O Vale das Almas - Cap. 03 - Uma Longa História

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Olá.

Esse texto faz parte de uma história maior contada em capítulos. É recomendável, para uma maior compreensão do mesmo, ler os capítulos anteriores antes de continuar apreciando esse conto.

Obrigado pela sua visita e boa leitura.

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Já passava do começo da manhã e a vila, que normalmente levantava-se cedo, parecia não ter acordado naquele dia. Nuvens negras encobriam o céu e tomavam para si os raios do sol nascente. A Vila da Colina encontrava-se mergulhada em ventos tão fortes que balançavam algumas das frágeis construções da vila enquanto dançavam suavemente com os campos de trigo. A água da chuva escorria dos morros e descansavam no leito do Rio Branco. O volume do reservatório aumentou e, pela primeira vez em trinta anos, os diques sangraram.

Poucas casas apresentavam sinais de vida. Fracas luzes trêmulas fugiam pelas frestas das janelas e das portas insistentes em se abrir. Os vastos campos dourados e verdes estavam solitários e os poucos animais não saíram para pastar.

Apenas o Descanso da Colina relembrava seus momentos de glamour, apresentando uma agitação não costumeira para a pequena cidade, principalmente em dias como esses. Não era nada comparado quando Tavaman e Glória Rentani, rei e rainha de Thades em pessoa, se hospedavam ali, mas era acima de qualquer expectativa que Brumo havia imaginado.

A magnífica hospedaria luta bravamente para manter as portas abertas. Seus proprietários acreditam que ainda não é o momento de deixar tudo para trás e se mudar para a capital. Sonham com o dia onde pessoas importantes voltarão a disputar os quartos mais luxuosos e toda Quiméria comerá e beberá novamente na mais grandiosa taverna da região. Este sonho já dura trinta anos, quando a última pessoa, realmente importante, vislumbrou as duas luas surgirem no horizonte da varanda do único quarto no terceiro andar, antes de sua viagem sem volta para um fim desconhecido e uma eternidade vagando no Vale de Arond.

Toda essa espera foi recompensada nesta manhã chuvosa. Silvus Coldaw, outrora comandante do exército de Thades, que ganhou fama na Batalha do Desfiladeiro, estava sentado discretamente em uma área reservada.

– Silvus? É ele mesmo?

– Não sei, já faz tanto tempo.

– Pensei que fosse diferente.

Comentários surgiam em todas as mesas. Não havia uma só pessoa que não falasse a respeito do homem que foi aclamado e condecorado pelo próprio rei, por ter derrotado Guilian Farren. Até mesmo Jéssica e Jamira, que não eram nascidas quando Silvus retirou-se do cargo de comandante, conheciam suas histórias.

– É ele mesmo Bordo, em pessoa! – exclamava Cássius.

– Claro que é. – continuou Bordo – Ele sabe como os soldados devem agir, ele...

– Qualquer um que tenha sido parado por guardas em Thades, sabe como eles agem. – interrompeu Turvino sem piscar, encarando com uma expressão de desconfiança o homem na área reservada.

Silvus apenas observava.

– Metas, Zumiri, Rufos, várias cidades de Quiméria, dizem que até o Continente do Sol conhece os feitos de Silvus. – continuou Turvino abrindo os braços e correndo a cabeça de um ombro ao outro, observando cada um dos presentes. – Como vamos saber se este é o verdadeiro? – fez uma pequena pausa, apontando em direção a área reservada e continuou. – Silvus, no auge de sua carreira, abandonou seu cargo e nunca mais foi visto na capital Thades. Como vamos saber se este não é um impostor que quer nos impressionar e nos roubar?

Turvino virou-se para Silvus movendo sua pesada capa verde para o lado e deixando a mostra uma espada em sua cintura.

– Acalme-se. – disse Brumo segurando rapidamente o braço de Turvino. – Não quero lutas. Elas nunca existiram aqui.

Silvus continuava sem dar importância à hostilidade crescente de Turvino e voltou-se novamente para a janela embaçada, pegando um pãozinho de queijo e comendo-o.

Brumo tentava acalmar o amigo, mas era em vão. As mesas mais próximas se agitaram e o som de cadeiras sendo afastadas ecoou pelo interior do recinto. Mesmo seguro, Turvino caminhava em direção à área reservada, só parando quando a firme voz de Silvus se fez audível.

