A Dança das Águas

O mar resplandecia dourado atrás dos barcos atracados ao cais, enquanto o sol se punha no horizonte emprestando uma matize de novas cores ao porto, o tingindo de uma inesperada beleza que Simone sabia que nenhuma pintura seria capaz de reproduzir totalmente. Ela poderia ficar parada onde estava, e admirar aquele espetáculo da natureza até escurecer, se não fosse por sua pressa em encontrar seu noivo como tinha combinado no dia anterior. Para chegar na hora marcada, ela teve até mesmo que sair mais cedo de seu ensaio de balé que fazia diariamente depois que foi escolhida para uma apresentação a ser feita no teatro da cidade no início do verão, o que era algo do qual não a agradava muito. Cada minuto que ela estava se empenhando em aperfeiçoar sua dança era precioso, mas sua irritação alivia pelo menos parcialmente quando ela o vê a esperando de braços cruzados em frente a seu barco vestindo uma roupa surrada, mas não tanto quanto as que ele usava para pescar.

- Espero que seja importante. Tive que sair mais cedo para vir – Simone fala.

Tiago sorri, enquanto a brisa marítima esvoaça gentilmente seu cabelo castanho.

- É importante, sim. Você não vai se arrepender. Venha comigo. Tenho uma surpresa para você – Ele estende sua mão para Simone que a toma e juntos, os dois sobem no barco pela passarela de madeira.

Tiago sai com o barco depois de desatracar, direcionando-o para alto-mar ao girar o leme na cabine de comando. Simone ficou no proa apoiada na amurada admirando o pôr-do-sol que no mar parecia um incêndio de luz. Tiago pára o barco quando o sol estava prestes a sumir deixando apenas o crepúsculo para trás.

- Então, o que você queria me contar? – pergunta Simone quando Tiago se aproxima.

- Como vão os ensaios de balé?

- Muito bem – diz Simone – Estou ficando melhor a cada dia. Se continuar assim, a Isabela não vai mais me perturbar.

- Sempre te achei melhor que aquela vaidosa da Isabela. Ela só tem inveja de seu talento – diz Tiago.

- Mas você não me trouxe aqui apenas para perguntar sobre o meu balé.

- Eu apenas achei que poderia ficar um momento a sós com você – Tiago falou a envolvendo em seus braços.

- Logo, logo iremos nos casar. Teremos muito tempo para ficarmos a sós.

- É, mas... Bem, para dizer a verdade eu comprei um presente para você. Eu achei que este seria um momento especial para entregá-lo.

- Um presente? Qual?

- Feche os olhos.

Simone faz como pedido e ouve os passos de Tiago no piso do barco se distanciar e se aproximar antes que ele pedisse para ela abrir seus olhos.

- O que é isso? – Simone encara o embrulho em um pano cuidadosamente limpo que Tiago segurava em sua frente.

- Pegue. É seu.

Simone pega o volume ligeiramente pesado e tira o pano revelando a caixa com uma pequena tranca dourada na tampa.

- Isso é...

- Sim. É uma caixinha de música. Eu comprei num brechó aqui perto. Abra. Esta é a chave. – diz Tiago a estendendo a corrente com uma chave pendurada que tira do bolso de sua calça.

Simone entrega a pequena caixa de música para Tiago segurar enquanto ela encaixa a chave para abri-la dando vida à pequena bailarina que girava num único passo de dança ao toque da música que saía de dentro de suas engrenagens.

- Nossa! Tiago. É linda – ela fala se deixando envolver por aquela melodia que era mais que o som que acompanhava o girar de uma bailarina de alumínio. Era uma poesia feita de notas musicais.

- Sabia que você iria gostar no momento que a vi na loja. Você anda tão apreensiva com a apresentação. Achei que um presente te faria bem.

- Obrigada. Foi muito importante para mim. É maravilhosa.

- Sabe, tive uma idéia – fala Tiago fechando a caixinha de música e a deixando em cima de um caixote perto, encostado à quina do passadiço – Por que você não faz alguns passos agora. Ainda não vi sua coreografia.

- Agora?

- Sim. O mar está bem calmo e o barco praticamente não está balançando. Encare isso como um ensaio. Se você for capaz de dançar em um barco, o palco será fácil.

Simone considera a proposta de Tiago por algum tempo, observando o convés onde estava. O barco estava limpo, é verdade. Nada de restos de peixe espalhados no piso o que o tornava escorregadio, principalmente quando estava molhado. Nada de redes jogadas ou iscas ao chão. E o barco não estava balançando muito, como Tiago falou. Seria fácil de dançar ali, se estivesse descalça.

- Está bem – fala Simone tirando os sapatos que trocou pelas sapatilhas antes de sair. Fora eles, ela estava com toda a roupa do ensaio – Mas vai ser difícil sem música.

Tiago volta alguns passos para a caixinha de música e a abre para deixar sua melodia fluir pelo ar novamente.

- Esta é suficiente?

- É perfeita – diz Simone se afastando para o centro do espaço do convés. Tiago se senta no amontoado de redes de pesca encostado contra a cabine de comando e observa sua noiva girar e elevar seus braços realizando com leveza e precisão gestos graciosos com seu corpo. Esses passos pareciam tão fáceis para ela. Era como se Simone fosse uma pluma lançada ao vento, ou sobre a superfície de um lago feito da música da pequena caixa da bailarina. A pluma do cisne que ela representava.

