Tem novo presidente no Brasil

TEM NOVO PRESIDENTE NO BRASIL

Armando Botelho está com azia desde que se levantou, maldito vinho na casa do Meirelles, agora, com essa recessão, deram de oferecer essas merdas, devem ter comprado em supermercado de periferia; dirige-se ao chuveiro, hoje nem vai dar para aproveitar a banheira jacuzzi, perdi hora, porcaria de ressaca. No quarto de vestir, sobre a cama, Horacio já colocou três opções de traje, esse meu valete de chambre, realmente é um achado, Horacio nunca se acostumou com o título, chambre, chambre, eu hein, ai meu Deus, tem que falar valete de chambre, nécessaire, essas língua de estranja, esse colarinho aperta por demais meu pescoço, só fico valete de chambre por causa de mainha, senão voltava já, já, já pro meu Piauí, aguarda as ordens do patrão, atenção Horacio, rápido, meu breakfast, ovo meio mole, café preto sem açúcar e as torradas suecas, você já providenciou, já fez a mala, eu vou embarcar pra Brasília assim que voltar da recepção, sim senhor, só falta os objetos pessoais, muito bem, me deixe sozinho agora, preciso aclarar as idéias, posso avisar o chofer que o senhor vai sair daqui à meia hora, pode, pode, aliás, não pode, tive uma idéia, me deixe pensar Horacio; Horacio sai deslizando num skate imaginário. Armando esfrega o corpo magro com vigor, pela janela do banheiro vê-se o parque Ibirapuera, que vista bonita, até do banheiro a paisagem é deslumbrante, a Berenice, pelo menos, para isso serve, escolheu o melhor novecentos metros quadrados da região, os filhos estão em Londres, estudando, só ficaram os dois naquela imensidão de apartamento, bem que poderia ser menor, mas tem que se exibir, exibir, exibir, mostrar como ficou rico, forte, bonito, macho, inteligente, viajado, poderoso, articulado, carismático, esquecer o pai, candango em Brasília, a mãe, com as saias compridas e a boca apertada chamando por Jesus, tem que ganhar dinheiro Armando, pede pra Jesus que ele te dá um carro, mas tem que pedir com fé, ele se espantava que Jesus se interessasse por carros e por finanças, não era ele que tinha sido tão pobre e desprendido das coisas terrenas? Jesus gosta de quem tem dinheiro meu filho por que são os que trabalham mais, os que se esforçam mais, Deus, pode salvar todos, mas salva mais os que tem mais por que mostraram que fizeram por se esforçá:- Esse seu Jesus vai de classe executiva, levitando, a passagem pra morte é mais cara, a mãe o olha ressentida, tem que esquecer, esquecer, esquecer os anos poeirentos na cidade satélite, eis que o tino para o comercio e uma moral elástica e esgarçada pela pobreza, lhe trouxeram a fortuna tão cobiçada e mais a mulher, filha de um desembargador. Vieram para São Paulo, mas Armando voltava com freqüência à Brasília. No quarto ao lado Berenice se prepara para esse dia especial, convidados para a visita do presidente, iriam ficar no palanque principal. Berenice entra no quarto do marido que agora tinham um quarto para cada um, uma jacuzzi para cada um, um ar condicionado para cada um, uma piscina para cada um, um massagista para cada um, um chofer para cada um, sexo para cada um, permanecem juntos mais pelo descaramento da vida, ai Armando, do jeito que está, não dá mais, não vou nessa porcaria de inauguração de ponte, engordei e a cinta não sobe de jeito nenhum, (a cinta a olha desesperançada que cinta de mulher também se desespera e então garra a falá, ai também tem dó dona, comprou dois números menores e quer se enfiar na gente, olha aqui sua gorda, já estou esticada no máximo): - Que nada amore, cê tá linda, deixa que eu te ajudo, nem pensar em faltar ao compromisso hoje, nem pensar, quero só ver a cara do Meirelles e do Gustavo Paiva quando me virem no palanque, põe as jóias que te dei, tem que brilhar Berenice, tem que brilhar, põe todas, Berenice, todas, nossa credo Armando, que exagero, vou ficar com cara de árvore de Natal, perua de terceiro mundo, assim também não dá, dá,dá, tem que dar, tenho que aparecer hoje, nem que seja pelo lado cafona, de perua, de peru, de novo-rico, de emergente, de suburbano, não importa, coloca as abotoaduras cravejadas de brilhantes, nem se usa mais, mais eu ponho, haaa se ponho, vamos chegar de carro importado, acho o Mercedes blindada mais de acordo com a ocasião, Berenice se encolhe na cinta, pequenas gotículas de suor escorregam por sobre a boca, tá de bigodinho amoré: - Se você falar mais uma vez bigodinho, eu largo tudo e vou para o shopping, olha que dá última vez, gastei mais de cinco mil só numa tarde hein Armando, você me respeite, nossa que bicho te mordeu, credo a gente