O Orfanato - Parte I

Há coisas nesse mundo, coisas mais antigas que os homens, coisas que já habitaram a terra, mas que foram banidas, seja para os confins do purgatório, seja para o mais profundo dos infernos. Mas algumas vezes essas coisas escapam, e outras, esquecidas por Deus e pelo diabo, vagam por entre nós. São as criaturas da noite. Vampiros, lobisomens, bruxas, monstros, demônios... Parece que toda lenda antiga foi inspirada em algum ser, alguma criatura que viveu ou ainda vive em algum canto deserto, sombrio e escuro desse mundo.

A Idade das Trevas foi um período turbulento, em que essas coisas começaram a se multiplicar e a agir em conjunto. Queriam reinar novamente em seu reino de sombras, como fora no princípio, antes do surgimento da luz. Felizmente, havia seres humanos dispostos a inverter a cadeia alimentar, dispostos a caçar os predadores e a dar suas vidas pela de completos desconhecidos.

É verdade que a Igreja usou-se do medo para ampliar seus domínios e perseguir seus opositores, incriminando-os de bruxaria e levando-os às chamas insaciáveis da Inquisição. Mas o seu papel foi de vital importância para que as trevas não triunfassem. Por causa de lugares como aqueles, de escolas como aquelas. Por causa do Orfanato.

Os meninos que estavam ali não nasceram órfãos, foram feitos assim. Separados de seus pais à força ou com consentimento, raras vezes filhos de pais mortos realmente, em algumas circunstâncias, filhos de pais mortos pelas forças das trevas.

Lá eles eram alimentados, doutrinados e treinados para servir à Deus, para atender aos seus desígnios, e, principalmente, para serem seus capatazes.

Ernest Chopenhauger, fora uma dessas crianças, agora, aos seus vinte e tantos anos se tornara o melhor caçador do Orfanato. Frio, eficiente e obediente. O Caçador ideal. Já havia matado milhares de inocentes, como também de culpados. Para ele não fazia diferença, não era ele que julgava, era apenas uma ferramenta a ser utilizada. Matar era a sua vida, quando matava sentia-se livre, como se nada mais existisse, como se nada mais importasse. Não sentia pena ou remorso, nunca sentira...

Até aquela noite.

Em que aqueles negros olhos infantis o fitaram.

- Ainda pensando naquela noite, Ernest? - Era frei Aniandro que chegara.

- Num mundo em que fazer o bem é matar crianças, algo não pode está certo...

- E definitivamente não está! O nosso papel é exatamente esse, o de consertá-lo, é o que fazemos aqui.

- Mas deveria haver outro meio...

- Você tentou todos os meios, caçador, nossos exorcismos mais poderosos falharam, aquele demônio era muito forte.

- Matar o corpo não vai parar o demônio.

- Ernest, você tem que entender que aquele corpo já estava morto. Você fez um bem àquela pobre criança. A morte é apenas uma passagem, a vida é um período muito curto. O que você fez foi libertar a alma dela, para que Deus a tenha junto de si, no paraíso que é o lar que todas as crianças merecem.

- Mas porque eu tive que fazer isso, padre? Por que todos nós temos que fazer isso? Por que uma criança?

- Essas coisas não fazem distinções entre crianças e adultos, elas não julgam da mesma forma que nós, não tem sentimentos de pena ou afeição.

- Padre, não me entenda mal, eu não quero questionar o trabalho de Deus. Mas eu realmente gostaria de entender porque ele fez esse mundo assim, por que ele permite que essas criaturas existam?

- Ele não permite. Por isso age em nós para que às eliminemos.

- Mas se ele tem poder suficiente para eliminá-las sem a nossa ajuda, e eu não ponho dúvidas nisso, por que já não o fez?

- Ernest, os caminhos de Deus são misteriosos, mas nunca maliciosos. Ele nos criou pelo que somos e você é um Caçador. É uma maldição, mas também é uma benção, você consegue se imaginar sem caçar? Sem matar coisas? Era para ser assim! Você nasceu para fazer isso. Isso te faz mais nobre, te engrandece, você salva pessoas, dá a sua vida por elas. Você vê coisas para que outros não vejam, você as enfrenta para que outros não às enfrentem. Você dá a sua vida pelos outros. Isso torna você mais digno. O mal existe para nos testar e para que progridamos com ele, já pensou o que seria de você se só o bem existisse? Não teria nenhuma utilidade...

- Eu ainda não entendo, como...

- O entendimento virá um dia. Só temos que nos preparar para ele.

- Queria que viesse logo...

- Não podemos apressar a morte, cavaleiro, ela virá quando estivermos prontos. Enquanto ela não vem, apenas continue com o bom trabalho. A propósito, amanhã é noite de Lua Negra, nenhuma luz chegará aos portões das casas, exceto a luz tênue do fogo das velas e das lareiras, as trevas serão plenas, e as criaturas despertarão para o ataque. Deve se preparar! E lembre-se: “Quando a luz se apaga...

- ...os caçadores saem para a caçada.” - Ernest repetiu o já tão conhecido lema, e se sentindo um pouco mais reconfortado com as palavras do frei, completou: - Padre, obrigado.

- Não agradeça a mim, meu jovem, louve a Deus, é ele que fala através de mim. Eu não sou mais que você. Somos todos apenas instrumentos.

Gabriel Valeriolete
Enviado por Gabriel Valeriolete em 24/03/2012
Reeditado em 25/03/2012
Código do texto: T3573921
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