Tiago a contemplava absorto até que Simone se interrompe, caindo para o lado, mas conseguindo se segurar a tempo. Tiago se segura na borda de um barril com o susto que levou com o solavanco que o barco de repente tinha dado. Ele mal se recupera, se perguntando o que tinha acontecido se o mar estava tranqüilo há menos de um minuto, quando ele ouve o grito de Simone.

- Tiago!

Seguindo seu olhar, Tiago vê o porquê dela ter se exaltado. Com o virar brusco do barco, Tiago tinha esbarrado seu braço em dois caixotes sobrepostos que caíram arrastando meio metro o caixote em cima do qual estava a caixinha de música, o que o fez virar pouco antes de atingir a amurada e deixar a caixinha cair nas águas do oceano.

- Não! – Simone correu ao ponto onde o caixote tombou deixando a caixinha de música cair do barco. Ela se inclinou na borda, impedida que cair por pouco quando Tiago a segura. Abaixo do olhar de ambos, marolas em forma de círculos concêntricos se espalhavam a partir do local em que a caixa da bailarina mergulhou na obscuridade do mar.

Simone leva suas mãos ao rosto numa tentativa de sufocar o choro que insistia em vir à tona.

- Tudo bem. Está tudo bem – diz Tiago – Era só um caixinha de música.

- Mas foi o seu presente.

- Eu sei. Não se preocupe. Posso conseguir outra para você. Prometo – Tiago acaricia o rosto de uma Simone triste – Agora temos que voltar. Está começando a ficar tarde.

Simone olha discretamente em volta como se não tivesse se dado conta da chegada da noite, e olha mais uma vez para o mar atrás de si em um lamento silencioso.

- Esqueça essa caixinha de música. Ela está perdida para sempre. Vou conseguir outra – Tiago assegura a Simone sem saber que seu presente não estava perdido. Não para alguém que se aproximava.

Abaixo do barco, no mar noturno, a caixinha mergulhava mais e mais fundo nas trevas abissais que sufocavam sua canção, tornando o girar da bailarina uma dança muda. Sal, plâncton e um número imenso de outras partículas suspensas na água adentravam com ela e se esgueiravam por entre engrenagens e cordas que constituíam o sistema delicado que dava vida à melodia e à dança da bailarina, paralisando seus movimentos conforme a caixinha progredia em sua queda para as profundezas oceânicas onde pressões colossais a esmagariam se ela não repousasse primeiro em duas mãos pálidas. No instante que se seguiu, a caixinha recém salva de ser reduzida a nada pelo peso do mar é atentamente estudada por perspicazes olhos azuis capturados pela beleza do estranho objeto, cuja origem na superfície era a única certeza daquela a quem pertenciam esses enigmáticos olhos, bem como o cabelo loiro flutuando como algas douradas e o esbelto corpo que terminava numa longa cauda. Ela olha para a penumbra residual do dia que foi embora acima dela e nada em sua direção carregando a caixinha com seus braços ricamente adornados com pulseiras enfeitadas com pérolas e variados tipos de búzios.

Na superfície desponta a cabeça de uma sereia atenta ao barco onde o casal conversava. Nereide, como ela era conhecida, nada para mais perto com a suavidade que apenas as sereias possuem.

- Apesar da perda da caixinha de música, essa tarde foi maravilhosa – disse a mulher para o homem que a abraçava.

Nereide olha para o objeto submerso que segurava. Então era assim que se chamava: uma caixinha de música.

- Concordo – disse o homem – Podemos vir aqui de novo. O que acha?

- Quando?

- Qualquer dia. Os pescadores não saem à tarde. Podemos combinar de nos encontrarmos no porto depois do ensaio e sairmos de barco.

- Claro. Amo passear de barco com você. O pôr-do-sol é ainda mais bonito visto daqui. E mais romântico. Mas não posso garantir de dançar balé aqui para você. Não sou boa para dançar sem música e talvez você não encontre outra caixinha até lá.

- Vou dar um jeito – fala o homem antes de dar um beijo no rosto da mulher – Vamos. Antes que fiquem preocupados com a sua demora – segurando a mão da bela moça, o homem entra com ela na cabine que os pescadores chamavam de ponte de comando.

O barco vira a bombordo e parte para as luzes do porto ao longe, deixando Nereide apenas em companhia da noite e da bailarina da caixinha de música. A sereia elevou o objeto acima da linha da água com o propósito de apreciar seus detalhes sob a luz tíbia do luar, como os acabamentos talhados na madeira e o brilho delicado do alumínio de que era feita a menina fazendo uma pose de dança no centro da caixinha. Era uma coisa muito bonita, Nereide não podia negar. Ela apenas não sabia para o que servia. Ela tinha visto muitas coisas esquisitas jogadas pelos humanos, mas nada que se igualasse a isso que parecia ser carregado de um significado importante para o casal no barco. E assim aflorou na sereia um impetuoso desejo de descobrir mais sobre o belo artefato que carregou consigo para as profundezas de onde viera, disposta a voltar no dia seguinte para obter as repostas de que precisava.

Amanheceu e o sol cumpriu seu itinerário diário pela abóboda celeste. Quando ele estava começando a declinar novamente tingindo a mar e as nuvens com a cor dourada característica, Nereide emergiu no lugar onde tinha visto o barco no dia anterior e esperou pacientemente pela chegada dele. Porém, nenhuma embarcação apareceu por aquelas paragens durante toda a tarde e durante o período da noite em que Nereide permaneceu aguardando até o momento em que teve que ir embora, pois sabia que pouco antes da alvorada, quando ainda estava escuro, muitos barcos partiriam do porto, mas seriam os pescadores que vinham com suas redes predatórias garantir o seu sustento.

