Amarela (parte 1 de 3)

Segurando sua mochila, ele olhou para trás apenas uma vez. Viu uma luz acesa e despediu-se em silêncio. Ainda sem dizer nada, caminhou até o ponto do ônibus, encostou-se em um muro encardido, sob um poste empenado e cabisbaixo, como se tivesse perdido alguma coisa, perdido a vida, talvez. Sentou-se, a mochila nos joelhos e a mão trêmula logo fez surgir do bolso uma caneta. Ela sempre aparecia, como uma magia inadiável. Respirou fundo, sentiu o vento de noite entrar por seus ouvidos e escreveu algumas palavras em um espacinho branco do muro. Sua mente repetia incansavelmente cada uma das palavras, até que todas escaparam. “Feito palhaço, feito circo, feito jaula, feito leão, feito domador, feito chicote, agora, desfeito.” Pronto! Tampou a caneta e respirou um alívio instantâneo. Era só naqueles efêmeros minutos que ele se sentia dono de si mesmo, feito domador. Lá na frente, os faróis amarelos apareceram subitamente e sem que pudesse pensar, entrou assim que a porta abriu. Não via quase ninguém lá dentro e não foi difícil encontrar uma poltrona na janela, sentou-se e imediatamente começou a escrever no caderninho amarelo. Aos poucos foi adormecendo e não soube o que era palavra e o que era sonho.

Todos pensavam que o leão estava doente. Havia alguns dias que ele nem mesmo se levantava do canto da jaula. Sua parte nos espetáculos fora suspensa e o domador dedicava-se aos tigres e leopardos, desistira de seu leão. Diziam que numa manhã como qualquer outra, o leão estaria morto. Ele estava doente? Provavelmente estava. Entre os palhaços comentava-se que o leão havia se apaixonado por uma trapezista, Lola. Por estar irrecuperavelmente apaixonado, o leão não resistiu quando ela decidiu deixar o circo e casar-se com o dono de uma mercearia. Comentavam que desde a manhã em que ela partiu, o leão começou a definhar. De atração principal para um monte esquecido de quase morte. Mas, por que ele ficou assim? Entre os malabaristas diziam que o leão havia sido envenenado e que, muito provavelmente, era um plano de Esmeralda, a onça de olhos verdes. Não era segredo que ela queria derrubar o leão para poder tomar o lugar principal na apresentação do domador e que, para isso, ela não mediria esforços. Alguns até afirmavam terem visto quando ela rolou uma bola de carne envenenada para dentro da jaula do até então saudável leão. Mas, o que surpreendeu a todos, foi que numa manhã nublada de nuvens ranzinzas, o leão desapareceu. Diziam, entre as pessoas que se reuniram ao redor da jaula, que ele havia fugido. O leão doente fugiu. Ele estava mesmo doente? Diziam que ele havia ido atrás de Lola ou que havia ido procurar um boticário que conhecesse o antídoto para o veneno de Esmeralda. Não havia pegadas, nem pistas, não havia nada, apenas uma jaula vazia.

O ônibus parou diante de um enorme lago que ficava sob a sombra de uma montanha redonda como o ovo de um dinossauro. Tudo estava paralisado, feito o momento em que se tira uma fotografia. O instante esperava pelo momento que o fotógrafo guardaria para sempre, enquanto isso, não respirava, nem vivia. Naquele ponto, apenas o rapaz desceu do ônibus, apertou os olhos e viu algumas casinhas brancas e imóveis em uma alameda que contornava o lago. Viu que sua vida nunca fora tão real, tão verdadeira e tão sua. Caminhou temeroso até algumas crianças que brincavam entre as folhas de um salgueiro choroso. Pensava em como as coisas haviam mudado naquele dia, em como algumas coisas haviam ficado para trás e em como outras começavam a se transformar para sempre. Seus olhos, fugidos de algum pensamento amarelo, seguiram os passos incertos que brincavam de pega-pega e depois o brilho do sol que parecia vir do fundo do lago. Ficou algum tempo hipnotizado, sem saber que estava vivo, e não pôde perceber quando Dona Tica se aproximou. “Você é do circo?”, ela precisou se esticar e olhar para cima para poder dirigir-se ao rapaz. Era baixinha, não tinha mais do que 1,40 e os muitos anos haviam lhe roubado mais alguns centímetros. O rapaz não respondeu, afinal de contas, não havia entendido a pergunta. Apenas olhou para ela com um meio sorriso desconfiado. Sem resposta, a senhora entendeu que “sim” por si mesma e logo levou o rapaz para tomar café da manhã. Era ela a encarregada de recepcionar os artistas do circo. Ela caminhava com uma sombrinha-bengala e arrastava um par de chinelos gastos. Seguiram na direção de uma das casinhas brancas que se aninhava em um pequeno jardim de florzinhas azuis que pareciam soar feito pequenos sinos de cor. O som era quase invisível e só era ouvido por quem tinha os ouvidos certos. Atravessaram o jardim por uma trilha de pedras irregulares e numa mesa espaçosa, sentaram-se diante de suco e leite, bolos e bolachas, pães e queijos. Dona Tica morava sozinha, em uma casa simples, mas que atendia perfeitamente a suas necessidades. Quartos pequenos, sala pequena, banheiro pequeno e uma cozinha enorme. Ela adorava cozinhar. Podia cozinhar quase qualquer coisa com aquelas panelas, ainda mais quando misturava as coisas com aquelas colheres e, ainda por cima, sobre aquele fogão.

