O Vale das Almas - Cap. 02 - Vila da Colina

------------------------------------------------

Olá.

Esse texto faz parte de uma história maior contada em capítulos. É recomendável, para uma maior compreensão do mesmo, ler os capítulos anteriores antes de continuar apreciando esse conto.

Obrigado pela sua visita e boa leitura.

------------------------------------------------

Vila da Colina, última parada em Thades a caminho de Eleonor. Um pequeno vilarejo portador de uma localização privilegiada no topo dos morros ao leste da capital, à margem da Floresta das Luas, de onde se pode ter uma excelente visão da mata verde escuro e de uma grande região próxima à fronteira.

Em tempos passados, quando os dois reinos nutriam uma relação estável, foi uma cidade bastante movimentada. Ganhou casas e estalagens, onde todo tipo de pessoa se hospedava. A agricultura cresceu para atender as necessidades das diversas caravanas. O comércio atingiu proporções tão grandiosas que foi iniciada a construção de um forte para proporcionar mais segurança à cidade.

A população era numerosa, a cada instante chegavam e partiam dezenas de viajantes. Famílias se estabeleciam como ferreiros, feirantes, criadores, ou qualquer coisa que pudesse lucrar com o mercado emergente da cidade. Tempos gloriosos que pareciam nunca ter fim.

Hoje a Vila da Colina é quase uma cidade fantasma, poucas pessoas ainda moram nela e seriam suficientes duas ou, no máximo, três carroças para tirá–los de lá. A maioria das casas está vazia e muitas foram abandonadas, a construção do forte foi interrompida pouco depois da primeira torre ter sido erguida e, o que serviria para alojar os exércitos de Thades, abriga apenas três soldados. Ela mudou do status de cidade para o de vila, e passou a ter uma prioridade cada vez menor perante o reino. Poucas lavouras, onde antes eram campos arados que alimentavam centenas, fornecem alimento suficiente para sobrevivência dos que ficaram.

A vila acorda com o sol, mesmo que este apareça inibido atrás de grossas nuvens, e junto com os primeiros raios já existem pessoas trabalhando em plantações ou cuidando dos poucos animais. Apesar da escuridão do dia nublado, a única hospedagem que resiste ao tempo abre suas portas cedo. O Descanso da Colina é uma construção imponente na singela cidade, localizada na principal rua da vila, onde centenas de comitivas e sonhadores de diversas partes de Quiméria transitavam.

No passado, seus três andares eram organizados para atender a todas as necessidades. No térreo, após o enorme portão dourado que se abria lentamente e guardado por homens em armaduras luxuosas, fica a taverna. Um enorme tapete estampado conduzia do portão ao salão principal onde várias mesas finamente decoradas eram cobiçadas, geralmente era necessário realizar reserva para ser atendido. Castiçais com velas iluminavam as mesas e os arranjos de flores que as enfeitavam, artoches presas nas colunas e nas paredes brilhavam intensamente e proporcionavam uma ótima visibilidade para o divertimento geral, homens e mulheres belos e bem vestidos serviam as mesas, sempre com um cativante sorriso. No balcão eram servidas as bebidas: cerva, vinhos, hidromel, e até suco orc faziam parte do cardápio. As janelas enormes eram separadas por quadros e esculturas de mais alto bom gosto. Ambientes isolados atendiam a quem quisesse ter mais privacidade. Outros ficavam bem próximos ao palco onde mágicos, bardos e comediantes sempre se apresentavam. Escadas decoradas com tapetes e estátuas levavam a um pára–peito que se estendia em torno de toda a taverna, este era usado como salas especiais por proporcionarem uma melhor visão das atrações.

Uma enorme escada em um canto reservado da taverna sempre era guardada por soldados bem armados, mas muito discretos, que controlavam o acesso aos andares superiores. No segundo andar ficavam os quartos dos hóspedes, acomodações confortáveis e com um certo luxo que atendiam a grande parte das pessoas, todos possuíam banheiros individuais e dois cômodos, uma varanda, de onde se podia ver o movimento das ruas, e camas aconchegantes. Tapetes, estamparias e quadros refinavam a decoração.