No outro dia, no final da tarde, Nereide voltou àquela região e nadou a poucos pés abaixo da superfície sondando um raio de distância, à espera de algum sinal de que o barco com o casal voltou ou se ele voltaria algum dia. Sem encontrar nada, Nereide nadou rápido para muito ao sul daquele ponto, onde uma pequena cadeia rochosa se erguia protuberante sobre o mar. As pedras imensas que em algum passado distante teria pertencido ao continente eram um excelente lugar para desfrutar do pôr-do-sol ao lado da caixinha que Nereide põe ao lado, quando chega e se senta numa pedra baixa. Ali, Nereide não precisava se preocupar com os pescadores, uma vez que eles evitavam navegar pelas proximidades dos rochedos devido ao perigo que eles representavam para os cascos de seus preciosos barcos e em conseqüência, no caso de um naufrágio, para suas vidas. Até os próprios sereianos evitavam esse lugar por medo de que os humanos de alguma forma pudessem ter espalhado armadilhas que capturaria qualquer ser que vivesse na água. Apenas Nereide se sentia segura em nadar por aquelas águas perto da costa. Ela deitou o seu dorso nu contra a pedra áspera e observou as nuvens coloridas com diversos tons pelo sol poente tomar formas variadas no céu cor de páginas em chamas. Ela se encontrou pensando sobre aquele homem e aquela mulher abraçados no barco como se não existisse nada no mundo além deles dois. Imaginando o que eles falavam e o porquê de terem largado no mar um objeto tão bonito quanto à caixinha. Talvez fosse uma oferenda, pensou a sereia. Mas a tristeza refletida no rosto da mulher deixava uma dúvida se eles jogaram a caixinha por escolha ou se eles a perderam. Caso tenha sido esse último, é possível que eles tenham voltado para reaver sua peça. Recordada por esse pensamento, Nereide mergulhou e nadou para o lugar onde viu o barco, deixando a caixinha nos rochedos por receio de que o contato prolongado com a água salgada a danificasse e o fato de que nem humanos nem sereianos freqüentavam aquelas pedras a deixou mais tranqüila quanto à segurança do seu novo pertence.

Depois de percorrido a distância que separava os rochedos do lugar onde encontrou o barco, Nereide esperou por alguns minutos boiando de costas para baixo e empurrando seu corpo para frente com leves movimentos de cauda. Quando se preparava para avançar para mais profundo rumo ao seu lar, uma sombra lhe chamou atenção. Não era preciso ter visão e audição muito aguçadas para saber o que era. Graciosa como sempre, Nereide subiu e expôs seus olhos, ficando submersa do nariz para baixo. Com seus cabelos loiros e sua pele pálida misturados com o reflexo do sol no mar, invisíveis a olhos desatentos, a sereia observou o barco que chegava e a mulher que nele estava.

Simone, com os braços apoiados na borda, sentindo a brisa suave lhe acariciar o rosto, mal percebe o barco parando e Tiago saindo da cabine de comando para se juntar a ela.

- Que sorte o mar está calmo hoje – ele fala.

Simone se volta para o seu noivo.

- É mesmo. Ainda bem que você conseguiu se livrar do trabalho naquele armazém fedorento para darmos uma volta de barco.

- Fedorento, por quê? Você não se acostumou ao cheiro de peixe?

- Não. Acho que nunca vou me acostumar. Só pescadores se acostumam com isso.

- Não fale assim. Desse jeito parece que pescadores são pouco inteligentes ou algo assim. E você sabe que não se pode denegrir essa profissão. Até Cristo foi pescador.

- Cristo foi carpinteiro, querido. Pescador foram seus apóstolos. E foram só alguns.

- Mas então, você vai me mostrar os passos hoje, ou não? Quero ver o que você evoluiu desde a última vez que a vi dançar.

- Você quer dizer esses últimos dois dias.

- Aquela não valeu. Você caiu antes de concluir com um balanço do barco.

- Queda não foi bem o que aconteceu, você sabe. Eu apenas tombei para um lado e me segurei na borda. Mas tudo bem, eu danço para você. Só não vai ter tanta graça sem música, e infelizmente você não conseguiu outra caixinha.

- É uma pena, realmente. Mas como eu falei, eu vou dar um jeito. Espere aqui.

- Você fala como se eu pudesse sair correndo sobre as águas – fala Simone, mas Tiago parece não ter prestado atenção, sumindo para dentro da cabine de comando e reaparecendo com um violino.

- Que tal? – Tiago fala posicionando o instrumento no ombro e fingindo tocar com o arco que segurava com a outra mão.

Simone não pode conter um sorriso que lhe iluminou o rosto. Ver Tiago com seu violino sempre a fazia recordar do rapaz tímido que se inscreveu nas aulas de música no teatro da cidade, apenas para ficar perto dela que fazia aulas de balé no mesmo local, em outra sala. Nos intervalos os dois conversavam sobre suas vidas e sonhos sempre que tinham oportunidade.

Foi assim que eles se conheceram.

- Aprendeu a melodia do Lago dos Cisnes? – pergunta Simone.

Tiago toca algumas notas com o arco.

- Não se preocupe querida Odette. Está tudo sob controle.

