O inferno de Perséfone

João puxou lentamente o lençol que cobria o corpo da mulher Perséfone, deixando cair na beirada da cama, onde já estava de joelhos seguindo em direção ao macio pescoço dela que dormia. A mulher passou os dedos do pescoço ao ombro quando o vapor quente do hálito dele encontrou sua pele, que eriçava pela falta do tecido que a protegia do frescor da noite. A outra mão entregava-se a deliciosa suavidade do despertar. No momento preciso em que seu esposo colava os dentes em sua jugular, seus pés esticavam-se na contorção do corpo abandonando a pose de concha para estar reta na cama. Suavemente os olhos abriram, e o susto a fez ergue-se com ímpeto:

— Não. João Não.

Em seguida foi impedida de erguer-se e acender a luz, por ele. Os olhos de João inertes em sua direção aumentavam seu pavor. Não possuía a plena certeza de como conduzir, mais aquela crise de identidade do marido.

— O que você quer Rachel?

Quando foi sua vez de falar, João fechou os olhos e respirou fundo. Ela desviou o olhar e conseguiu visualizar o titulo do livro posto sobre o criado mudo: O Vampiro Rei.

— O que você quer Rachel? — a pergunta soou seca e agressiva.

— Não sou Rachel. Sou a Solrun — Decidiu entrar na onda imaginaria do marido, mas alterando as regras. Trazendo-o conforme a orientação do psiquiatra á lembrança de um livro que ambos tenham conhecimento, e que ela o possa conduzir.

— Solrun? — repetiu com lagrimas no olhar suave que se formava.

Assim que João se acalmou, Perséfone correu em direção ao interruptor e ligou a luz. O olhar ofuscou e foi forçado a fechá-lo rapidamente. Estava exausto pela força mental que o mantinha preso a ilusão, mas ainda não possuía a certeza se diante de si estava Solrun ou Perséfone. Naquele momento, era como se sua mente não se importasse em dissipar a ficção e trazê-lo de volta a realidade, e Perséfone sabia que teria de conduzi-lo para ela. Como outras vezes o fez, e que talvez houvesse de fazer por toda a vida.

— Espanhola, espanhola — pronunciou a forma carinhosa que chamava a esposa, com as mãos ainda coladas nos olhos. — Eu fiz de novo?

Perséfone abraçou sua cabeça entre os seios. — Você entrou em mais um livro, meu amor. — respondeu entregando-se em seus pensamentos. O medo já havia saído dela, mas a preocupação a dominava a partir de então.

Retornou para seu lugar na cama, João rapidamente pegou no sono. Preocupou-se ainda em esconder o livro que ele lia. Com o olhar pesado, mirando o homem que amava dormindo tranquilamente, disse, quase em sussurro:

— Meu viajante sonhador. Quando vai ser só o João? O meu João.

Apesar de surpreender-se sempre com a facilidade que o companheiro possui para incorporar o personagem que se identifica em um romance, Perséfone nutria a esperança de que um dia ele não mais seria enganado por sua própria mente:

— Perséfone?

Olhou-o compadecida, como se o marido compreendesse seus pensamentos. Ainda sonolento ele se sentou, apoiando o tronco na cabeceira da cama. Pesadas lagrimas fugiam de seu olhar. Ela sorriu, porque sabia que quem estava diante dela era o seu amado:

— Me perdoa amor. Me desculpa por minha mente nos enganar? — insistiu.

A mulher segurou a mão do esposo com delicadeza, puxou-o para seu colo e afundou os dedos em seus cabelos loiros. Passaram o restante da madruga relembrando outros momentos e personagens a que ele fixou em sua realidade. Até que João teve a curiosidade de questionar a forma que ela o trouxe de volta:

— Me passei por Solrun.

— Do “Castelo nos Pirineus”?

— É. Qual o nome do autor? Neozelandês ele?

— Não. Da Noruega, “Jostein Gaarder”.

— Qual o livro que estava lendo?

— O “Vampiro Rei” do brasileiro “André Vianco”. — olhou-a com pesar — Estava te confundindo com a Rachel?

— Isso. Quem é ela?

— A inimiga do Cantarzo, o vampiro Rei.

Sem mais nada a dizer, Perséfone foi até o guarda-roupa para pegar uma manta. O frio do amanhecer crescerá. João olhando-a de costas, vestida em camisola rosa. Sentiu a cama tremer e se viu com dezessete anos. Diante dele não estava mais Perséfone, mas Madame Clessi. O sangue fresco e abundante escorria pelo corpo dela de pé diante dele. Perséfone falava ainda animosamente com o marido, mas ele apenas compreendia gemidos, cada vez mais estridentes que mostravam a ele que a morte não viria á ela e que seria assombrado por sua amante por muito tempo:

— João?

— Não Clessi. Por favor, vá embora. Eu não quis te enfiar a tesoura, mas você reagiu. Eu só queria dinheiro. — correu até a penteadeira e tirou habilmente a tesoura de dentro da primeira gaveta. Apontou para ela. — Se não for embora eu faço de novo.