agora não pode falar mais nada nessa casa, arrisca um beijinho sobre a testa da esposa, sente leve cheiro de limão doce e suor, (hoje é preciso que tudo dê certo, Berenice não pode ser contrariada, senão azeda tudo, tudo), cheirosa hein, isso você sempre foi, não estrague a maquiagem que o pobre do Duran está desde as cinco horas me arrumando, dormiu sentado na cadeira, tem que dar uma gorjeta à altura, até por que, ele é o nosso relações públicas. Horacio chega com o café, dona Berenice também vai tomar o desjejum, nem pensar Horacio, nem pensar, sai esbaforida, procura a janela mais próxima e abana-se com ansiedade, pensa nos croissants que ficaram no prato, tão quentinhos, pensa no pai, gordura que se esparrama pelas cadeiras de espaldar alto, brocado duro que pinicava as pernas, um avô que, no retrato da escada a seguia com olhos maliciosos, o pai batia a mão flácida no seu ombro, senta direito menina, tão sem graça essa criatura, ia mastigando com vagar as bombas de chocolate, éclair, éclair, Berenice, você realmente aproveita as aulas de francês, olha para a mãe que torce a ponta do guardanapo com aflição - Essa menina, Guilhermina, será que vamos ter que colocá-la num colégio interno na Suíça, logo eu, logo eu, amante do belo, essa sua filha puxou o seu lado minha cara, o seu lado, tão sem graça, tão sem graça, tão sem graça ecoa ainda nos seus ouvidos, pelos corredores da existência marrom. Quem poderia pensar que esse homem, tão grosseiro e gordo, tem o poder de dar parecer sobre coisas importantes no Brasil, a mãe, uma sombra que se esgueirava pelos corredores compridos da casa em Laranjeiras no Rio, sussurrava, sempre olhando dos lados, fugindo de um fantasma que a azucrinava, tem que agüentar filha tem que agüentar faz parte da vida de uma mulher de bem, marido é assim mesmo quando você casa só troca de patrão e ela prometeu a si mesma não se tornar tão pálida perante a vida, tinha ódio daquela figura gorda, Buda do mal, seu pai, tinha ódio de seu apetite voraz, de seus próprios ataques à geladeira pela madrugada adentro, eu devo ter problema de tireóide, como pouco e engordo, o médico a olha com cinismo e receita anfetaminas que a fazem falar mais que o necessário, suar mais que o necessário, cria caso com a empregada, zelador, chofer, balconista; quando Armando entrou em sua vida achou que, enfim, seria feliz, sairia da tutela pesada do pai, eles iriam ver o que era bom pra tosse, tornara-se uma megera cordial, metade mãe, metade pai, metade medo, metade ansiedade brutal, que circulava pelas panelas de brigadeiro comidas às colheradas, metade um choro triste e uma falta de ar que lhe oprimia a esperança, vou morrer Armando, vou morrer, os médicos balançavam a cabeça com desdém aflito. Na mesma zona sul, fica o bairro da capela do Socorro, o senhor Augusto sempre se perguntou o porquê desse nome, alguma capela, dessas que ficam pelos caminhos, na serra, bem pequena mesmo, a gente faz o sinal da cruz e pede ao anjo que nos alumie o caminho de volta pra casa; seu Augusto também já acordou, quase sente o cheiro do café que Malvina estaria coando. Dá milho para as galinhas, Bob, olhos de foca, espera pacientemente a comida, cão danado de bom esse né Malva, ela inclinaria a cabeça num assentimento manso, dona Malvina fora uma mulher baixa e magra, olhos de um castanho que reluziam ao sol e cabelos presos em bandós, esperta essa minha mulher, esperta!! E então lavaria a mão na pia da cozinha, lhe daria um beijo na testa, Malvina sorriria, sorriso miúdo e passaria a mãos por seu rosto num desvelo antigo. Foi feliz com ela, muito feliz; casaram-se num dia de sol nos idos de 1928, quando o Brasil ainda era capaz de sonhar, quando ainda havia troles, bondes com condutores de luvas, lampiões a gás, polainas e toadas, brioches e sequilhos, poeira e paz fincada. E foram morar pros lados de Santo Amaro, numa casinha pequena, portinha e janela, dessas que as crianças desenham com sabedoria, com cerca branca onde Malvina plantou brincos de princesa que pulavam para os lados da rua sem a ordem da mãe. Foram pobres e felizes, pobres e bons, pobres e solidários sem muitas perguntas, eis que perguntar muito pra vida não era de bom tom, pobres e gentis, ricos. Malvina era dona de casa exemplar, diziam, no seu tempo isso era alegre, era normal, era viver, era saudável, assim, seu feijão tinha caldo grosso e cheiroso, o arroz era branco e fofo, seu bolo de fubá derretia na boca, a roupa era quarada ao sol das manhãs seu jardim tinha muitas flores, rosas brancas delgadas, hortênsias gordinhas, damas da noite misteriosas, camaradinhas