Tiago inicia a canção do lago dos cisnes, tocando com cuidado e concentração. Simone que se dirigiu para o centro do convés começa os passos de balé, incorporando a personagem que vivia num lago, amaldiçoada por um malvado bruxo a que se transformar num cisne do por ao nascer do sol até que alguém lhe jure amor eterno. Nereide simplesmente estava encantada. Não só pela música que o homem tocava com seu estranho instrumento, bela como a música que ela ouviu dois dias atrás quando ela virou o leme do barco produzindo um virar brusco do barco para assustar os humanos como se divertia em fazer, mas pela dança da mulher, que ela não queria que nada interrompesse. Ela nunca viu nada assim. Ela estava acostumada com os pescadores rudes puxando cordas, descendo âncoras e ceifando a vida marinha com redes e arpões assassinos em várias partes do mundo, não com aquela cena de um homem tocar uma música para uma dama dançar maravilhosamente bem ao pôr-do-sol uma dança que falava de beleza e amor. O talento da bailarina poderia não ser mágico como o das sereias que com seu cântico poderia enfeitiçar os homens e trazê-los para a morte abaixo d’água ou controlar as águas para fazê-las tomar formas distintas para enganar os navegantes, mas nem por isso era menos especial.

Nereide se esforçava para ver mais. A borda, no entanto, não a deixava ver o corpo inteiro de Simone, ocultando-a da cintura para baixo. Nereide cogitou em enfeitiçar o homem e atraí-lo para os rochedos onde ela poderia subir e ter uma perspectiva melhor, mas não poderia. As rochas submersas poderiam furar o casco do barco, levando-o ao naufrágio e por mais que se conte como as sereias afundam navios, Nereide não queria fazer isso. Não com aquele casal. Ela, então, permaneceu como espectadora do espetáculo de música e dança dos humanos até que Tiago para de tocar.

- É hora de voltarmos. Está escuro.

- Você fica me perguntando sobre o meu balé e me esconde a sua habilidade. Você está tocando muito bem.

- Você acha?

- Sim. Devia fazer uma apresentação no teatro.

- Numa orquestra talvez. Sozinho não. Não conseguiria tocar com toda aquela gente me olhando.

- É uma pena.

- Você vem para dentro? – Tiago pergunta e Simone o segue para dentro da cabine de comando.

Tiago girou o timão no sentido do porto e deu a partida para o barco fazer seu caminho sobre o mar abaixo do véu da noite e das estrelas que brilhavam no céu como pequenos faróis.

Nereide voltou para o recanto dos sereianos no fundo do mar, sem conseguir parar de pensar na dança da bailarina e a idéia de que ela poderia ser ainda mais bonita sem a borda do costado do barco bloqueando sua visão fez a curiosidade de ver a mulher dançando de corpo inteiro aumentar a tal ponto de ser uma ameaça à tranqüilidade da sereia. Seja na hora em que estava cultivando seu jardim de corais ou quando estava brincando com um cardume de sardinhas, tentando reproduzir uns movimentos de balé com ele, tudo no que ela pensava era ver de novo aquela bela moça que dançava ao pôr-do-sol embalada com a sinfonia que seu amado tocava.

Movida por esse desejo, dia após dia Nereide voltava para o lugar onde tinha encontrado o casal para ser recebida apenas pela brisa marítima e pela vastidão do oceano. A demora em Simone e Tiago aparecer era uma fonte de dúvidas para Nereide que via o tempo passar e nada do barco da bailarina surgir novamente. Ela sentava nos rochedos com sua cauda escamosa e olhava a caixinha de música, se perguntando o que a dançarina a quem outrora ela pertencera estaria fazendo em terra firme, ou se ela dançava por lá. Nisso, ocorreu-lhe uma idéia perigosa que também lhe enchia empolgação:

Ir ao porto.

Essa seria uma atitude vivamente repreendida por todos os sereianos que conviviam com ela no vale subaquático, mas era a melhor solução para aplaca esse sentimento que se debatia dentro dela como um peixe preso entre suas mãos. É comum falarem sobre como as sereias são sedutoras, mortais e imprevisíveis, mas pouco se conta o quanto elas podem ter a inconseqüência de uma criança quando se trata de coisas belas. Depois de alguma reflexão sobre os perigos sobre os quais ela estava se expondo, Nereide fez sua escolha e nadou para o leste, em direção à costa.

A primeira coisa que viu quando emergiu sua cabeça foram os barcos amarrados ao cais, repousando como monstros adormecidos. A sereia perfez sua trajetória próxima às embarcações, certificando-se de que nenhum humano estava por perto. Ela não poderia dizer exatamente qual deles era o da bailarina, pois todos estavam em igual estado deplorável, sendo fortes apenas o suficiente para a pesada rotina pesqueira. Se Nereide entrasse entre eles e olhasse por cima da calçada do cais ela estaria vendo o que pareciam ser armazéns. Provavelmente o lugar onde os pescadores guardavam o resultado da pesca, Nereide não sabia dizer com certeza, ou se eles estariam cheios de pessoas que poderiam ver sua cabeleira dourada perto dos barcos. Por via das dúvidas, ela continuou nadando submersa atrás das naus. Nereide cobriu uma boa distância contornando cuidadosamente o cais antes de encontrar vigas que sustentavam uma longa plataforma de madeira que se estendia sobre o mar a partir da terra firme. Ela teria passado por entre as vigas se não fosse pelos baques de passos contra a madeira do píer que despertou a atenção de seus ouvidos apurados. Ao olhar para cima, Nereide viu a imagem de uma mulher transformada em um borrão pelas marolas da superfície. Nereide se afastou um pouco e emergiu atrás da quina do que pareceu uma coluna da base do cais. Ela olhou adiante e pôs a mão na boca para abafar um grito de contentamento pela sorte de encontrar quem veio procurar.

