"Escuro"

Logo eles chegarão aqui. Logo. Como posso me defender? Por anos consegui fugir, mas agora sei que não há mais saída. Não, não há saída. Por isso escrevo. Guardei o segredo por muitos anos comigo para proteger aos que amo, mas agora... Oh, agora sei, no fundo, que me enganei por todo este tempo. Eles estavam mortos, mortos, mortos... E por mais que esta palavra retumbe incessantemente em meus pensamentos, ainda não consigo acreditar.

Quando fugi, no ano de **** da cidade onde morava, o fiz pensando em protegê-los. Mas – ai de mim! – sempre soube que a marca me perseguia, e nunca deveria nem mesmo ter-me sentido seguro o suficiente para acreditar que poderia levar uma vida normal. Mas já estava estabelecido como pequeno comerciante a quase 10 anos e a bela Rose, tão pura e tão cândida em seu vestido azul e seus cabelos tão loiros, fazia com que eu acreditasse que nada mais no mundo importava, a não ser a ventura de passar os dedos nos anéis de seus cabelos.

Com o consentimento de seus pais, casamos, e vivemos uma vida venturosa por cinco lindos anos, ao longo dos quais nasceram nossa querida Maria – tão bela quanto à mãe – e Pierre, ainda bebê quando tudo abandonei pensando em protegê-los.

Mas já era tarde. A marca, sempre a marca, grande e negra, denunciando minha posição. Talvez se eu tivesse ido embora aos primeiro sinais... Começou com o cachorro, lembro-me bem agora. Era um fiel companheiro, sempre parado a porta, ou me esperando ao portão após um longo dia de trabalho. Quando este apareceu em uma manhã sem os olhos e com marcas do que pareciam garras em seu dorso, imaginamos que teria sido obra de algum animal selvagem que andasse nas cercanias. Mas que animal selvagem arrancaria ao outro os olhos? Depois disso, foram as galinhas, seis ao total. Todas com o pescoço quebrado e sem o pé esquerdo.

E, por fim o último e inequívoco sinal – o espelho quebrado de meu banheiro, com sangue, (oh meu Deus, era tanto, tanto sangue! Minha filha, onde ela estava, o que houve com ela? senhor, e meu bebê?) . E então eu sabia. Eram ELES. ELES haviam me encontrado, ELES ESTAVAM ALI e eu tinha que fugir para protegê-los. Ledo engano! Já aquela altura tudo já estava perdido, tudo ... oh meu Deus eles estão na porta, ELES, e eles batem, e batem, mas sabem que não precisam podem atravessá-la no momento que quiserem. Vieram me buscar. Eu deveria ter acabo logo com minha vida, logo no início, da outra vez. Com minha morte, a marca, esta insígnia negra em mim tatuada desapareceria... ELES chamam meu nome, estão aqui!

Não vou suportar, não vou... Tenho algo guardado em uma gaveta como último recurso, e irei usá-lo. Não vou suportar os interrogatórios para descobrirem se contei ou não sobre ELES para alguém, os choques, os banhos frios, as celas escuras... O escuro... Não vou suportar... Não vou (...)

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- Qual a hora do óbito? Pergunta o detetive ao legista que examina o corpo.

- Eu diria que não muito tempo atrás, responde este. – Algo em torno de uma, no máximo uma hora e meia, provavelmente minutos antes de seus homens arrombaram a porta. Ele temia a prisão, por certo.

- Na verdade eu chego a sentir pena, diz o detetive. – Este não iria para a prisão, mas para o hospício. Há alguns anos atrás foi liberado de uma clínica psiquiátrica por estar supostamente “curado” de usa mania de perseguição. No entanto, dois meses depois, matou os pais a machadadas por suspeitar serem cúmplices DELES, seja lá quem fossem em sua mente e fugiu. Passou anos e anos vivendo sob uma identidade falsa, até ter nova crise acerca de um ano atrás e degolar a esposa e filhos. Um caso lamentável, se quer saber.

Abanando a cabeça, o legista recolhe seus instrumentos, já que nada mais há que possa fazer ali. E já que, infelizmente, ninguém que tivesse conhecido o falecido ainda vivesse, ninguém poderia contar que uma visível mancha de nascença, de formato oblongo, que este possuía no antebraço esquerdo, havia desaparecido.

*conto que comporá o livro "Sangue na lua e outros contos"

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