O rapaz falava pouco, mas tentava se informar sobre o que esperavam do circo, porque, agora, ele era o circo. Era aniversário do vilarejo e, para comemorar, contrataram um circo para alegrá-los por, pelo menos, uma noite. Depois de comer quase descontroladamente e de acumular informações o suficiente, ele disse que precisava descansar, pois a viagem fora longa. Dona Tica levou-o até um quarto, onde havia uma máquina de costura enferrujada, uma cesta de novelos de lã e uma cama barulhenta. Ele tirou seus livros da mochila e os espalhou sobre a cama, entre eles a caderneta amarela. A senhora ficou na porta observando com olhos brilhantes de curiosidade. “O que é isso?”, ela apontou para os livros. O rapaz se esforçou para explicar, mas ela não pôde entender. Como poderia haver histórias dentro daqueles montes de papel? Na verdade, aquela senhora nunca havia visto um livro antes, em nenhum dos seus 87 anos. Aliás, ninguém naquele vilarejo havia visto um livro, em nenhum dos seus muitos anos. Eles simplesmente não sabiam o que um livro era e nem imaginavam que poderia existir algo assim. Espere! A situação era ainda pior. Na verdade, a inexistência dos livros não era por acaso, mas porque aquelas pessoas não conheciam histórias. Exatamente isso, elas só conheciam a verdade. Só falavam de notícias, de acontecimentos, de fatos. Ninguém havia ensinado a eles que era possível ir além disso, ultrapassar a verdade. Ninguém daquele lugar era capaz de imaginar. Por isso, por ter vivido por tantos anos mergulhada em apenas verdade, dona Tica não pôde entender o que o rapaz tanto queria lhe explicar. Aquilo lhe parecia absurdo demais. Então, já exausto, o rapaz se deu por vencido, por enquanto, e resolveu descansar para poder se preparar para a noite do circo.

Passou a tarde escrevendo na caderneta amarela e quase não descansou. “Pessoas que não sabiam imaginar, que não conheciam histórias nem fantasias. Elas não podiam continuar assim.”

Quando começou a escurecer as pessoas se reuniram ao redor de um pequeno palco de madeira. Haviam pendurado algumas lanternas de papel nos salgueiros e várias bandeirinhas coloridas misturavam-se às estrelas. Todos conversavam provavelmente para tentar distrair a ansiedade. Nunca haviam visto um circo antes e mal sabiam o que estavam prestes a assistir. Sem que esperassem, as cortinas encardidas se abriram e no meio do palco estava o menino. Ele segurava um livro amarelo e vagarosamente olhou para cada uma das pessoas que estavam lá. Sua expressão era vazia, uma vastidão branca que esperava por alguma coisa. Ainda com os olhos perdidos no rosto de alguém daquela pequena multidão, ele abriu o livro. Não escolheu nenhuma página, apenas abriu. Do par de páginas que miravam o céu surgiu um tecido amarelado que se esticou na frente do palco, como a tela de um cinema. Uma tela vazia. O menino desapareceu atrás do tecido e todos pensaram que ele havia se perdido. Mas, depois de meio segundo de hesitação, surgiu um pequeno ponto preto no tecido e por ele apareceu uma agulha que trazia uma linha que bordou uma noite escura. As pessoas ficaram imóveis, não ouvia-se nenhum ruído, apenas uma família de grilos que parecia não se importar com o que acontecia. Sob o céu e sobre o tecido costurou-se um leão que se esgueirava pela porta entreaberta de sua jaula.

Há alguns dias, ninguém se dava ao trabalho de trancar a jaula do leão. Por isso, ele não teve dificuldade nenhuma para escapar. Naquela noite, seria livre e só a liberdade poderia lhe curar. Não estava envenenado, nem de coração partido, estava preso e isso bastava para lhe roubar toda a vida. Então, ele escolheu aquela noite. Olhou uma última vez para a jaula, despediu-se em silêncio de seus companheiros: dos macacos, do elefante, das girafas e zebras. Por fim, mergulhou no bosque, não sabia para onde ia, apenas seguiu para qualquer lugar. Muitas lembranças acompanharam-no enquanto fugia. Lembranças do picadeiro, do domador e nem todas eram tristes. Embora o circo houvesse tomado parte de sua vida, ele também lhe dera algumas alegrias, como o suspiro de fascínio das crianças e o temor das pessoas ao verem-no rugir e proclamar-se rei do espetáculo. O leão correu, sob uma lua redonda e cercado pelo escuro, por vaga-lumes e liberdade.

A última linha bordou a liberdade e a ponta se soltou do tecido. As pessoas, então, começaram a aplaudir, ficaram de pé e aplaudiram ainda mais. O menino apenas ouviu e quando houve algum silêncio, ele fechou o livro e o tecido se escondeu. Todos olharam para ele intrigados e no instante em que pensaram em dizer algo, uma música começou a tocar e todos se dispersaram. Foram aproveitar as barracas de guloseimas e o menino foi dormir, porque na manhã seguinte, continuaria sua viagem.