que se esparramavam pelo jardim e, quando um pé de vento passava por ali nas tardes calorentas, admirava-se por tanta ordem e desvelo num tão pequeno jardim. E então, Augusto sentava-se na cadeira de balanço e enrolava um cigarro de palha com calma, Malvina lhe trazia um refresco de tamarindo, apreciavam de mãos dadas, o anoitecer. E, eram tão doces e sossegados aqueles momentos, que os manacás e azaléias da cerca vizinha vinham espiar com malícia e certa inveja. Vieram filhos que foram criados à luz desse amor profundo, que servia a todos, alimentava a todos, iluminava todos, sem muito estardalhaço, uma nova cortina de renda na janela, café coado com bolinhos, um escalda pé, velas pra Nossa Senhora, um passar suave da mão pela cabeça triste, ungüento pra se colocar no peito aflito, repreender com gosto de romã, mau humor a espera de um beijo. E quando Malvina ficou doente, ele pensou em desistir de tudo, ela o olhava com os olhos grandes e aflitos, Augusto, Augusto, não se apoquente tanto meu velho, a gente se prometeu não chorar, tá na minha hora e seu rosto empalidecia quanto a dor era muito forte. Malvina foi embora numa madrugada birrenta, ele permaneceu com suas mãos entre as dele até que as dela endureceram e se tornaram brancas, muito brancas... E então chorou um choro triste e seco que ardia sem descanso, dor que lhe foi rasgando o peito com vagar, anos depois se perguntava se não ficara um buraco por onde purgava uma saudade amarelenta que ele limpava com paciência. Os filhos tentaram tirá-lo dali, você agora fica conosco pai, temos espaço suficiente em casa, você se distrai com os netos, não quis ir. De tempos em tempos, eles o visitavam. Hoje ele iria ver o tal novo presidente, esperança de um novo Brasil, esse era como um raio de sol, tinha visto tantos, tantas promessas, tantos discursos, seu Tiburcio insistira tanto, vamos lá Augusto, você nunca sai homem, vamos ver o novo presidente. Toma o ônibus e olha o céu de um azul cozido, nuvens que passam ligeiras, vamos, vamos ver o tal presidente, dizem que é tão simpático e gentil, Augusto ri da pressa de todos, o ônibus resfolega com calma pela avenida Santo Amaro, é domingo e poucos passageiros sobem e descem, ele desce na Paulista tem que tomar outro ônibus para o centro, é lá o desfile. É cedo ainda, toma um café, e desce com vagar a Brigadeiro, dá pra ir à pé, lembra-se dos passeios no Trianon com Malvina, as tardes quentes, as rolinhas que se aninhavam no galhos, o sorrir discreto de Malvina, suas luvas com renda nos punhos; nesse mesmo minuto, desce a Brigadeiro o Mercedes de Armando Botelho, (dispensei o chofer , agora, digo que é novo critério, mais democrático, afinal é domingo, o rapaz tem que descansar, ética, meu amigo, ética, o velocímetro marca 85 quilômetros por hora,) Berenice, ao seu lado, respira com certa dificuldade, nesse exato instante Augusto atravessa a Brigadeiro, o Mercedes o colhe em cheio, ele faz uma pirueta engraçada no ar, fantoche surpreso, cai com um som oco no meio fio, pára Armando, Armando, pára, pára, nem pensar, pelo amor de Deus, você matou o homem, Berenice se volta aturdida, o rosto está coberto de suor, Armando segue sem parar, quem manda atravessar a rua tão distraído, não posso perder tempo, não posso, não posso, o carro segue deslizando estupidamente, Armando agarra forte o volante o carro para bruscamente, não tem nada no para -choque Berenice, nada mesmo, só um amassadinho, paciência, porcaria de velho idiota, veja se a minha gravata está torta, pare de lacrimejar Berenice, não vai ter seus ataques aqui que não é hora. Chegam quinze minutos antes do horário, ainda dá tempo de me aprumar Berenice, por favor, não faça esse ar patético, se controle mulher, se controle, alguém deve ter ajudado o homem, ninguém viu nada, te juro, ninguém viu nada, não tem um arranhão sequer na Mercedes, só um amassadinho, não tem sangue nem nada, pára de me olhar desse jeito esquisito. Na rua quieta, Augusto vê o sol se chegando, se chegando, deve ser o presidente, olha a banda, Malvina, você também está aqui, Malvina lhe dá a mão pequena, a banda passa tão alegre, suas fardas são douradas e brilhantes, tão brilhantes, eles seguem caminhando, olha lá o coreto Malvina, tá todo cheio de primavera, tantas, cores, tantas cores, minha velha tão querida, como nosso passo é leve Malvina, como é leve, que esperança esse novo presidente, que esperança, que esperança, , o presidente acena e sorri com simpatia; tem novo presidente no Brasil.

Vosmecê
Enviado por Vosmecê em 11/09/2012
Código do texto: T3876082
Classificação de conteúdo: seguro