Mato

Acho que há mais de trezentos anos estou aqui, em minha janela.
Olhar à frente, nunca via nada, mas ontem me surpreendi ao ver uma enorme quantidade de mato em meu terreno, que feio!
E uma grande quantidade de flores no terreno ao lado, que lindo!
Que inveja!
Como poderia ter acontecido uma coisa dessas se sempre estive aqui, na janela?
Ontem também, e sempre.
Nunca sai; sempre olhando, sempre atento e não havia nada, aqui ou lá, o que aconteceu?
Voltar ao tempo seria impossível; era fato consumado.
Fiz uma promessa à vida: continuarei aqui, nesta janela; minha vida será continuar a olhar e nada mais.
Ficarei a observar aqui e lá, e meu universo ficará resumido a essas duas direções.
Sol, chuva, noites, dias, mato, flores e terrenos, agora, donos dos meus olhares... Olhos fixos, não via, mas pressentia mudanças.
O mato, mesmo mato, as flores, mesmas flores, algo acontecia à minha frente, longe dos meus olhos.
Que força ou mistério era esse que me confundia?
Até que um dia, uma forte ventania veio e levantando areia, embaçou meus olhos e por alguns segundos não os consegui abrir.
Ao abrí-los, novamente, notei que uma mudança havia ocorrido no mato e nas flores; pensei e conclui, que as mudanças só aconteceram, porque, por um breve instante meu olhar ausentou-se...
E, pensando, pensando, cheguei à conclusão, que nestes trezentos anos não fechara meus olhos em momento algum, nem para piscar e por que a mudança fora tão grande?
Teria fechado os olhos ontem por um longo tempo, dormido, desmaiado?
Senti-me enganado por algo, me senti no direito de também enganar.
Tapei os olhos com minhas mãos, deixando propositalmente um pequeno vão entre os dedos e fiquei a olhar.
Um a um, lindos pássaros foram chegando, uma linda imagem, um belo quadro em movimento, cores antes nunca vistas, voavam, cantavam, pousavam.
E, ao tirar as mãos do meu rosto e abrindo os olhos, tudo desaparecia: que magia era essa?
Percebi, apenas, que o mato crescera mais, as flores tornaram-se ainda mais lindas.
Novamente, repeti o gesto e tudo aparecia em segundos, como anteriormente, porém, desta vez fiquei mais tempo e percebi uma diferença nos pássaros,que estavam no mato com os que estavam nas flores.
Os das flores eram jovens, fortes, lindos, cuja plumagem apresentava cores mais vivas, enquanto que os do mato eram feios, fracos, sem cor: era nítida a diferença até em seus cantos.
Passei a revezar, ora olhos abertos, ora semi-fechados.
Olhos abertos, a vida era inércia, olhos fechados, a vida aflorava, e em minhas análises comecei a perceber, que nas flores os pássaros vinham, viviam , se perfumavam , acasalavam-se e em meu mato os pássaros ficavam quietos e sós.
Dei-me conta, após certo tempo, que esses pássaros eram os mesmos, que divertiam-se lá e inquietavam-se aqui.
Novamente um sentimento horrível de inveja abateu-se sobre mim e foi quando me dei conta de uma realidade, mudando meus conceitos.
Era do mato que eles se alimentavam com mais desejo, e por mais que fosse a felicidade demonstrada lá, naquele jardim de flores, era aqui, em meu mato, que se via um verdadeiro preparo para a vida.
Meu mato eram seus remédios, seus tranqüilizantes, morriam e evoluíam.
Assim por vários anos venho vivendo minha vida; fecho os olhos para o mato que um dia achei ser feio, fecho os olhos para meu mato que hoje é lindo e útil, fecho meus olhos e durmo tranqüilo, e deixo aos pássaros o passar do tempo e o surgir da vida.