e o coloca próximo do corpo do irmão. Ele os queria juntos, assim como sempre estiveram nos seus 19 anos de vida. Durante toda a existência dos dois irmãos, jamais Amâncio conseguiu desarticular, desassociar, desvincular um do outro. Era assim também que sua doce Mabel via os dois, unidos, ligados, em sobreposição sempre, assim foram concebidos, gerados, nascidos e criados e por ironia do destino até mesmo na morte lá estavam eles inseparáveis de uma maneira quase sobrenatural. O que teria acontecido? Quem teria feito aquela barbaridade? Com certeza um monstro da pior espécie. As lágrimas vertiam dos olhos de Amâncio como fagulhas que lhe queimavam o rosto e faziam arder à boca onde as lágrimas se refugiavam. Um minuto para respirar com calma e então como num lampejo vem na cabeça de Amâncio a imagem de Salma. Onde estaria ela? Ele como louco sai correndo do quarto e vasculha todos os cômodos da casa e não encontra nada. Nenhum vestígio da mulher que o fizera esquecer por algum tempo o grande amor de sua vida: Mabel, a mãe dos gêmeos Adameu e Aristeu. Sem encontrar a atual esposa, Amâncio num momento de lucidez resolve ligar para a polícia e informar o homicídio dos seus únicos e amados filhos. Como seria sua vida agora sem os dois? Mabel quando morrera levara a metade do seu sentido da vida e agora com a morte dos gêmeos a outra metade tinha ido embora também. Sua vida estava condenada ao vazio de dias afio de solidão e clausura interior. Logo a polícia chega e encontra Amâncio catatônico sentado na cama ao lado dos cadáveres dos filhos. Chama-se a ambulância para Amâncio e o IML para recolher os corpos dos garotos. E assim durante uma semana Amâncio permanece mudo, paralisado e sem esboçar o menor gesto ou mudar o semblante da face. O delegado encarregado do caso estava ansioso para que o homem saísse daquele estado para que ele pudesse contar o que houve. Já que além da morte dos gêmeos, havia também o desaparecimento da modelo Salma Palas, que há pouco se tornara mulher do grande e renomado empresário da área tecnológica.  Ela já investigara a vida de Amâncio e não encontrara nada de anormal. Um cinquentão, bem sucedido no ramo da informática, um casado de mais de duas décadas com uma mulher bonita e de comportamento correto, uma renomada professora, ao qual o caminho fora interrompido bruscamente por um acidente de carro misterioso. Do casamento dois filhos, gêmeos, saudáveis e totalmente avessos às coisas ruins que cercam a vida dos jovens como drogas, álcool, cigarro e más companhias. Os gêmeos Adameu e Aristeu eram unidos ao extremo e alunos exemplares. A única coisa que parecia de diferente na rotina do viúvo de cinco anos era o casamento relâmpago numa viagem de férias com a jovem e bela modelo Salma Palas, que estava misteriosamente desaparecida. Após falar com o médico o delegado Delson Delgado vai embora, já que o médico lhe diz que o estado de Amâncio Alvarenga da Veiga não sofreu nenhuma alteração. Ele continuava na mesma situação. Informa ainda que já tinha feito alguns exames e que fisicamente ele estava bem. Sendo assim o problema envolvia exclusivamente o psicológico, que faz coisas incríveis quando sujeito a choques, traumas e qualquer perturbação incapaz de ser absorvida de maneira coerente ou que transgredisse aquilo que fosse mais valioso para o ego e o superego. Nessa noite, porém, Amâncio recebe uma visita inesperada e que surge no ar como num passe de mágico. Era uma figura, um ser, uma coisa sem forma definida e quando a criatura encara os olhos de Amâncio, ele sente um calafrio na espinha, um arrepio no corpo, um zumbido no ouvido, um palpitar forte do coração, um rasgo na alma e então ele grita. Um grito abafado que parecia não ser ouvido por ninguém, ele tenta se levantar e não consegue. Estava irremediavelmente preso naquela cama e então num segundo ele sente os olhos flamejantes da criatura fixar nos seus de uma forma horripilante. E lá dentro da sua cabeça ele ouve um voz grave e tenebrosa que diz:
- Amâncio... vim te agradecer e te levar para rever alguém que você ama muito e que aparentemente está morta...
- De quem fala? De Salma? Quem é você... e o que quer de mim?