No píer, Simone contemplava distraída a infinidade do mar quando a ela se juntou outra moça de cabelos escuros e voz arrogante.

- Que surpresa lhe encontrar aqui, Simone. Faz tempo que não nos falamos – diz Isabela.

- Oi, Isabela. Estava falando com o Tiago a pouco e passei aqui. Amo ver o sol se pondo.

- Eu também gosto muito. Mas eu pensei que há essa hora você ainda estaria no ensaio.

- Estou começando e terminando mais cedo ultimamente. A propósito, ainda não lhe agradeci adequadamente por ter me ajudado. Não sei o que seria de mim se você não tivesse me ensinado a coreografia do lago dos cisnes.

- Não precisa agradecer. Foi muito bom ensinar alguém a apresentação quando eu mesmo não estou mais permitida de fazer – a amargura na voz de Isabela causou um arrepio em Nereide – Só acho uma pena eu não ter tido tempo em te acompanhar nos ensaios esses últimos dias. Como você está? Dominou os passos corretamente?

Simone reproduz alguns passos como se isso fosse a resposta à indagação de Isabela.

- O que acha?

- Acho que os ensaios diários que você andou fazendo essas últimas semanas estão sendo proveitosos. Deixe-me ver novamente.

Delicadamente, Simone faz alguns passos. Foram poucos, mas foi o bastante para Nereide ver a dança em que tanto pensava por inteira, ou pelo menos maior parte dela. Depois que terminou, Simone falou alguma coisa com Isabela, porém Nereide não ficou para ouvir. Ela mergulhou e nadou para alto-mar, imaginando o quão bom seria se ela pudesse dançar assim também, sabendo que isso era impossível. Para dançar ela precisava de pernas como as de Simone, e no lugar ela possuía uma cauda de peixe que a fazia se locomover na água com incrível agilidade. Ser uma sereia não era ruim, Nereide amava muito ser uma bela do mar, como eram chamadas as sereias, embora ele devesse admitir que dançar como aquela humana era algo que gostaria muito.

Na próxima vez em que Nereide veria Simone, o sol estava escondido atrás de um véu de nuvens e o mar exalava uma densa tranqüilidade. Não uma paz serena, igual a do dia em que a bailarina recebeu a caixinha de música, mas uma espécie de silêncio gerado por uma expectativa, como se o mar estivesse sob uma redoma de vidro prestes a explodir em milhares de fragmentos cristalinos. Foi uma semana depois que Nereide encontrou Simone no píer do porto conversando com Isabela. Diferente deste dia, porém, Simone não dançou. Depois que saíram do porto e Tiago parou o barco onde normalmente parava, a uma razoável distância da costa, Simone sentou na borda para ouvir o noivo tocar uma música com seu violino.

- Você acha que foi uma boa idéia sairmos hoje? – Simone perguntou com seu rosto voltado para o horizonte.

Tiago separou o arco do violino.

- Pensei que você gostava de passear de barco.

- Eu amo muito. Estou falando isso por causa do clima.

- O que tem o clima?

- Está fechando. Talvez caia uma tempestade.

- Está frio, realmente. E tem muitas nuvens. Mas acho uma tempestade um exagero. Talvez somente chova mais tarde.

- Tem certeza? Você sabe que o clima no mar pode mudar de repente.

- Sei sim. Afinal, você está falando com um pescador que já passou um mês no mar.

- Você e suas histórias de pescador. Você vai ou não vai continuar tocando?

- Tudo bem. Onde estava mesmo?

Tiago toca as cordas do violino com o arco produzindo um doce e suave som que se propaga. Nereide nadava por perto, rondando o barco em círculos inquietamente. Ela estava encantada com a música de Tiago como era comum para as sereias se encantar por tudo quanto fosse arte e beleza, mas seus instintos não deixavam de concordar com as palavras de Simone. O temperamento do mar é instável e uma queda sutil na temperatura de suas águas ou uma mudança no comportamento do vento poderiam ser sinais de que ele estava por se enfurecer a qualquer momento.

- Estou contente que não vou pescar no dia da estréia do seu espetáculo.

- E pensar que faltam apenas vinte dias.

- Como você estar? Nervosa?

- Sim. Lembra do que você falou outro dia, sobre não conseguir tocar com toda aquela gente te olhando? Eu estava pensando nisso antes, mas estou mais confiante com as orientações que Isabela me deu. Ela pode ter seus defeitos, mas foi uma boa professora.

- Se ela não tivesse brigado com metade do elenco, ela não teria sido expulsa do espetáculo, sendo cotado apenas como professora. Eu tenho que admitir que gostei. Pelo menos você ficou com o papel de cisne.

- Para ser sincera, eu também. Estou pronta para dar o meu melhor no palco.

- Todo mundo verá o quanto você é talentosa.

A caminhada da noite foi apressada pelas sombras das nuvens que eclipsaram todo o céu. Com elas veio uma espessa névoa que se arrastou preguiçosamente pelo mar e mergulhou tudo numa confusão opaca. Não se podia ver nada à frente e a única referência de Tiago além da bússola na cabine de comando era apenas o vislumbre das luzes remotas do porto.