O maior atrativo do Descanso da Colina era seu único quarto no terceiro andar. Toda a nobreza de Thades e Eleonor, principalmente seus soberanos quando passavam pela cidade, hospedavam-se nele. Um andar inteiro de luxo e riqueza onde as paredes eram cobertas por papéis que pareciam ter vida, portas e móveis feitos com a melhor madeira extraída da Floresta Alta e trabalhadas pelas mãos habilidosas dos gnomos, castiçais de ouro sustentavam velas mágicas que iluminavam mais que velas normais, talheres de prata e porcelanas feitas pelos gnomos da cidade de Mishar, em Metas, reluziam sobre a mesa sempre repleta de flores e frutas. As camas eram forradas com lençóis de seda e grossos cobertores. Em todo cômodo existiam lareiras feitas de pedras.

Todos pensavam que esta seria a primeira hospedaria a não resistir ao tempo, mas Brumo, seu proprietário, nunca admitiu que o estabelecimento um dia pudesse fechar. Mesmo hoje, com os quartos em sua totalidade vazios, as cadeiras empilhadas sobre as mesas indicando que a taverna já não tem a mesma vida de antes, com menos quadros e esculturas e, principalmente, com o terceiro andar trancado há muito tempo.

Brumo é um homem alto e forte, ligeiramente gordo e com pouco cabelo, usa uma barba cheia e vermelha e vive em companhia da mulher e de duas filhas, juntos são os únicos funcionários da hospedagem.

– Jéssica já voltou, Lúfia? – perguntou Brumo à esposa – Já temos clientes aqui, e este veio de fora, por que Jéssica demora tanto para buscar o leite.

– Calma, Brumo. Jamira esta servindo o homem. – disse a esposa – E Jéssica logo chegará com o leite, eu mandei que ela pegasse ovos também.

Desviando os olhos para o portão de entrada, a mulher continuou.

– Olhe. Turvino está vindo tomar seu desjejum também.

Uma das pesadas portas da taverna se abriu e entrou um homem de idade avançada usando uma capa verde que cobria todo o corpo, sua cabeça de cabelos grisalhos estava envolto por um chapéu também verde e de abas largas, que escondiam olhos miúdos e negros, uma pele enrugada e um nariz fino. Apesar do volume de suas vestes, podia–se notar a magreza do homem.

– Bom dia, Brumo. Senhora. – Dirigindo–se ao dono do estabelecimento e sua esposa.

– Bom dia, Turvino. – Disse Brumo com voz grossa, sua esposa apenas fez um sinal com a cabeça.

– Jovem Jamira. – Continuou Turvino – Trabalhando cedo para uma garotinha de apenas onze anos. – Concluiu lançando um olhar de desaprovação para os pais da garota.

– Começando cedo, Turvino? Cuide de sua vida, eu cuido da minha e da minha família. – Respondeu Brumo naturalmente.

Turvino caminhou até uma mesa onde Jamira estava colocando pratos.

– Estas meninas teriam mais chances se você fosse morar em Thades, elas...

– Eu já falei quem cuida da minha família, Turvino. – interrompeu Brumo não tão natural e gritou – Onde está Jéssica?

Mais uma vez a porta tornou a se abrir e por ela passou uma garota com cabelos vermelhos que tomavam a forma de uma longa trança, alcançando a cintura. Usava um vestido simples e um pouco velho coberto por uma capa grossa. Enormes olhos escuros que apresentavam um pouco de ansiedade e um rosto jovial. Vinha carregando um balde e abraçada a uma cesta.

– Estou aqui, pai. – disse a garota com voz cansada e ofegante, esforçando–se para não derrubar nada – Desculpe a demora. É que a vila está agitada, parece que encontraram outro.

Brumo, Lúfia e Turvino olharam com espanto para a garota.

– Você tem certeza, Jéssica? – Brumo tentava ver o movimento na rua enquanto se apressava em direção à garota.

– Quem será dessa vez? – Perguntou Lúfia.

– Eu diria que é aquele rapaz que estava aqui a uns três dias. – respondeu Turvino com simplicidade – Os jovens de hoje acham que podem tudo, nunca escutam os mais velhos, principalmente estes que se acham guerreiros só porque tem uma espada na cintura e um cavalo.

