Papelão

Já estava escuro. Algumas estrelas lutavam com as luzes da cidade para aparecerem e eram humilhantemente derrotadas. Mesmo no escuro, ela puxava seu carrinho, carregando o resultado de um dia de trabalho. Sobre o carrinho havia uma pilha desumana de papelão, latinhas, garrafas de refrigerante, plásticos e qualquer coisa que havia sido dispensada por alguém, mas que ainda pudesse ser vendida como sucata ou como material para reciclagem. Ela passaria só em mais um lugar para coletar mais alguma preciosidade e declararia o fim de mais um dia de trabalho. Quem a via na rua, talvez não reconhecesse que se tratava de uma mulher. Andava em farrapos, um pano encardido ao redor do rosto, botas velhas protegendo seus pés e pernas até os joelhos, luvas grossas que transformavam suas mãos de mulher em mãos de monstro. Ainda assim, conservava os olhos verdes e os lábios bem desenhados que paradoxalmente denunciavam sua feminilidade.

Algumas pessoas insistiam em caçoar e importuná-la, como se o trabalho de catar lixo já não fosse penoso o bastante. Quando faziam isso no início do dia, ela simplesmente ignorava. Continuava empurrando seu carrinho. Mas, a medida que o dia avançava e seu cansaço aumentava e sua paciência era consumida, algumas respostas começavam a surgir. No fim do dia, saiam até alguns palavrões. Aquele dia, que estava quase no fim, havia sido anormalmente calmo. No entanto, o pior ainda estava por vir. O último lugar era decisivo. Poderia ser um desastre, o mais perigoso, mal-cheiroso e pestilento ou o mais maravilhoso e lucrativo. Esperançosa, a mulher do carrinho continuou pela rua. Vez ou outra parava para verificar os montes de lixos nas portas das casas. Afinal de contas, havia lixo por toda parte. As pessoas logo se acostumaram com aquela imundice e fizeram de suas vidas um chafurdar e lambuzar-se de restos e vergonha. Quando encontrava algo aproveitável, organizava a coisa entre todas as outras que já estavam no carrinho. Havia uma ordem inacreditável naquele monte gigante, mas ninguém seria capaz de compreendê-la.

Depois de caminhar e revirar o lixo de uma dezena de casas, a mulher avistou o enorme parque de lixo. Houve uma época em que esses lixões ficavam em áreas distantes e monitoradas para preservar as pessoas e o mundo. Mas esse tipo de preocupação acabou desaparecendo e os antigos parques florestais e praças tornaram-se depósitos de lixo. Entre todas as barbaridades inacreditáveis que pudessem existir aquele parque era a mais assustadora. O lixo não havia apenas se acumulado, mas se transformado em uma floresta podre. Nas proximidades do parque, já se encontravam os habituais moradores do lixo. Em primeiro lugar, as baratas enormes que não se escondiam como os insetos normais. Essas se exibiam, como se desfilassem, e eram milhares e estavam por toda parte. Em segundo lugar, havia os ratos e ratazanas. Esses eram ainda piores, porque não se contentavam em se alimentar dos restos, mas impediam que qualquer um se aproximasse de seus territórios. Em terceiro lugar, os cachorros e gatos imundos. Esses pareciam estar mortos, tamanha a sujeira e a decadência de seus corpos. Pareciam seres de ossos, cobertos apenas por pelos pastosos, salpicados pelos restos pegajosos que, aos poucos, tornavam-se parte de seus próprios corpos. Por fim, havia as criaturas que se perderam e nem mesmo era possível saber o que haviam sido antes da sujeira.

Então, vencendo as baratas e ratos e tudo o que apareceu pelo percurso, ela chegou aos antigos portões do parque florestal. Havia uma lua amarela no céu sob uma nuvem de fuligem. Havia também um silêncio e no fundo dele um barulho de algo se remoendo, como se algo estivesse mastigando o mundo. Ela parou o carrinho da melhor maneira que pôde, pegou um grande saco plástico e entrou. Alguns dos postes do antigo parque impressionantemente ainda funcionavam e agora iluminavam o lixo e seduziam uma infinidade de moscas gordas e verdes. Havia algo naquele lugar, havia algo assustador ali. Não era o lixo, porque ele, ela conhecia bem, não eram os vermes brancos e rastejantes, nem o cheiro nauseabundo, nem a podridão. Havia algo que a assustava, mas a atraía. Ela caminhou sobre os restos de comida e entre eles catou uma ou outra coisa que lhe serviria. Inspecionou as árvores de roupas rasgadas, arames enferrujados e eletrodomésticos estragados, vez ou outra algo lhe servia. Aos poucos, submergiu no que o lixo poderia lhe oferecer. Ela teve que enfrentar um bando de ratos ferozes para catar três latinhas de cerveja e, se não fosse sua luva, teriam lhe custado um dedo. Teve que mergulhar até a cintura em uma gosma indecifrável para catar um par de garrafas de refrigerante. Recolhia o que lhe interessava, mas alguns artigos lhe atraíam mais. Demorava-se avaliando a integridade de papéis, jornais, livros e revistas. Levava apenas os que não estavam sujos demais. Então avistou uma enorme pilha de lixo e no topo dela um saco de presentes, talvez fosse coisa do papai Noel. Na verdade, não eram presentes, mas lixo, naturalmente. Entretanto, para ela, pareciam presentes. Estavam dentro de um saco transparente e brilhavam encantadoramente. Havia latinhas, garrafas, toda sorte de papéis, fios velhos, garrafas de vidro. Ela precisava daquilo e iria para casa.