- Você tinha razão, amor. O tempo mudou rápido. Vamos voltar antes que chova – fala Tiago.

- Vá dando a partida. Eu vou acender as lanternas – disse Simone.

Tiago segurou firme seu violino e foi com ele para a cabine de comando. Fora desta existiam duas lanternas a gás que Simone acende antes de antes de verificar a âncora. Nas águas, Nereide ouviu o ronco do motor indicar que o barco estava pronto para ir embora. A sereia se permite por todo o seu tronco para fora da água, consciente de que estaria invisível sob a fria bruma e o barulho de seus mergulhos estariam confundidos com o som das ondas que ganhavam força e insidiam contra o casco do barco. Sem conseguir ver nada e findado o pequeno espetáculo de música de Tiago que além de Simone, tinha ela por expectadora, Nereide mergulhou e nadou para um lugar não muito longe dali, onde uma pequena bailarina de alumínio estava em cima de uma rocha, perto de ser alcançada pelas águas que subiam em pancadas de ondas.

- Tiago. Acho que a âncora emperrou – fala Simone.

- Deixe. Vou te ajudar – grita Tiago da cabine de comando.

- Não. Não precisa. Estou conseguindo.

Nereide avançava velozmente na escuridão do mar para os rochedos, guiada pelo seu apurado senso de direção. Antes de ir para a morada do sereianos, ela pensou em fazer uma rápida visita à caixinha de música e verificar se estava tudo bem com seu objeto de estimação, diante da forte chuva que se formava. Ela podia sentir as pedras se avolumar abaixo e à frente na medida em que ela chegava mais perto da cadeia rochosa até chegar a uma pedra grande que se erguia. Ela pôs suas mãos para fora da água, segurando as bordas da rocha e com um impulso, Nereide se empurra para cima da pedra. Ela sabia exatamente onde a caixinha de música estava mesmo com a névoa bloqueando sua visão. Nereide tomou o objeto do canto onde a rocha encontrava outra mais alta e tentou observá-la através do cobertor de umidade que pairava no ar.

Cada detalhe daquela caixinha de madeira e metal era conhecido por Nereide que não cansava de observá-los como se esperasse que o objeto revelasse os seus segredos. Ela tocava os seus lados, abria e fechava a tampa ornamentada com um padrão que a sereia desconhecia e a bailarina prateada que ela encobria. Foi o sistema de engrenagens e alavancas que descobriu no interior dela que verdadeiramente a intrigou. Aquilo devia funcionar como um relógio, mas não havia números ou ponteiros em parte alguma. Nereide percebeu o eixo abaixo do pé da bailarina que estava posicionada como a bailarina do barco ficava quando dançava e o possível funcionamento da caixinha veio como um golpe de luz. Ela devia ser uma máquina que fazia a bailarina prata dançar. Contente com sua descoberta, Nereide balançou a caixinha e girou a bailarina com cuidado para não quebrá-la, mas nada aconteceu. Ela abriu uma fresta afastando milímetros um dos lados da caixa e olha para seu interior encharcado e emperrado. Para fazê-la funcionar seria necessário desmontá-la para uma limpeza e montá-la de novo, o que seria um trabalho para um sábio conhecedor de equipamentos humanos, e não para uma sereia que passava o tempo penteado os cabelos à beira do mar e cantando sortilégios.

Cântico de sereias.

Isso era algo em que Nereide era boa, mas ela não sabia se iria ser útil para trazer vida de volta à caixinha. O cântico de sereia era conhecido por fazer as pessoas verem o seu maior desejo e hipnotizar os homens para atraí-los para a morte. Nereide se perguntava se cantar para controlar a água como fazia para a espuma das ondas e a névoa tomarem formas distintas para enganar os humanos faria a água sair do interior da caixa, deixando as engrenagens se mover livres. Ainda que não fosse o ideal era algo a se tentar. Nereide pôs a caixinha ao seu lado na rocha e olhou de um lado para o outro para ver se algum barco estava por perto. A névoa era espessa para ver, mas aquele era um lugar pouco freqüentado, ainda mais num clima ruim. O barco da bailarina também já teria ido embora há muito tempo. A sereia inspirou a água do ar e entoou solenemente o seu cântico.

A âncora subiu normalmente depois que Simone girou a manivela do guincho e ignorando o frio terrível que fazia ela permaneceu no convés para desemaranhar algumas cordas que seriam usadas para atracar. Então, ela ouviu a canção. No começo não parecia nada demais. Talvez fosse o vento ou o barulho das águas que se agitava aos poucos, mas ela foi aumentando e estava muito clara. Simone não compreendia a canção, apesar de que era uma das mais belas canções que ouvira. Ela apura seus ouvidos tentando determinar em que direção estava e percebe que ela vinha de algum ponto à frente, onde há poucos minutos atrás estavam as luzes do porto, que estavam agora se deslocando rapidamente à esquerda, indicando que o barco fez a volta sem que ela notasse. Simone caminha com cuidado pelo convés e entra na cabine de comando.

- Tiago. É impressão minha ou o barco fez a volta? – ela pergunta.

Tiago não responde. Ele estava rígido com suas mãos no timão olhando fixamente para além do vidro.

- Tiago, você está me ouvindo? – Simone se aproxima e toca seu ombro, sem obter nenhuma resposta.

