MEMÓRIAS DE UM ALFABETO

Sou filha de um alfabeto tradicional, minúscula letra no meio de tantas,resolvi contar a minha história de superação.Poucos sabem ,mas a nossa formação é muito rígida ...Dentro de um alfabeto tradicional ,o sonho de toda minúscula é se tornar uma linda maiúscula e fazer parte do receituário de um grande médico ou de um grande advogado...Mas eu queria algo mais... Sonhava em viajar nas páginas das fábulas infantis,

arrancar suspiros nos sonetos de amor , grafar histórias surreais e sabia que era boa nisso...como um dom...só precisava acreditar. Convivia com letras de todos os tipos e formatos...As mais rebuscadas,elegantes e

desenhadas ,nas mãos dos calígrafos, viravam lindas frases nos convites de formatura ,bodas e casamento. Eram letras mais elitizadas e esnobes... Outras faziam intercâmbio em alfabetos de outras nacionalidades e conheciam o mundo inteiro... Uma letra conhecida

minha se encantou com o alfabeto japonês e...nunca mais voltou.Sempre éramos alertadas para os perigos da internet , letras que eram"comidas" e desapareciam misteriosamente nas abreviações das páginas da web e sites de relacionamento . Havia também as gangs de letras que frequentemente eram usadas em pixações . Quando penso em quantas estátuas e paredes foram imaculadas

por essas letras inescrupulosas...tenho vontade de ... de ...me apagar de vergonha. As aventureiras também eram temidas...não podiam ver um para choque de caminhão que já pulavam todas espevitadas ,

se oferecendo...biscateiras ,isso sim! Só queriam ficar no bem bom

rodando pelas estradas ,algumas até eram chamadas prá fazer parte de uns letreiros luminosos...puro exibicionismo.

No alfabeto onde me criei ,a tradição era que frequentássemos os livros de medicina para que fôssemos nos familiarizando com as expressões e termos médicos.Depois de um estágio pelos compêndios de Anatomia,Medicina Interna,Fisiologia e Farmacologia estávamos aptas a fazer parte de qualquer receituário médico.Eu me esforçava,para não decepcionar minhas companheiras de alfabeto ,mas na hora de fazer a minha parte na grafia de palavras e frases ,simplesmente me isolava,sem querer dar a mão a nenhuma delas.Cá entre nós, me dediquei para ser uma letra esteticamente aceitável , legível e na hora dos finalmente ,esses médicos me entortam dali e daqui para escreverem palavras que nem mesmo eles conseguem ler...Qual é a graça de ser uma letra que ninguém consegue decifrar? Foi aí que comecei a minha rebelião...Tentei convencer as outras letras ,a fazer greve e não mais emprestar o seu formato à esses receituários antilinguísticos. Mas nem todas concordavam e lá se iam elas para o sacrifício.Quantas vezes o i não perdeu o seu pingo? E o traço do T ,

pobre letra perdida sem identidade...Um belo dia resolvi grafar um receituário diferente. Era uma dermatologista simpática que havia confeccionado um receituário na cor salmão com uma marca d'água de

fundo.Comecei a observar que no movimento das suas mãos as palavras iam adquirindo um formato arredondado e acreditem vocês,

L-E-G-Í-V-E-I-S . Frequentemente lhe diziam : - A letra da senhora nem parece letra de médico ,doutora . E ela simplesmente agradecia e sorria. Passei a colaborar e a não mais "travar" na hora das receitas.Gostava de assumir os formatos que ela me emprestava e passei a fazer parte do nome de várias medicações que ela prescrevia.

Numa dessas tardes de atendimento ,enquanto esperava por um paciente atrasado ,começou a rabiscar o receituário...dei a mão às outras letras e começamos a fazer parte de palavras que não eram os nomes costumeiros que grafávamos...Não seguíamos mais aquele trajeto linear das receitas tão ...monótono. Formávamos palavras ,em frases que se intercalavam . Quatro frases... um espaço...quatro frases

um espaço. Comecei a perceber que conhecia aquele formato ... E as

palavras eram...lindas ...sonoras...rimadas. Mal pude acreditar ! Sim, estava grafando um soneto ,daqueles que sempre quis fazer...e logo

pelas mãos de quem nunca poderia imaginar... Vejam só ,uma médica que escreve ...poemas. Passei a trabalhar mais ... nos receituários do consultório e nas folhas em branco da sua casa. Horas a fio ,muitas vezes durante as madrugadas ,enquanto os outros alfabetos descansavam,nós grafávamos sem parar ... E quando ela colocava o ponto final ,estávamos esgotadas mas felizes,sabendo que definitivamente havíamos encontrado o nosso lugar.

( Alguém um dia me disse : " Sempre soube que sua letra era bonita demais para se restringir ao universo do seu receituário " Dedico esse conto à minha prima e incentivadora Neide Duarte ,autora de uma coleção fantástica de livros infanto juvenis e que com a sua arte,me ensinou que se cada um fizer a sua parte ,o mundo pode ser mais colorido e um lugar melhor prá se viver )

Andréa Duarte
Enviado por Andréa Duarte em 31/08/2011
Código do texto: T3193823
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