Engrenagens - 2

Laura caminhava entre as torres, salões, casas, praças, pontes que compunham o castelo. Tristemente, estava tudo adormecido, trancadas desde a morte da rainha. No caminho que levava a grande praça do trono, encontravam-se inúmeros convidados. Muitos deles eram maltrapilhos, sujos e usando roupas remendadas e velhas, mas a medida que se aproximava da praça, apareciam os convidados mais importantes e mais elegantes. Eles conversavam baixinho e olhavam desconfiados uns para os outros. Havia seres de todas as formas possíveis. Seres com bicos, dentes, trombas, bigodes, beiços, penas, braços, asas, garras, e tentáculos. Havia qualquer ser que alguém poderia imaginar ou que alguém já tivesse imaginado. Alguns com chapéu, outros com vestido. Alguns muitos bonitos, outros assustadores. "Não olhe muito pra ninguém, não fale com ninguém."

Na praça, estava a orquestra que era tão doce e suave. Laura estava maravilhada. As construções ao redor da praça eram quase todas torres de abóbodas pontudas, como se cada uma usasse um chapéu de bruxa. Entre as torres, surgiam imensas cúpulas de vidro que certamente cobriam enormes salões de festas que deviam ser ainda mais incríveis. Podia-se ver as várias sacadas, passarelas, claraboias, jardins, estufas, praças. Era impressionante. No entanto, não havia vida em nada daquilo. O céu estava mais ameno, o fluxo vermelho estava coberto por longas nuvens marrons que pareciam pesar toneladas. Laura andava calmamente, desviando das pessoas que pareciam não enxergá-la. "Você precisa estar perto do trono, quando ela chegar." Laura estava se sentindo estranha, como se aquele lugar não fosse o dela. Mas, na verdade, não era. Ela viveu tanto tempo longe dali. Todas aquelas pessoas estranhas, todo aquele desconhecido. Sua casa não era mais ali.

"Aquele é Leu, talvez você queira falar com ele.", o vultou apontou. Era um garoto um pouco mais alto do que Laura. Tinha o cabelo preto e liso preso por duas presilhas ao lado do rosto, seu cabelo fora cortado na altura dos ombros especialmente para a cerimônia. Laura se aproximou e seus olhos se prenderam nos do menino. Então ele se curvou, olhando para o Vulto.

— Lori — ele disse discretamente, enquanto se curvava — e a senhorita? — ele voltou-se para Laura.

— Eu sou Laura... — ela se apresentou com um sorriso tímido e um par de bochechas vermelhas.

— A filha da rainha — Lori completou. — Não é para mim que você deve se curvar. O garoto ficou imóvel por alguns segundos, como se não soubesse o que fazer. Por fim, ele fez uma pequena reverência.

— É uma honra conhecê-la.

As pessoas começavam a se amontoar na praça e ao redor da região onde estava o trono. Aquela cerimônia marcaria o início de um novo reinado. O castelo e todos os direitos de rainha seriam entregues a Louise, a irmã da rainha morta. Havia dez anos que o reino estava entregue a própria sorte, enquanto esperavam que a filha desaparecida da rainha voltasse para casa. Depois daquele dia, ela seria considerada perdida e a voz real seria dada definitivamente à Louise. Havia pouca fé na volta da filha da rainha, mas alguns ainda não haviam desistido.

A música silenciou e a multidão se afastou formando um caminho desde os portões até os degraus diante do trono. Uma mulher alta caminhava por ele. Usava um vestido dourado tecido com fios de infância e feito pelo mais talentoso costureiro que já existiu. Seu rosto era poderoso, os olhos profundos e amarelos, os lábios finos e os cabelos castanhos que quase tocavam o chão atrás de si. Suas mãos moviam-se como borboletas e escolhiam cuidadosamente quem poderia tocá-las. Ela cumprimentava as pessoas acenando graciosamente com a cabeça e tentando sorrir, mas seu semblante austero mudava apenas levemente, era incapaz de abandoná-lo. Sobre os degraus, no fim do caminho, havia três homens. "São os três Senhores." Um deles era mais alto e parecia muito magro, usava um elmo em forma de falcão, o outro tinha a altura de um homem e usava um elmo com dois chifres, como os de um touro, por último o mais baixo usava um elmo com um chifre pontudo no centro da testa, um elmo de unicórnio. Além dos elmos, usavam apenas túnicas negras que cobriam seus corpos e esparramavam-se pelos degraus.