- Tiago! – Simone elevou o tom de sua voz à quase um grito. Tiago, porém, permaneceu indiferente à sua presença como se Simone fosse um fantasma mais impalpável que a névoa que encobria o horizonte. Simone tenta focar as luzes do porto que sumiam à esquerda. O barco estava muito ao sul do que deveria estar. Se aproximando da fonte de onde vinha a melodiosa canção.

- Tiago! Está me ouvindo? – Simone agarra seu braço e tenta acordá-lo o agitando repetidamente. Por um estante, ele saiu do olhar vago em que estava e olha diretamente para ela.

- Simone?

Mas foi por um momento apenas. A canção da sereia estava próxima demais, suprimindo a consciência do pescador como a água sufoca a respiração de um náufrago. Ele empurra Simone e anda para a porta.

- Aonde você vai? – Simone pergunta se levantando e tentando segurá-la. Tiago se livra de suas mãos, alcançando a porta para o clima frio do lado de fora. Simone segue Tiago e o agarra num abraço desajeitado ao alcançá-lo no meio do convés. Ele luta para se soltar dos braços dela e mergulhar no mar bravio para encontrar a canção que inundava seu espírito.

- Olha para mim, Tiago! O que está acontecendo com você?

Tiago não esboçou a menor expressão ou qualquer outro sinal de que ele estava ali, e que a compreendia. Ele se soltou dos braços de Simone e a empurrou para longe. Ela caiu no piso molhado do convés, desorientada pela pancada na cabeça. Quando se recompôs, tudo que ela pode ver foi Tiago mergulhar nas águas escuras e tempestuosas.

- Tiago! – o grito de Simone se perdeu nas sombras assim como o homem a quem o nome pertencia.

Ela chega com alguma dificuldade ao lugar em que ele pulou. Ainda zonza pela queda e pelo balançar desgovernado do barco, ela procurou por Tiago, sem encontrar absolutamente nada além do breu interminável que a iluminação fraca das lanternas a gás não conseguiam quebrar, até que um relâmpago explodiu no céu relevando o contorno da paisagem à sua volta. Ela não encontrou Tiago, mas avistou outra coisa com que deveria se preocupar.

Simone se move o mais rápido que pode pelo convés e alcança a porta da cabine de comando. Pondo suas mãos no timão, ela reúne suas forças restantes para girar o leme e desviar o barco da rota para os rochedos, para onde ia de encontro a sua destruição.

O cântico de sereia que Nereide cantava com renovado esmero não estava surtindo o efeito desejado na caixinha de música e em sua bailarina mecânica que permanecia imóvel e sem vida como a pedra sobre a qual ela estava. Nereide tentava por a cada palavra que cantava mais de sua força de vontade para persuadir a água a percorrer todo o interior da caixinha e expulsar as impurezas que embargavam o seu funcionamento, mas apenas a névoa que a envolvia respondia sua canção de forma significativa, girando ao redor da sereia num turbilhão disforme. Dele se destacam pontos de luz que se aproximavam brilhando como grandes olhos acusadores.

Nereide abandona seu cântico temporariamente e encara aqueles focos luminosos até que eles estejam quase em cima dela. Depois, a visão da proa cortando a névoa como uma barbatana de metal fez Nereide subir de sobressalto para a rocha mais alta para evitar o impacto da estrutura que chegava empurrada basicamente pela maré e pelo motor que roncava.

Na cabine de comando Simone gira o timão para a direita e o barco faz a volta nesse sentido, evitando por um triz bater de frente onde Nereide estava sentada. Porém, essa manobra desesperada não pode evitar uma protuberância rochosa que rasga um corte torto no costado do barco a partir da base da proa. Ele tomba para a direita e começa a afundar, sumindo para o interior daquele espelho de trevas.

Nereide observa entorpecida o barco ser engolido pelo mar, enquanto na pedra mais baixa a caixinha de música jazia quebrada pela onda deslocada pelo movimento do barco que arrastou a caixa da bailarina e a golpeou contra a pedra. Nereide arrasta sua cauda sobre a superfície irregular da formação rochosa engatinhando com suas mãos até a base mais baixa e pega a caixinha como se pegasse um animal ferido. Não podendo fazer mais nada, Nereide olha adiante para a verdadeira criatura abatida que afundava moribunda perto dos rochedos, deixando à vista apenas uma parte de sua barriga de metal a marcar o local de seu sepulcro. Nereide mergulha, atravessando a maré até tocar no costado e procurando por uma entrada ela contorna a embarcação. Dentro dela, Simone lutava para manter a calma e encontrar a saída da cabine de comando totalmente submersa. Depois que virou, a água havia entrado muito rapidamente no barco, submergindo Simone que tateava exaustivamente toda a cabine em busca da porta. Esta se encostou ao leito que subia pelos rochedos deixando apenas uma fresta entre ela e a rocha, onde mal dava para passar uma pessoa. Simone batia nas paredes se esforçando para segurar o fôlego que pouco a pouca a abandonava. Quando bateu no vidro, ela estava fraca demais para causar a mínima rachadura. O mundo parecia se tornar um borrão indistinto para os seus sentidos e ela não veria Nereide se aproximar do outro lado mesmo se as lanternas a gás não tivessem se apagado. Nereide desce mais e encontra o espaço entre a cabine e o leito, por onde se esgueira e entra no barco. A sereia procura por sobreviventes, encontrando Simone desacordada no canto da parede. Ela pega a bailarina pela cintura e a carrega para a porta onde o espaço entre ela e a rocha era estreito demais para as duas passar ao mesmo tempo, de modo que Nereide saiu primeiro e tentou puxar Simone pelos braços. O vestido de Simone parece enganchar enquanto Nereide a puxava para fora. A sereia tentou puxar com um pouco mais de veemência e Simone é libertada com a barra do vestido rasgado desde a altura do joelho. Nereide leva Simone até a superfície e a carrega para os rochedos, onde tinha deixado a caixinha de música, deitando seu corpo frio na pedra. A pele de Simone estava pálida. No seu peito estático pela ausência de respiração o silencio substituiu os batimentos cardíacos. Nereide que sabia reanimar náufragos tentou respiração boca a boca e massagem cardíaca, mas se encontrou impotente ante a morte de Simone, cuja vida se esvaiu como a névoa se dissipará no romper da manhã.