– Em uma lareira na sala de jantar, contemplada por Arond e Ferna, existe algo para tudo explicar.

Mais uma vez o silêncio dominou o ambiente. As pessoas se entreolhavam sem nada entender, procurando um significado para as palavras de Silvus. Uma resposta estranha em uma situação não tão confortável.

– Estas palavras foram ditas por uma pessoa em seu leito de morte. – continuou Silvus, naturalmente. – E é por isso que estou aqui hoje, para realizar minha última tarefa como oficial de Thades.

A expressão no rosto dos presentes não mudara.

– No terceiro andar desta casa existe algo guardado há muito tempo e que deve ser devolvido a quem o guardou. – Silvus molhou a garganta com um pouco de suco e prosseguiu. – Se não existir nada, eu vou embora e peço desculpas pelos transtornos.

– O que existe na lareira em frente a varanda com vista para o vale? – perguntou Jéssica, atraindo a atenção.

Mesmo estando fechado, o luxuoso quarto era mantido constantemente limpo. Duas vezes durante os dez dias da semana, as filhas de Brumo e Lúfia arrumavam o quarto e imaginavam-se sendo princesas vindas de terras distantes, vivendo em uma corte de riqueza e sonhos. Não existia um centímetro do quarto que Jéssica e Jamira não conhecessem.

– Não sei, mas podemos descobrir. – respondeu Silvus com um leve sorriso para a garota.

Turvino observou Jéssica aproximar-se do pai enquanto esse procurava algo nos bolsos.

– Lúfia. – disse Brumo, tirando um maço de chaves e entregando-os para Jéssica. – Tome conta da taverna, nós não demoramos.

– Nós poderíamos ir. – falou Cássius levantando a mão, Bordo fez o mesmo movimento.

– Vocês ficam onde estão. – respondeu severamente Brumo, enquanto pegava um castiçal com velas em uma mesa. – Tenha paciência, amigo. Voltarei logo e veremos se ele diz a verdade. – continuou segurando firme a nuca de Turvino e dirigiu-se rapidamente com a filha para as escadas que levam ao terceiro andar.

Silvus voltou-se à janela molhada pela chuva e não desviou sua atenção dela, nem mesmo quando esta se iluminava repentinamente com o clarão dos relâmpagos. Sua visão descia a colina e corria as plantações serpenteantes em direção a floresta, procurando o vale. Mesmo distraído, ele podia sentir a dor e o ódio correndo nas veias de Turvino, que permaneceu quieto como havia pedido o amigo. Mitus forçava os olhos para Silvus e depois para as escadas, na esperança da volta do dono da hospedagem. Cássius e Bordo eram os que mais falavam, confirmando que o homem na área reservada realmente era Silvus. Lúfia tentava retirar mais alguns pratos, mas seu corpo tremia o suficiente para atrapalhá-la.

O Descanso da Colina mergulhou em profunda quietude após o som distante da porta no terceiro andar indicar que esta fora aberta. Nada foi dito, todos esperavam com expectativa o retorno de Brumo e Jéssica e o que eles poderiam trazer, menos Silvus, que continuava admirando a paisagem. O som da chuva tocando o solo e os assobios do vento pareciam música, e os segundos que se passaram foram os mais demorados já existentes.

A ansiedade tornou-se insuportável para Cássius e Borbo. Ambos cresceram alimentados com as aventuras e lendas de Silvus e seus quatro leais amigos, e agora estavam tão próximo do mito que não conseguiam ficar quietos.

– Senhor Coldaw. – chamou Cássius timidamente. – Se precisar de algo pode pedir, eu e meu amigo faremos com prazer.

– Isso mesmo. – continuou Bordo. – Seria uma honra para nós servir um comandante comparado ao comandante Farren.

Turvino olhou feio para os garotos, mas permaneceu quieto. O tom confiante na voz de Silvus exaltava respeito, mas a afirmação sobre algo escondido nos andares à cima invadiu sua mente, fazendo-o ficar pensativo.

– No próximo ano vamos participar do Festival da Seleção, queremos entrar para as tropas de Thades. – prosseguiu Cássius.

– Assim como o senhor fez. – completou Bordo.

– Esses jogos bárbaros deveriam ser suspensos. – exclamou repentinamente Lúfia. – Principalmente esse com cavalos, esse que todos lutam para pegar uma argola.