Louise se aproximou, fez uma pequena reverência e subiu os degraus.

— Com licença — alguém disse na multidão. Louise se virou e Laura estava olhando para ela do pé da escada. Parecia sozinha, mas o vulto estava ao seu lado.

— O que você quer, querida?

— Acho que todos estavam me esperando — Lori sussurrou em seu ouvido.

— Esperando?! — Louise fez uma careta.

— Sou Laura, a filha da rainha morta.

— O que você disse?

— Sou a filha da rainha — as pessoas se afastaram, formando um meio círculo ao redor de Laura.

— Não, não, você não é.

Houve um silêncio absoluto. Louise estremeceu. Laura, por sua vez, estava firme. Suas bochechas queimavam e sua coragem vinham da mão de Lori em seu ombro.

— Estou aqui para despertar o castelo. Essa cerimônia não é mais necessária — o vulto soprava cada uma das palavras em seu ouvido.

— Não diga bobagens, menina — o olhar de Louise fez com que seus guardas avançassem. Eram chamados de Demônios. Usavam grandes armaduras enferrujadas que haviam se tornado seus próprios corpos. Havia dois. Eles se colocaram entre Laura e Louise. — Você não dirá mais nada - as palavras de Louise eram afiadas.

As pessoas se afastaram ainda mais. Os demônios eram aterrorizantes. Apenas olhá-los já seria o bastante para despedaçar uma alma. Laura manteve-se firme, suas mãos estavam congeladas e um frio dolorido subia por suas pernas. Os olhos esbugalhados dos Demônios olhavam-na pelas frestas dos elmos. Ambos seguravam suas armas em posição de ataque. Uma espada larga e um machado curto. Louise olhou mais uma vez para a garota e com um gesto, ordenou que atacassem. As pessoas recuaram apavoradas.

"Laura, pense em algo que possa te proteger. Em qualquer coisa que tenha um coração." Laura fechou os olhos, enquanto as palavras do Vulto escorregaram por seu ouvido. Naquele momento, ela esteve em outro lugar. Um lugar mais escuro e solitário, mas que lhe deu força. Os Demônios ergueram suas armas ferozmente. Entretanto, se imobilizaram. A imaginação de Laura fez com que o vulto pudesse ser visto e ele estava diferente. Era o que Laura havia desejado para protegê-la. Era um poderoso Urso Vermelho. Seus dentes de marfim e suas garras de ferro. Mantinha-se de pé nas quatro patas, como um leão pronto para atacar. O pelo de suas costas estava eriçado como centenas de agulhas e ele era três vezes maior que um urso comum. Seus olhos continuavam vermelhos e fariam qualquer coisa para defendê-la, qualquer coisa.

— Milohridi — Louise disse e naquele momento soube que Laura era realmente filha da rainha morta.

Os Demônios atacaram. O primeiro com um golpe certeiro com a espada que aparado pelas garras dianteiras do Urso, e o segundo com um giro do machado que terminou entre os dentes de marfim. Ambos ataques foram contidos por Milohridi que rosnava ameaçando-os. Eles insistiam em investir contra a menina e Lori a defendia. A praça estava sendo destruída. Vários de seus monumentos foram alvos dos ataques e, por fim, um dos demônios atingiu o trono.

— Parem — o Senhor com elmo de falcão gritou.

Os Demônios se imobilizaram e o Urso Vermelho tornou-se outra vez o vulto invisível.

— Laura, venha até aqui — disse o Senhor com chifres de touro. A menina se aproximou temerosa, embora ninguém pudesse vê-lo, Lori segurava em seu ombro. Ela passou por Louise e dirigiu-se aos Senhores.

— Vemos que você voltou, mas muito tempo passou desde que você nos deixou. Vemos que Milohridi está com você e vemos que as coisas não serão como planejamos — o terceiro Senhor disse calmamente, enquanto andava ao redor de Laura. — Não podemos aceitá-la como rainha, não agora, não depois de você ter nos abandonado por tanto tempo, mas também não podemos entregar o castelo à irmã de sua mãe. O que faremos será esperar até que uma de vocês possa nos provar, possa provar que merece esse castelo e que será capaz de nos salvar — quando terminou, o Senhor com o elmo de unicórnio estava olhando fixamente para a expressão desdenhosa de Louise.