Nereide permaneceu junto de Simone por mais algumas horas, velando o corpo que não encantaria mais nenhuma platéia, nem Tiago nem qualquer outra pessoa com sua dança. Quando estava perto do amanhecer, Nereide pôs a caixinha de música perto de Simone como um pedido de perdão e mergulhou no mar. Não tardaria para os pescadores sentirem a falta de Tiago e Simone, velejando em busca deles e encontrando o barco naufragado perto dos rochedos. Não seria difícil para eles deduzirem o que aconteceu. Um casal passeando de barco quando o tempo fechou fazendo-os errarem o caminho de volta para o porto, mas indo direto para os rochedos. Ninguém sequer desconfiaria do envolvimento de uma sereia e de seu cântico mortal. Mas Nereide sabia. Ela pensou que seu cântico havia causado aquilo no momento em que viu o barco vindo direto em sua direção e suas suspeitas se confirmaram quando ela entrou no barco e encontrou apenas Simone. O homem com quem ela estava provavelmente teria pulado do barco pouco antes e se afogado no mar.

Nereide nunca tinha matado nenhum humano ou afundado um barco. Ela nadou para o fundo, para o lar dos sereianos, com a culpa sendo mais esmagadora que as pressões oceânicas, sabendo que não poderia fazer mais nada, apenas lamentar. Contudo, esquecer não era uma escolha aceitável para ela. Nereide sentia que devia àquela bela mulher que dançava no convés do barco. Nereide se recorda de quando tentava purificar a caixinha de música e a névoa e a espuma das ondas respondiam ao seu cântico tomando as formas que ela quisesse. Assim ela faria. Era só se concentrar para isolar o poder que controla a água e anular a propriedade que enfeitiça os homens. Ela era capaz de fazer isso. Ela não tinha feito o mesmo nos rochedos por pensar que nenhum barco estava por perto naquela noite. Graças aos dons de sereia que Nereide tinha herdado do povo do mar que possuía mais segredos e magia do que se pode imaginar, o balé de Simone enfim teria o seu espetáculo.

Na cidade costeira, a notícia do naufrágio que matou Simone e Tiago se espalhou feito uma onda. Os pescadores que trabalhavam com Tiago se compadeciam com a sua morte e de sua noiva. “Pobre Simone” alguns falava “Estava tão animada com sua apresentação de balé”. Entre o elenco do teatro o susto que se seguia à chegada da notícia não era menos que entre a família dos dois. “Ela era uma bailarina talentosa como poucas” diziam “E pensar que os dois estavam de casamento marcado”. Porém, rápido como se espalhou a notícia da tragédia se espalhou também um boato curioso. Os pescadores comentavam que quando uma tempestade se aproximava e seus ventos se lançavam contra os barcos, se podia ouvir ao longe uma voz melodiosa entoar um canto de beleza sem igual. Nesse momento muitos juram que quando estavam perto dos rochedos onde o barco de Tiago afundou, eles viram as espumas das ondas que batiam contra as pedras tomar a forma de uma bailarina. “Bobagem” alguns céticos ousavam falar “Estão inventando história à custa da tragédia alheia”. Mas outros estavam convencidos “É verdade! Eu mesmo vi quando estávamos perto procurando o corpo de Tiago. Era como ver uma bailarina dançar”. “Isto é um sinal divino” acreditavam alguns pescadores. “Pode ser um fantasma” outros falavam. “Parece mesmo é trabalho de sereia” havia quem se arriscava a palpitar. Entre crentes e descrentes, ninguém mais saia de barco no menor sinal de tempestade, de que o mar poderia se agitar de repente ou se uma névoa encobria tudo. Em contrapartida, aumentou muito o número de pessoas que visitavam o porto pouco antes ou pouco depois de uma chuva carregando um binóculo para ver a pedra da bailarina, como já estavam chamando os rochedos. Havia dias em que quando ainda caia uma garoa, um grupinho de pessoas se reunia no cais. Alguns olhando para o mar através de binóculos e apontando para os rochedos, jurando que estavam vendo a névoa formar a bailarina que dançava ao sabor do vento. Outros apenas franziam a testa sem saber o que esperar. E assim aquele pequeno porto foi se tornando conhecido e destino de visitantes que iam ver a famosa pedra onde a água dançava como uma bailarina, ou o lugar de passeio de pessoas que simplesmente saiam para ver o mar e descobrir que ele continuava bonito, apesar das tempestades.

Jorge Aguiar
Enviado por Jorge Aguiar em 15/12/2012
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