Amarela (parte 3 de 3)

O ônibus cruzou a cidade e partiu pelo portão sul. A noite começava a trazer seu frescor e, aos poucos, tudo se tornava mais confortável. O menino se acomodou na poltrona desejando dormir, enquanto o sono não aparecia, ele pegou sua caderneta e arriscou algumas palavras.

O caçador e seu ajudante chegaram ao labirinto vermelho. Caía uma chuva poderosa. Daquelas sem ventos, relâmpagos ou trovões, apenas água e mais água. Lutavam para encontrar alguma pista do leão, mas qualquer rastro que ele poderia ter deixado havia sido levado pela enxurrada. Mesmo sem indícios do leão, continuaram com seus guarda-chuvas furados e suas capas de chuva amarelas. Havia trechos da estrada em que a enxurrada quase os arrastava, no entanto, o caçador não largava de sua espingarda que estava sempre em punho e anunciava sua chegada onde quer que fosse. A estrada ladeada pelos paredões de pedrinhas eram confusas, ora sem fim, ora sem saída. Mas, com uma paciência eterna, caçador e ajudante encontraram o caminho da cidade. Alegraram-se porque algo lhes dizia que o leão havia seguido para lá. Na cidade, seguiram para um bar e lá todos estavam felizes. Era a chuva o motivo de tanta felicidade. Souberam que há um dia atrás aquela, cidade estava secando. Havia meses que não chovia, nem uma gota, e o sol castigava impiedosamente. Mas, tudo mudou por causa de um leão forasteiro que enfrentou o inferno e convenceu ao sol a deixá-los em paz. O leão ainda fez mais. Ele trouxe as nuvens com seu rugido e fez com que elas banhassem a cidade. Salvando a todos da morte seca.

Por fim, o menino dormiu e só despertou quando o motor do ônibus parou de funcionar. Ele desceu na nova cidade desconhecida. Sentiu o ar pesado, como se estivesse respirando fumaça e fuligem. A cidade era fria, feito um inverno interminável. Era de cimento e pedra, de placas e anúncios, de vidas corridas e egoísmo, de solidão conformista e mais nada. O dia ainda estava amanhecendo e o menino ainda sentia a satisfação que a cidade anterior lhe trouxera. Então, ele se animou um pouco e seguiu pela rua asfaltada e mesmo sendo muito cedo, havia vários carros correndo de um lado para outro. Buzinavam e gritavam uns com os outros e vez ou outra aparecia a cabeça de alguém na janela de um dos prédios e também gritava com alguém na rua que gritava com o motorista de algum carro que buzinava para um motoqueiro que xingava a moça que esperava para atravessar a rua que descontava em quem quer que estivesse perto dela... Era assim: um ciclo interminável de ignorância e xingamentos. Já cansado de caminhar e ver todo aquele sofrimento incompreendido, aquela fraqueza disfarçada e só encontrar concreto e mais concreto, o menino sentou-se em um banco em frente a uma estranha loja de computadores. Naquela cidade, sobretudo as pessoas eram, feitas de cimento inquebrável, intocável e se sentiam absolutas, como se elas, cada uma delas, fossem o suficiente pra si mesmas. Então, perdido, completamente perdido naquele lugar, o menino retirou sua caderneta do bolso da calça e retomou sua escrita.

O leão era mais uma vez um herói, o leão moribundo fugido do circo. Aquilo irritou o caçador profundamente. O ajudante nem mesmo pôde terminar de tomar seu copo de leite e o caçador já o arrastou para fora da cidade. "O leão está próximo, precisamos alcançá-lo." Correram descontroladamente e chegaram a uma cidade de cimento.

Um grito ensurdecedor veio de dentro da loja. Certamente havia acontecido alguma desgraça. Junto do grito e ainda aos berros um homem saiu desesperadamente da loja. "Vagabundo imprestável!!! Você não vai contaminar minha loja com essa porcaria! Saia logo daqui!" E o menino foi enxotado a pontapés do banco e depois disso veio uma sucessão de coisas desagradáveis: uma mulher lhe jogou ovos, outra ameaçou quebrar a vassoura em suas costas, todos que o viam cuspiam nele, inúmeras pessoas o ofenderam. Por onde passava as pessoas colocavam as cabeças pelas janelas pra lhe xingar, uma tentou lhe acertar com um balde de água suja. Naquela cidade, histórias eram algo medonho e inútil. E alguém que escrevesse algo era odiado, como se fosse um criminoso hediondo. No fim do dia, o menino parecia um mendigo. Estava sujo e exausto. Escondeu-se em um prédio abandonado, no meio de jornais velhos e lixo. Abraçado com sua caderneta, ele dormiu.

Acordou com o sol em seu rosto e os dois canos de uma espingarda entre seus olhos. O caçador nem mesmo respirava para não correr o risco de errar. Havia viajado sem parar e seguido a trilha de sujeira e imundice que o leão deixara para atrás. Finalmente, estava diante dele. O menino levantou-se vagarosamente e encarou o caçador com seus olhos de leão. O ajudante estremeceu diante da magnitude do leão que mesmo sujo e abandonado, que mesmo menino, era mais poderoso do que qualquer outro ser que poderia existir. O leão que enfrentara deuses e monstros estava ali, desamparado feito um menino solitário. "Por que você fugiu, leão?" O leão não respondeu, antes ele perguntou ao menino dentro de si. "Eu quero ser livre", o leão disse. "E você menino, o que faz aqui?" O menino deixou que o leão dentro de si encontrasse a resposta. "Eu quero ser forte e grande e corajoso", o menino rugiu. O caçador não ousou dizer mais nada, dessa vez foi o ajudante que se adiantou. "Vamos voltar para casa, menino?" Houve algum silêncio. "Acho que já é hora de voltar", o leão e o menino disseram juntos. "Procurávamos um leão e encontramos um menino e o menino que fugiu, agora é um leão."