Brumo aproximou–se da filha e a ajudou com a cesta e o balde.

– Como você soube?

– Eu ouvi Cássius comentar com Bordo. Eles falavam que encontraram outro e que ele foi levado para a torre.

Nesse instante dois homens irromperam pela porta. Cássius com seus olhos tão escuros quanto os cabelos cortados na altura dos ombros, era alto e detentor de um porte físico invejável, em seu rosto existia um sorriso constante. Bordo era ainda maior e mais forte, os cabelos muito curtos e a pele queimada devido ao trabalho nos campos, ele não escondia um rosto de ansiedade. Ambos vestiam roupas simples e velhas, reforçadas por mantos e capas, marca dos moradores da vila em tempos de frio.

– Oi Jéssica. – disse Cássius – Uma caneca bem grande de hidromel para esquentar o dia, hoje teremos muita chuva.

Pela abertura da porta via–se as nuvens cada vez mais pesadas e carregadas.

– Encontraram outro, Cássius? – interrogou Brumo.

Cássius apenas confirmou com um movimento da cabeça enquanto assoprava as mãos para aquecê-las.

Antes que mais perguntas fossem feitas, outro homem, seguido por duas mulheres, entrara na taverna, e depois mais uma mulher e um garoto. Apesar do vento forte e da eminência de chuva torrencial, em pouco tempo a taverna estava mais cheia do que de costume, parece que toda a vila estava presente, ávidos para saberem algo sobre o ocorrido. As vozes tomaram o ambiente, os donos tiveram mais trabalho para atender a todos e ainda escutar as conversar nas mesas.

– Os Meiremes estavam deixando a cidade antes do amanhecer. – Disse Bordo, na mesa com Cássius. – Eu estava ordenhando o gado quando eles arrumavam as coisas na carroça.

– Ele saiu correndo da floresta, estava ofegante e machucado. Parecia que tinha corrido a noite toda. – Gritava um homem em outra mesa.

– Será que ele terá o mesmo fim do anterior? – Falou Turvino enquanto tomava um gole de café forte.

Por um instante a taverna ficou pensativa, mas rapidamente foi interrompido com os gritos de Cássius levantando–se da cadeira.

– Quanto tempo até ele se enforcar?

– Aposta. Aposta. – Gritou Bordo – Quem vai querer apostar em quanto tempo ele leva para se enforcar?

As vozes aumentaram, muitos gritavam o tempo de vida que restava para o homem e o valor de suas apostas para Cássius e Bordo.

– SILÊNCIO. – Bravejou Brumo.

Todos se calaram e olharam em direção ao balcão.

– Ninguém vai transformar minha morada em uma casa de jogos, Cássius. Muito menos quando se trata de ganhar moedas às custas de um assunto tão perturbador. – falou Lúfia com fervor.

Uma onda de culpa invadiu o ambiente e uma sensação de tristeza dominou o recinto. Há algum tempo atrás, um homem foi encontrado morto na floresta, estava pendurado em uma árvore pelo pescoço, as roupas rasgadas e o corpo coberto por cortes e arranhões, os pés feridos e sujos, seu rosto refletia um misto de terror e medo, seus poucos pertences foram encontrados espalhados pela mata, no caminho que leva ao vale.

– Mas só estávamos brincando, Lúfia. E quem sabe esta não pode ser uma boa idéia para vocês? Transformar o Descanso da Colina em uma casa...

Uma mão pesada pousou sobre o ombro de Cássius e começou a apertá–lo. Brumo estava em pé ao seu lado.

– Eu cuido da minha família, guarde suas idéias para você.

Brumo Afastou–se para entregar ovos com queijo em outra mesa, deixando o ombro de Cássius dolorido e arrancando risadas dos mais próximos.

Não era segredo, Brumo sempre deixou claro que cuidava da família, nunca aceitou, nem mesmo nas épocas de ouro do Descanso da Colina, que se intrometessem em sua vida. Mas, apesar de ser intransigente neste ponto, onde recebia o total apoio de sua esposa, era uma pessoa boa e sempre disposta a ajudar.