– Os Cinco Círculos. – bradou o sorridente Cássius, mas rapidamente desfez a excitação. – Pena que o único círculo mais próximo para jogar seja na capital.

– Você fala isso por que não é um sacerdote da Ordem de Dotar. – falou Mitus, mexendo toda sua enorme papada. – Eles sim tinham trabalho para cuidar dos participantes após os jogos.

– Tenho sorte de ter filhas. Assim elas não inventam de participar deste festival. – concluiu Lúfia.

– O senhor jogava os Cinco Círculos, senhor Coldaw? – perguntou Cássius ignorando os comentários acerca dos jogos, sendo seguido por Bordo. – Jogava em que posição?

Passou-se pouco tempo até Silvus virar-se em direção a mesa dos exaltados jovens e responder, desviando os olhos lentamente para o topo da escada que leva aos quartos.

– Lanceiro.

O som distante de uma porta sendo fechada se fez presente. A atenção voltou-se imediatamente para as escadas. Sons de passos ganhavam força nos andares superiores, assim como as batidas no peito da maioria dos presentes. Uma iluminação fraca surgiu no segundo andar e foi aumentando a cada instante. Alguns segundos de apreensão seguiram-se até o surgimento dos pés de Brumo no topo da escada, seguidos pelo resto de seu corpanzil. Em sua mão existia um castiçal que reluzia com cinco velas acesas. Toda a taverna fitava a expressão séria no rosto de Brumo, o que era normal quando se referia a ele, à medida que este alcançava metade da escada, mas logo se voltaram para o topo da mesma. Os pequenos pés de Jéssica surgiram e, a cada passo da garota em direção ao salão principal, seu vestido simples foi tomando forma. No mesmo momento que Brumo desceu o último degrau, o sorriso no rosto de Jéssica, que brilhava mais que as velas no castiçal de seu pai, fez-se visível. Nunca a simples garota do Descanso da Colina havia exalado tanta alegria e felicidade, mas toda essa graciosidade nunca foi notada. Os olhares furtivos que correram para o topo da escada, que acompanharam cada avanço de Brumo, agora repousavam atentamente sobre as mãos delicadas da garota. A ansiedade aumentou e a apreensão tornou-se curiosidade. Nas diversas mentes no local só existia uma única questão. O que estaria envolto no embrulho trazido pela garota?

– Estava lá. – falou Brumo em voz alta. – Todo esse tempo escondido atrás de uma pedra solta na lareira.

– A lareira que fica em frente a grande varanda. – continuou Jéssica, transbordando felicidade. – A única lareira do quarto de onde podemos ver as duas luas por inteiro.

Jéssica desceu as escadas segurando o embrulho como quem levava uma bandeja com copos de cristais. Brumo repousou o castiçal novamente na mesa e sentou-se ao lado de Turvino, que encarava com ar de desconfiança o pacote. Ambos olharam para Silvus, suas bocas não precisaram se mexer, pois suas expressões pediam uma explicação.

Jamira correu por entre os pasmos clientes do Descanso da Colina até sua irmã, e começaram a comentar sobre o que poderia estar escondido ali há tanto tempo. Mitus permaneceu imóvel e boquiaberto segurando um pedaço de presunto. Cássius e Bordo apertavam as mãos demonstrando sua felicidade claramente visível em seus rostos. Mas esta felicidade não era pela existência de algo no quarto principal, mas por estarem na presença do ex-comandante de Thades, Silvus Coldaw.

A área reservada encheu-se de luz revelando o vulto de um homem de meia idade, mas rapidamente retornou à penumbra característica do local. As pessoas levantavam-se para ver o pacote, menos Brumo e Turvino, que não desviavam seus olhares cobrando uma resposta, e Cássius e Bordo, que não conseguiam ficar quietos, e se arriscaram em mudar de mesa para ficar mais perto de Silvus.

– O que deve ser? – perguntava Jamira.

– Não sei, parece ter sido embrulhado com muito papel e pano. – respondeu Jéssica, apertando-o levemente.

– Por que você não desembrulha e descobre? – fez-se audível a voz de Silvus, mesmo entre tantas vozes concorrentes e a música da chuva ao tocar o solo.

