MEMÓRIAS DE UM SOFÁ

Tudo começou há alguns anos atrás...Estava lindo,novo em folha.Minhas cores, como na paleta de um artista plástico, alternavam de um tom pastel ,até um leve mostarda, finalizando num marrom café. Combinei perfeitamente com o espírito rústico do local, chão de tábua corrida,mesa colonial ,prateleiras de mogno .Sim ,definitivamente estava no lugar certo,de frente para a tv,ao lado de um cd player.Após o almoço era infalível ,sempre havia alguem se atirando sobre minhas almofadas para uma sonequinha...e quantos sonos embalei.Lembro da pequenina de pernas roliças ,com seus passinhos correndo pela casa.Estendia os bracinhos em minha direção,primeiro uma perna ,depois a outra e ...ufa ,sorria triunfante como quem acabara de escalar o Everest.Sempre gostei de aconchega-la durante seus programas favoritos , enquanto devorava com avidez pacotes de biscoito recheado.Até que um belo dia ...após um toque da campainha,eis que surge meu principal desafeto.Era uma bolinha preta e felpuda ,correndo e rodopiando pela casa .Parou próximo a uma das minhas pernas e..."espera aí meu chapa,isso não ,isso não,ISSO NÃO"implorei. Tarde demais ...senti o líquido quente escorrendo e gotejando sobre o piso encerado de madeira. " SPOT" alguém gritou..."cachorro feio ,vai ficar preso" e lá se ia ele com o rabo entre as pernas ,em busca de um esconderijo seguro.

De onde estava podia observar pela janela ,as folhas das árvores amarelando no outono,as manhãs de céu azul do inverno, os passarinhos e seus ninhos na primavera e sentir o calor escaldante dos dias de Dezembro .A bolinha felpuda "ARG" ...cresceu e se transformou num novelo imenso... Agora , corria pela casa ,saltava com agilidade e... " EM CIMA DAS ALMOFADAS NÃO!" e lá estava eu ensopado e fedido . O pior era encarar a rotina do esfrega -esfrega nos dias de faxina , "MALDITO VIRALATA".

A pequerrucha tambem se transformara e as gotas de leite da mamadeira que frequentemente respingavam em mim foram substituidas por nódoas de refrigerante e migalhas de batata frita.Ainda assim gostava quando se espixava sobre mim e passava horas no telefone. Adorava ouvir suas gargalhadas e durante muitos anos fui seu principal confidente quando então enterrava o rosto entre minhas almofadas para que secasse suas lágrimas. "EI MEU CHAPA VAI TIRANDO A MÃO BOBA DAÍ" quando um certo cabeludo cismava em passar as tardes de Domingo refastelado sobre mim...Eu sempre dava um jeito de fazer com que ele fosse escorregando de mansinho pelas almofadas até cair no chão.

Nas noites de lua cheia e céu estrelado gostava de sentir o cheiro amadeirado do incenso de sândalo que anunciava um ritual de mantras e meditações . Mechas de um cabelo dourado vinham repousar sobre lenços de cores vibrantes displicentemente jogados sobre mim ,com os primeiros raios da manhã. Sentia o toque quente do seu corpo jovem sobre meu tecido ,moldando minhas almofadas com suas formas exuberantes.

Hoje ,só me restam lembranças.A minha pequena foi-se com o cabeludo

para algum outro sofá longe daqui...O novelo de cor negra já exibe vários fios grisalhos.Suas pernas já não são tão ágeis ...não consegue mais subir... Uma névoa branca recobre seus olhos que já não mais me enxergam e seu latido, fraco e rouco, quase não se faz mais presente.

Estou velho e roto ,minhas almofadas sem botões,meus braços desbotados pelo tempo. Ouço a campainha tocar ...é o interfone Lembro do dia da chegada da bolinha felpuda .Olho para a porta que se abre e eis que ...lá está ele ... novo . Um modelo arrojado ,de linhas modernas. Não tem a beleza rústica e nem o cheiro da madeira mas de certo tem as modernidades que enchem os olhos de qualquer consumidor. Me sinto humilhado quando vejo suas almofadas retráteis e o brilho acetinado do suede verde musgo. Vejo dois homens fortes se aproximarem e sinto um sacolejo . "NÃO ,POR FAVOR ,ME DEIXEM AQUI...COM A MINHA DIGNIDADE " e quando percebi meus braços ,desmontados estavam no chão. " NÃO VÊM QUANTAS NOITES ESSES BRAÇOS EMBALARAM A MINHA PEQUERRUCHA ?" Mais um sacolejo e dessa vez vi-me sem meus pés ..." NÃO PERCEBEM QUANTA HISTÓRIA TRAGO ENTRANHADA NAS MINHAS ALMOFADAS ?" Uma batida maior do martelo e já não tinha mais encosto ... " NÃO MOÇO ,CUIDADO,BEM AÍ ONDE ESTÁ MARTELANDO, AINDA GUARDO AS MARCAS DO PRIMEIRO BATOM DA MINHA PEQUENA , É ESSA MARQUINHA ROSA ,ATRÁS DAS ALMOFADAS , ENTRE A NÓDOA DE COCA-COLA E O RABISCO AMARELO DA CANETINHA "e num último apelo ,esquartejado ali como estava implorei " "POSSO FICAR NUM CANTINHO ...DO QUARTO DE EMPREGADA...PRÁ NÃO ENVERGONHAR NINGUÉM " ... Mas não houve jeito ...

Hoje ,convivo com outros iguais a mim. Cobriram-me com um lençol branco para esconder as marcas do tempo e me colocaram entre uma mesinha no estilo Luís XV e um velho relógio cuco... mas não perco a esperança de um dia voltar a fazer parte de uma nova família e assim poder lhes contar uma nova história ...

(Dedico esse texto ao meu grande amigo Beto Zózimo que assim como eu acha que na vida nada é descartável e que móveis e objetos sempre têm uma história prá contar ... )

Andréa Duarte
Enviado por Andréa Duarte em 05/08/2011
Reeditado em 15/08/2011
Código do texto: T3140307
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