- Eu sou o comedor de corações e que você conheceu como Salma Palas. Mas não de corações quaisquer. Corações irmãos, corações predestinados a se completarem, corações de almas gêmeas. Como os de seus filhos Aristeu e Adameu. As pessoas tem uma ideia errônea sobre alma gêmea, pensam que são apenas aquelas ligadas por o amor carnal puro e simples. Não obstante, almas gêmeas, é bem mais que isso, é o amor genuíno e na sua forma mais perfeita. E elas podem vir tanto nessa forma de amor carnal, que é a forma mais apreciada e desejada pelos humanos, como pode vir em formas diferentes como dois irmãos, pai e filhos, amigos, mãe e filhos e no seu caso especificamente existia você e Mabel e Aristeu e Adameu. Quatro almas gêmeas tão próximas e na mesma família. Dei um jeito de sumir com Mabel forjando sua morte e em seguida na forma de Salma Palas, eu me aproximei de você e cheguei aos meninos. E agora vou te levar até Mabel e concluir outra etapa para viver eternamente. Numa fração de milésimos de segundo Amâncio está num lugar estranho. Pelo aspecto parecia uma caverna, totalmente inóspita e mal iluminada por algumas velas. Amâncio sentia o corpo dormente. Por instantes ele vislumbra num canto amarrada por correntes e com cortes nas duas pernas sua amada esposa Mabel. Ela parecia debilitada pelo semblante pálido e inerte que exibia, além de olheiras, dos cabelos desgrenhados, do aspecto sujo e das roupas meio rasgadas e gastas. Lágrimas descem dos olhos de Amâncio e ele não sabe como contará a esposa sobre os filhos e sobre o seu casamento. Como ela reagiria? Ele se perguntava com insistência no seu íntimo. Nisso a criatura o leva até próximo da esposa e fala com uma voz desconexa e horripilante.
- Agora vou deixá-los a sós por alguns poucos minutos. É um presente pelo que já me deram e pelo que ainda vão me dar.
- Quem é você? Porque está fazendo isso conosco, finalmente Amâncio consegue falar.
- Podem me chamar de Yorgos – a criatura que enganou a finitude mortal – e isso graças ao LIGSU (Livro dos Grandes Segredos Universais). Esse instante concedido a vocês é um presente, aproveitem bem e antes aviso que é impossível fugir daqui e que odiaria ter que usar meus poderes sobrenaturais de forma, digamos, não usual.
Mal pisca os olhos e a criatura desparece. Amâncio descobre que está acorrentado também e então ele aproxima-se da esposa que de imediato não o reconhece e o agride com empurrões, arranhões e pontapés. Ele a agarra com força e a beija então Mabel reconhece o beijo do homem que amou durante toda a sua vida. Ela fala o  nome de Amâncio e começa a rir descontroladamente. Parecia fora de si, parecia ter perdido a sanidade e não ser a mesma pessoa de antes. Ofegante ela se aconchega ao corpo do marido e o abraça e o olhar perdido que exibe faz Amâncio ter a certeza que algo tinha acontecido à esposa. O homem fica descontrolado rememora as palavras da criatura, que só poderia ser um demônio e lembra que o mesmo revelara o motivo das mortes dos filhos, o que fizera com Mabel e quem de fato era. Ali naquele momento Amâncio percebe que não se trata de um pesadelo. Tudo é real, por mais absurdo que pareça. Fazia quase um ano que Mabel fora dada como morta, após desaparecer sem deixar pista ao fazer uma curva perigosa e cair num precipício. Durante semanas os mergulhadores tentaram encontrar o corpo sem sucesso, apenas conseguiram localizar os destroços do carro no fundo do mar. E esse tempo todo ela devia ter sofrido coisas horríveis nas mãos do demônio. Ciente do que ia acontecer e ouvindo na mente o que o estaria reservado aos dois e o que isso representava. Amâncio coloca as mãos no pescoço de Mabel e mesmo tendo suas carnes e emoções dilaceradas ele a sufoca até a morte. Em seguida ele tira a camisa enrola a mesma várias vezes e a envolve em volta do pescoço e aperta com todas as forças que seu corpo é capaz. No último fragmento de lucidez ele sente a vida se esvair e num apelo desesperado aos céus ele vê num fiapo de luz ao longe: Adameu, Aristeu e Mabel acenando para ele. Amâncio morre, tendo a certeza que o encanto que o ser maligno tanto queria não daria certo já que ele precisava matar ele e a esposa juntos para que a magia das almas gêmeas fizesse efeito. De alguma forma ele conseguiu salvar a esposa, os filhos e a si mesmo. E agora reunidos no pós-morte viveriam juntos e felizes para todo o sempre longe de toda maldade tanto da criatura quanto do mundo.

ZARONDY, Zaymond [et al]. Contos de Terror -1ª. ed. - São Paulo: Grupo Editorial Beco dos Poetas & Escritores, 2017.
Autores Diversos. ISBN 978-85-5610-009-2

ZARONDY, Zaymond. VIZZÕES. São Paulo: Grupo Beco dos Poetas & Escritorees Ltda., 2017.
ISBN 978-85-5610-013-9
Zaymond Zarondy
Enviado por Zaymond Zarondy em 24/07/2011
Reeditado em 22/02/2019
Código do texto: T3115422
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