Corajosamente, ela subiu na pilha de lixo, contornando-a como se estivesse subindo uma montanha ou uma torre ou um castelo. Ela girava, guiada por seus passos ligeiros que percorriam uma passarela em espiral de lixo e sobras. Quando estava próxima do topo, a montanha estremeceu. O saco de presentes cambaleou e vagarosamente escorregou. Ela pôde ver quando o saco pendeu e caiu do outro lado da montanha, antes de ela mesma escorregar. A montanha sacolejou, então alguma coisa sob o lixo se levantou. Era um rato gigante ou uma barata gigantesca. A lua não deixou que ela visse. Os olhos pestilentos encararam-na bem de perto. Tinha o hálito de restos de comida e o que devia ser seu corpo era apenas lixo. Depois de se encararem, ela correu desesperadamente, deixando tudo para trás. Um sem-número de baratas dispararam atrás dela. As baratas saiam de toda parte, como se quisessem impedi-la de fugir. Por fim, conseguiu escapar. Do portão, ela olhou mais uma vez para a montanha de lixo, alguma coisa respirava calmamente sob ela e equilibrava o saco de presentes sobre a cabeça. Então, chateada, porque havia deixado até mesmo o saco de lixo que já havia catado para trás, ela guiou o carrinho para a rua dos compradores. Enquanto empurrava e empurrava, pensava em uma desculpa, porque tinha quase certeza que entre todo o lixo do carrinho não havia nada que servisse para algo mais além de vender, ela precisava levar algo para casa, ela prometera. Antes de dobrar a esquina para a rua dos compradores, verificou o carrinho mais uma vez. Separou algumas coisas, mas nenhuma serviria, estavam sujas, rasgadas e incompletas. Precisaria de uma desculpa.

Então, ela foi de comprador em comprador. Um só comprava vidro, o outro alumínio, o outro plástico, o outro ferro, por fim, o que comprava papel. Em cada um ela descarregou o tipo de lixo que lhe interessava. O comprador pesava meticulosamente e depois pagava uma miséria pelo lixo. Mesmo sabendo que era pouco, ela ficava satisfeita. No comprador de papel, ela dividiu os papéis em dois: um saco enorme e um embrulho menorzinho. Então, ela entregou o saco maior ao comprador. Ele pesou, calculou e lhe deu algum dinheiro, apenas algumas moedas. Então ele apontou pro embrulho. "Aqueles ali você não vai vender?" "Não, não, esses são meus." Depois disso, ela seguiu puxando seu carrinho.

O caminho para casa não era longo. Ela passou o tempo todo imaginando como explicaria suas mãos vazias. Estava feliz por voltar pra casa, mas chateada porque não gostava de decepcionar ninguém. Quando se aproximou da vila, algumas crianças já vieram correndo. Todos perguntando o que ela havia trazido. Assim, se esquivando das perguntas, ela cruzou a rua ladeada por barracos, passou pelos cachorros sem dono até encontrar sua própria casa de papelão. No caminho, as crianças lhe perguntaram se seria mais uma história do boneco de sucata que vira menino ou da menina que seguia a estrada amarela para chegar ao grande lixão. Ela ficara calada, como se quisesse aumentar o mistério. Por fim, ela estacionou o carrinho e disse que voltava em um minuto. Ela verificou o embrulho mais uma vez, ainda tinha esperança de que houvesse alguma história ali. Mas não havia nada, nem mesmo uma meia história que pudesse servir. Ela respirou fundo. Tirou as luvas, as botas e respirou mais uma vez. Então, ela saiu. Dessa vez, sem nenhum resto de livro nas mãos. As crianças já estavam sentadas e esperavam. Quase todos reclamaram ao vê-la com as mãos vazias. "Hoje, não tem nada para nós", alguém disse.

Ela se sentou calmamente. Seus olhos brilhavam, como se todo o cansaço daquele dia tivesse desaparecido e contou a história de uma destemida cavaleira que enfrentara um dragão poderoso que vivia na sombria floresta silenciosa, para resgatar a felicidade que ela havia perdido, mas que nunca desistira de procurar.