Não precisou ser questionado novamente, Jéssica começou a rasgar o embrulho e rapidamente foi ajudada pela irmã. Ambas tentavam abrir apressadas, mas com cuidado para não quebrar algo frágil que poderia estar ali.

Pouco tempo se passou até que todos que cercavam as garotas fizeram um sonoro “ohhh”, não de espanto, mas de admiração.

Quando Jéssica e Jamira retiraram a última camada do embrulho, um veludo de cor azul bastante escuro, libertaram uma belíssima e fina tiara feita de prata e ornamentada com cristais transparentes, eles pareciam emitir luz própria e tomavam emprestados a textura do tecido.

– Como você sabia que existia algo lá? – perguntou Turvino sem desviar de Silvus. Brumo virara em direção as filhas. – O que isso significa? Você conheceu quem guardou isso?

O rosto de Turvino tremia abaixo dos olhos. Sua boca cerrada parecia sumir e seus dedos finos batiam na mesa.

Silvus fitava o tumulto atentamente até que, pela primeira vez, desviou a cabeça em direção a Turvino e cruzou-lhe o olhar. Turvino trazia fúria e ódio e Silvus confiança e compreensão.

– É uma longa história. – respondeu calmamente Silvus, sempre com uma voz firme, mas em um tom baixo. – Já faz muito tempo, muito tempo que tudo aconteceu.

– Nós sabemos bem o tempo, estranho. – retrucou Turvino também com a voz firme. – Estamos presos nele. Quero saber como você sabia que essa... esse... – Turvino ainda não sabia o que estava no embrulho e que agora enfeitava a cabeça de Jamira. – ...esse pacote estava aqui.

Silvus percebeu, com um leve movimento dos olhos, que Brumo também o fitava e que as pessoas no centro da taverna começavam a virar em sua direção. Até mesmo Cássius e Bordo, dois exaltados fãs de suas aventuras, estavam quietos. Lúfia largou os pratos e andava para perto do marido. As garotas também se voltaram para a área reservada. Diferentemente de Turvino, que transmitia desconfiança e raiva, todos passavam curiosidade e respeito.

Um relâmpago rasgou o escuro e carregado céu e, após o estrondo do trovão que invadiu todo o ambiente, Silvus afastou os pratos em sua mesa e virou a cadeira em que sentava na direção dos olhares curiosos.

– Eu deveria partir cedo, mas, como falou o sacerdote Carnas, os deuses estão agitados hoje. – falou Silvus apoiando o braço sobre a mesa e respirando fundo. – Com esta chuva ninguém pode ir a lugar algum.

A janela mais uma vez se iluminou e banhou o rosto de Silvus com uma luz branca. Este encarou os olhos fixos de Turvino.

– Vou contar algo que trago comigo. Algo que tenho guardado em segredo por vários anos.

Os presentes apenas escutavam. A expressão de raiva se desfez em Turvino. Cassius e Bordo acordaram um sorriso que tomou conta de suas faces.

– Você vai contar o quê? – perguntou Brumo franzindo a testa.

– Uma de suas aventuras? – praticamente gritaram os jovens, quase em coro.

– Algo que aconteceu no ano da Batalha do Desfiladeiro. – respondeu Silvus com um tom importante.

– Nós sabemos o que houve naquele ano, estranho. – irrompeu Turvino. – Sabemos de todas as histórias...

– Nem todas, Turvino. – interrompeu repentinamente Silvus, aumentando o ar de importância. – Nem todas. Como eu já falei, vou contar um segredo só meu, e você não imagina como é difícil guardá-lo.

– Essa história é sobre essa tiara também? – Jamira apontava para o enfeite em sua cabeça, enquanto abraçava a irmã.

– Ela está incluída também. – respondeu afetivamente Silvus.

Cássius e Bordo estavam quase em cima de Silvus. Brumo cruzou os braços enquanto recebia as mãos molhadas da esposa sobre os ombros. Mitus, com a boca escancarada, esqueceu a comida. Os demais estavam sentados e ansiosos. Turvino cruzou os braços igual ao amigo, mas levou a mão ao queixo, quase encobrindo a minúscula boca.

– O ano da Batalha do Desfiladeiro foi há trinta anos. – continuou Silvus. – Mas tudo começou antes, dois anos antes, quando recebi a indicação do chefe Samonur do Forte de Har para participar do Festival da Seleção e entrar para as forças do exército de Thades...