O pequeno desentendimento não diminuiu o falatório nem os comentários sobre o homem que deixou a floresta pela manhã. Todas as versões tinham certas divergências, mas falavam, de um modo geral, sobre um homem que estava se arrastando perto da Estrada da Volta, próximo a floresta, e foi encontrado por mais uma família que estava deixando a vila. Os Meiremes socorreram o homem e o levaram até a torre, deixando–o com os guardas. Ele tinha o corpo todo cortado, sangrava e estava fraco. Não carregava equipamento e tinha constantes alucinações dizendo o tempo todo ver uma garota vestida de branco vindo ao seu encontro e descontrolava–se, sendo necessários vários homens para segurá–lo, quando falava dos olhos vazios e tristes da garota.

– Isso tudo é culpa do Louco. – Gritou Mitus, um homem gordo de rosto redondo e com avantajada papada.– Ele traiu Thades e a confiança do rei, e condenou a alma da pobre princesa a isso. – Mitus apontava com a cabeça em direção a floresta, começando a chorar.

– Como um Comandante das Forças Terrestres dos Exércitos de Thades pôde seqüestrar a princesa e matá–la? – Questionava uma mulher próxima ao balcão.

– Ele se vendeu para os elfos da Floresta da Lua, no mínimo eles cobraram a vida da princesa, e agora sua alma agonizante não pode descansar. – indagou Turvino, com raiva em seu rosto – Esses malditos elfos são piores do que os gigantes das colinas...

– Eles não são assim, Turvino. Já li sobre eles. São sábios e lutam apenas por causas nobres. – Interrompeu a suave voz de Jéssica, enquanto ela servia outra caneca de hidromel na mesa de Cássius – Nunca pediriam uma coisa dessa.

– Jovem Jéssica, você ainda é muito nova, tem apenas dezesseis anos e posso lhe garantir, conhecer os povos através dos livros não é o mesmo que estar frente a frente com eles. – Continuou Turvino respeitosamente, mas com a mesma expressão de fúria e batendo com a mão no peito – Eu vi o que restou da tropa enviada para buscar a princesa, vi as flechas com as pontas de prata que aqueles animais usam. – Os olhos de Turvino começaram a lacrimejar – Graças ao Louco meu pai teve que liderar aquela tropa massacrada pelos elfos.

Um vento gélido soprou pela taverna e o som da tempestade - que desabava fortemente na colina seguido pelos estrondos dos trovões - anunciavam que a enorme porta estava aberta, deixando passar um homem vestido com uma armadura que ostenta sua patente e a bandeira de Thades. Saumo, o chefe da guarda local, fechou com dificuldade a enorme porta dupla. Sua capa verde estava tão molhada quanto seus cabelos escorridos nos ombros. Gotas formavam-se e caiam das extremidades do corpo, aumentando mais a poça formada por água e lama sob seus pés. Sua pele pálida estava mais branca devido ao frio e seus lábios ligeiramente roxos.

Imediatamente todos se calaram e permaneceram quietos. Alguns até se assustaram, pensando que a vila estava sendo atacada. Quando Saumo entrou inesperadamente, os olhares apreensivos fitaram o chefe da guarda.

– Carnas. – disse Saumo em direção a um velho sentado com mais duas pessoas – Precisamos de sua ajuda na torre. Por favor, acompanhe-me.

Carnas levantou–se, vestiu calmamente um manto pesado sobre suas vestes de sacerdote, protegeu seu rosto fino e comprido em um capuz, guardou os pequenos óculos que repousavam sobre um longo e pontudo nariz e caminhou até a porta.

– Os deuses estão agitados hoje, Saumo. – Carnas fez uma breve pausa – Não querem mais mortes e sofrimentos, teremos chances de salvar esta vida.

Quando Cássius tentou perguntar algo, foi interrompido pelo olhar de reprovação do próprio Saumo e pela sua mão fazendo sinal para que permanecesse calado.

Os dois deixaram o calor da taverna imediatamente e correram pela rua fria, debaixo de uma chuva a muito não vista, em direção da torre.

– Pelo menos Carnas ainda não foi embora. Temos um sacerdote da ordem de Dotar zelando por nós. – Comentou Mitus engolindo um enorme pedaço de pão.

– Antigamente eram três, e o templo da ordem estava sempre disposto a atender quem precisasse. – indagou Lúfia, enxugando alguns pratos.