Perséfone pensou em correr, mas temia que fosse atrás dela e a apunhalasse pelas costas. Fez novamente uso da tática:

— Não sou Clessi. Sou Nelson.

— Nelson. — continuou ele sem compreender. — Que Nelson?

— O autor.

— Nelson Rodrigues?

— Sim. Agora me diz que peça é essa, João? — novamente havia dado certo. João estava de volta, mas até quando?

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Dr. Pavanelli desejava não atender o paciente João e sua esposa. Já os recebia por três vezes consecutivas, e não via alternativa, somente a internação. Não sabia mais como persuadir a esposa para seguir um tratamento com observação constante. Além das informações da esposa com os relatos das crises, não tinha nenhuma outra prova de que João possuía patologia psíquica. Os exames não mostravam alteração. As seções de analise só revelavam que ela era um leitor voraz de todo tipo de leitura. Apenas um apaixonado por literatura. Simples leitor voraz. Chegou a crer que a esposa que poderia possuir alguma patologia. Com a firme decisão de dar um basta as constantes visitas do simpático esposo e da neurótica mulher, os recebeu:

— Senhora Perséfone, espero ser mais claro desta vez. Seu esposo não apresenta nenhuma patologia psíquica. Não podemos continuar com isso. Como lhe disse anteriormente o que posso fazer e interná-lo por um período para analisarmos de perto.

— O senhor não me ouviu? — explodiu a mulher, João beijou-a na testa e saiu com a desculpa de ir ao banheiro. — na noite passada ele quase me mordeu no pescoço achando que era um vampiro. Também tentou me matar com uma tesoura. — o desespero infiltrava-se nos olhos dela.

— Mas ele não apresenta nada, por isso que lhe digo que precisamos analisá-lo de perto.

— Não quero interná-lo. Eu sei que isso vai passar.

— Mas é a única alternativa que vejo.

— Não consigo compreender. Pagamos uma fortuna por estas consultas e o senhor não é capaz de fazer o seu trabalho. — estava irritada e tornava-se agressiva — porque não diga logo de uma vez que não possui capacidade para achar uma solução ao problema do meu marido. Afinal o senhor comprou seu diploma, é isso?

— Basta. — gritou o psiquiatra. — Não vou admitir que a senhora me insulte desta maneira. O seu marido não possui nada!

— Claro que o senhor ira dizer que não possui nada. Seus exames observaram o físico dele. Ele não possui nada físico, o problema dele é na mente. Não há uma forma de examinar sua mente?

— Com todo o respeito Senhora Perséfone, quem apresenta aqui um distúrbio é você. Estou fielmente crente que você precise de tratamento. E, se quiser provar que seu marido está psicologicamente desequilibrado me de uma prova real.

Mesmo com o sentimento de raiva que estava acometido, Dr. Pavanelli sentou-se aliviado em sua poltrona quando a mulher saiu de seu consultório batendo a porta. Foram pouco minutos de tranquilidade até a mulher romper a sala antes que chamasse pelo próximo paciente:

— João desapareceu. — berrou da porta com o rosto encharcado de lagrimas — por favor. — suplicou ao médico.

João diante do espelho sobre a pia no banheiro vislumbrou seu rosto branco escurecer. Os cabelos lisos encaracolar-se e perderem o brilho dourado que possuíam. Desta vez era um dalit, um intocável Indiano. João incorporará o personagem do livro “Na pele de um Dalit” de Marc Boulet. Sentia sobre o corpo um pano sujo de terra e rasgado. Dormia na rua e comia o que encontrava em um monte de lixo. Aos olhos desconhecedores da história de João, era apenas um mendigo qualquer que caiu na desgraça de se perder na loucura de viver na rua.

Foram dois anos de angustia a Perséfone. Noites mal dormidas e a soluçante esperança de que um dia ele voltaria. Que seu viajante sonhador entrasse pela porta e pedisse desculpas por se perder em sua mente. Mas ele não voltava. Certa vez antes de a noite chegar trazendo escuridão para mais um dia sem ele, saiu caminhando com uma amiga sem destino certo. Conversavam, mas na verdade nada ouvia. Foi quando parou diante de um morador de rua, pousou suave a mão nele:

— Pelo amor de Deus, Perséfone, o que esta fazendo?

— Vendo se está morto. — não chorou como imaginou que faria quando o encontrasse, ao contrário, sorriu.

— Você não esta pensando que este homem é o João? — limitou-se apenas a balançar positivamente a cabeça e a abraçar o homem moribundo — Mas ele não é loiro. Olhe com atenção é outro homem, minha amiga — Regina estava incrédula e assustada com a atitude da amiga.

O homem abriu os olhos, mexeu-se diminuto. Fixou seu olhar na mulher que o abraçava:

— Espanhola, espanhola — pronunciou a forma carinhosa que chamava a esposa. — Eu fiz de novo?

— Meu viajante sonhador. — Disse acariciando-lhe os cabelos que voltaram a ser de João.