– Tempos bons, tínhamos a casa farta, filas para entrar. – falou Brumo com um esboço de sorriso no rosto, parecendo ver toda a movimentação de antes – Mas depois do que aconteceu tudo mudou, principalmente quando encontraram Farren nessa floresta...

– Não! Nunca pronuncie este nome perto de mim, Brumo. – Vociferou Turvino – Graças a ele nossa cidade está morrendo, quando este miserável condenou a princesa a viver atormentada, vagando pelo vale, ele também nos condenou. – Turvino mal respirava – Thades e Eleonor cortaram relações e quase houve uma guerra por causa da loucura e ganância deste homem.

Turvino postou–se de pé, batia com o punho na mesa, e cuspia ao falar. A multidão presente apenas olhava espantada a expressão de raiva do homem. Jamira chegou a derrubar um prato no chão de tão assustada.

– Controle-se, Turvino. – ordenou Brumo, mas o homem mal ouviu.

– Nossas famílias tiveram que se mudar, toda Quiméria quer distância do local onde o Louco escondeu o corpo da pobre princesa. Dizem que é amaldiçoado, que a alma dela vaga atormentada procurando por paz. Estão até deixando de chamar o vale de Vale de Arond e chamando de Vale das Almas.

As mãos pesadas de Brumo alcançaram a boca de Turvino, ninguém na taverna fazia outra coisa a não ser olhar boquiaberto para a reação de fúria de Turvino. Ele nutria um ódio enorme pelos elfos, principalmente pelos elfos da Floresta das Luas, mas nada podia lhe causar mais raiva do que ouvir o nome do homem que causou a desgraça da cidade e quase arruinou Thades.

Cochichos ecoaram pela taverna. Vozes falando ao mesmo tempo a respeito do que acabara de ser dito. Turvino acalmou–se e tornou a sentar–se enquanto Jamira trazia-lhe um copo de água, junto com um olhar de espanto.

O homem respirava ofegante e tomou a água de uma só vez, enxugando a boca na manga da camisa. Permaneceu quieto por algum tempo, olhando a janela que brilhou com a claridade repentina de um raio.

– Você está bem? – Brumo perguntou baixo, com a voz rouca e um tom suave. – Você está bem, Turvino? Quer que eu te leve para casa?

Turvino permaneceu olhando para o mesmo local, a expressão de raiva havia dado espaço para um olhar triste. Brumo sabia que o amigo estava recordando o ocorrido no trigésimo quinto dia do nono mês do ano da Batalha do Desfiladeiro. Relembrando quando seu pai liderou uma equipe pela parte da floresta pertencente aos elfos em busca da princesa e nunca mais foi visto. Brumo continuava ao seu lado, segurando seu ombro.

– Sabe, Brumo? Espero que o Louco tenha tido uma morte horrível no vale. – sussurrou Turvino para Brumo.

– Ele teve o que merecia. – respondeu Brumo.

A taverna observava os dois, mas sem conseguir ouvir o que diziam. Pouco a pouco as bocas começaram a se agitar com sussurros e cochichos nas mesas. Haviam parado de fazer pedidos, estavam esperando a chuva diminuir e aproveitando para conversar sobre os fatos que ocorreram e que mudaram o rumo de toda Thades. Brumo e Jéssica retiravam os pratos sujos e restos de comida das mesas enquanto Lúfia preparava mais uma rodada de bolinhos de queijo para viagem e Jamira lavava as louças.

As diversas histórias do ano da Batalha do Desfiladeiro foram relembradas, nunca houve um tempo como aquele em Thades. Os dez meses que compunham o ano foram os mais conturbados e misteriosos da história da região das planícies altas de Quiméria.

– Os grifos faziam a distância da Torre até a Capital em pouco tempo. – dizia Mitus, o único que continuava comendo.

– Foram de grande importância na Batalha do Desfiladeiro. – completou Lúfia.

– Os gigantes das colinas surgindo em toda parte. – dizia Bordo com ar de excitação nos olhos – E uma tropa de apenas quatro homens erguendo suas armas contra eles no desfiladeiro. – continuou, enquanto levantava–se e realizava movimentos que lembravam o desembainhar de uma espada.

– A festa preparada em Eleonor, para comemoração do casamento do príncipe regente. – suspirou Brumo – Teria sido uma festa magnífica.

– E onde estava o Louco? Certamente conspirando contra o reino. – Bradou Turvino.

– O comandante Guilian Farren...

Uma voz vinda de uma área reservada varou a taverna arrancando olhares dos presentes. Uma voz firme e confiante que pôde ser ouvida claramente entre o abafar da chuva e o mar de vozes.

– ...foi o homem que mais trouxe glórias a todas as planícies altas.

O silêncio foi imediato. Não havia um só olhar que não procurasse o homem envolto na penumbra da área reservada. Olhares atentos tentavam identificá-lo e outros curiosos queriam saber quem pronunciou o nome completo do homem que arruinou e conspirou contra Thades.

Viram apenas um homem sentado segurando um copo tranqüilamente. Ele observava a chuva banhando os campos verdejantes das colinas através da janela embaçada. Parecia não se importar, nem perceber que chamou a atenção de todos, principalmente a de Turvino. Seus cabelos, apesar da pouca iluminação, tinham uma tonalidade cinza. Aparentava uma estatura mediana, era menor que Cássius e Bordo e maior que a maioria na vila. Em uma cadeira próxima repousavam bolsas e equipamentos de viagem, e podia–se notar claramente um enorme embrulho com o formato de uma espada tão grande que só poderia ser empunhada com ambas as mãos.

Mitus forçou os pequenos olhos para ver a expressão do estranho quando Turvino levantou-se e virou em direção à área reservada, mas o homem não se mexeu, dava a impressão de que realizara um pensamento em voz alta.

– O que você disse? – perguntou Turvino, cerrando os pulsos.

Nada foi respondido.

– Calma Turvino. – interviu Brumo – Ele chegou...

– E tenta defender o Louco? – interrompeu Turvino com uma expressão de raiva.

– Aposto em Turvino. – Sussurrou Cássius para Bordo.

– Ele já está velho, aposto no estranho. Quando você perder termina de ordenhar os animais para mim. – Respondeu Bordo.

Brumo tentava acalmar Turvino, a quietude no ambiente era total, menos pela movimentação na mesa dos dois jovens que negociavam o valor de suas apostas até que, novamente, a voz firme da área reservada irrompeu.

– Guilian Farren lutou pela glória de Thades inúmeras vezes. Treinou vários soldados, inclusive você, Turvino.

Turvino e Brumo olharam curiosos para o homem.

– Quem é você, estranho? – perguntou Turvino.

– Um soldado de Thades deve apresentar seu nome e sua patente antes de interrogar alguém. – respondeu calmamente o estranho que contemplava a água escorrendo pela vidraça.

– O que, como você...

– Seu nome e patente. – continuou com firmeza, sem tirar os olhos da janela.

Cássius fazia sinal para Bordo dizendo que logo saberiam quem perderia a aposta.

– O que, que você...

– Qualquer integrante do exército de Thades que se aposenta ainda mantém seu posto e obrigações, soldado.

–Turvino Montelargo, sub–chefe do Forte Thadunes II. – Um tom de nervosismo foi notado facilmente nas palavras de Turvino.

– E o senhor? Como se chama? – perguntou Brumo, disfarçando as mãos trêmulas.

A tensão e a expectativa aumentaram nos poucos segundos que se passaram entre a pergunta de Brumo e o lento movimento em direção à multidão de curiosos realizado pelo homem.

– Silvus Coldaw, Ex-Comandante das Forças Terrestres dos Exércitos de Thades.

Queixos caíram e suspiros de espanto e incredulidade surgiram em cada rosto presente. Mitus engasgou com mais um pedaço de pão, Jamira deixou outro prato cair, Jéssica e Lúfia fizeram o mesmo. Turvino e Brumo não tinham ação.

– Você... quer dizer... o senhor é... Silvus Coldaw? O único homem que conseguiu enfrentar o... Farren... e sobreviver? – perguntou Bordo esquecendo–se da aposta.

– Sobreviver só não. – completou Cássius, transbordando ansiedade.

– Ele foi o homem que derrotou Guilian Farren.