O Vale das Almas - Cap. 04 - Cinco Circulos

------------------------------------------------

Olá.

Esse texto faz parte de uma história maior contada em capítulos. É recomendável, para uma maior compreensão do mesmo, ler os capítulos anteriores antes de continuar apreciando esse conto.

Obrigado pela sua visita e boa leitura.

------------------------------------------------

O início da Estação das Flores sempre foi aguardado com muita expectativa pelos moradores de Har, uma cidade importante do interior de Thades, que se destaca por produzir e exportar as mais belas flores e as mais saborosas frutas.

Em Har existem duas grandes festas no ano. A Festa de Nerva, em homenagem à deusa da natureza, realizada no primeiro dia da Estação das Flores e a Dança das Árvores, que acontece no primeiro dia da Estação dos Ventos. Estas festas estendem-se por quatro dias.

Sua população divide-se basicamente em dois tipos: os que plantam e os que vendem. Gerações inteiras trabalham nos campos enquanto outras barganham com caravanas e representantes de diversas cidades.

Regiões de destaque para Thades, como Har e suas exportações, recebem um forte como símbolo de extensão da capital. Não são comparados aos grandes Thadunes, enormes fortalezas preparadas para guerra e espalhadas estrategicamente pelo reino, mas possuem estrutura suficiente para abrigar altos postos de comando.

Casas simples surgem em torno de um forte com o nome da cidade. O Forte de Har tem capacidade para um pequeno exército, do alto de suas duas torres pode-se ver toda a cidade, os campos floridos e os bosques verdejantes.

Os moradores de Har são alegres e adoram festas e todas as coisas que elas trazem: bebidas, danças, músicas e jogos.

Tendas são armadas em um grande pátio próximo ao forte e enfeitadas com flores que exalam suas agradáveis fragrâncias pelo ar. Famílias mais ricas exibem-se com extravagâncias em comida e bebida. Os acordes de violas, flautas e tambores criam a harmonia das músicas que alegram os moradores e os viajantes vindos de todas as regiões.

Todos comemoram por várias horas, até soarem os gongos e trompetes anunciando o início dos jogos.

Uma euforia geral toma conta quando os portões da arena do Forte de Har são abertos. As arquibancadas são invadidas rapidamente por centenas de espectadores sedentos para assistir o esporte mais difundido em Thades: os Cinco Círculos.

Inicialmente um treinamento militar, os Cinco Círculos mistura estratégia e habilidades em combate. É praticado por doze pessoas montadas em cavalos divididas em duas equipes.

O campo de jogo é formado por quatro círculos concêntricos de tamanhos diferentes. No maior e mais externo, sempre de grama verde, ficam os integrantes da equipe que irão atacar. Logo após, fica um círculo de terra batida, este usado para os jogadores extras da equipe que tentará se defender. Em seguida, existe o círculo de maior movimentação do jogo, também de grama esverdeada, mas pode-se encontrar facilmente manchas vermelhas de sangue espalhadas por toda parte. Nele existem seis celas, marcas no chão com a mesma distância umas das outras – geralmente de forma circular - indicando o local onde os jogadores de defesa devem iniciar a partida. O quarto círculo, feito de terra, fica no centro do campo e possui quatro colunas. Cordas são cruzadas no alto das colunas e, onde essas se cruzam, fica pendurado o último círculo, uma argola prateada pouco maior que um punho cerrado.

Portões opostos são abertos e, sob uma vibração ensurdecedora, entram os integrantes de cada equipe. Os jogos começam no segundo dia das festas e seguem até o último e, em cada dia, ocorre uma partida dos Cinco Círculos. Neste segundo dia da Estação das Flores, a primeira partida disputada traz uma torcida especial para um dos participantes.

– Onde ele está?

– Ele não entra agora, sempre a equipe convidada ataca primeiro. É como se eles estivessem atacando o nosso castelo.

– E por que entraram esses com armas e esses com escudo?

– Ah, Melistha. A partida vai começar, e eu já expliquei da última vez.

O som de um gongo ecoou mais alto que a avalanche de vozes e aplausos dos espectadores e os seis homens a cavalo da equipe visitante partiram em direção da argola. Os dois torcedores acompanharam os movimentos dentro dos círculos. Um vibrando com cada lance, um garoto de quatorze anos, com cabelos escuros e pele branca. O outro, uma garota de dezessete anos, com longos cabelos dourados e cacheados, não entendendo quase nada.

– Ele está ali. – aponta a garota – Junto com os outros.

Ela põe a mão no bolso e retira um pequeno espelho redondo e começa a movê-lo contra o sol, fazendo-o brilhar.

– Toda vez você traz isso. – falou o garoto segurando o braço de Melistha, tentando abaixá-lo. – Ele não vai ver. Ele está concentrado no jogo.

A garota baixou o braço e continuou olhando para onde apontara momentos atrás.

– Ele viu sim. – disse em voz baixa para si mesma. – Sei que viu.

Um grito próximo aos dois trouxe Melistha de volta ao jogo e ela iniciou sua bateria de perguntas, balançando os ombros de Silmar, sem deixar que ele assistisse a partida. Ela sorria com o mau humor do garoto.

– Eles são de onde?

– De Vinm.

– Aquele esqueceu a arma? – apontava a garota para o centro da arena.

– Não. Ele não esqueceu a arma. Ele é o Lanceiro, o único que pode roubar a argola, mas ele só pode usar a lança quando estiver no círculo menor.

– Coitado.

– Coitado? É ele quem manda no jogo, olhe. – disse o garoto apontando para o cavaleiro desarmado. – Ele saiu para o círculo verde e todos os jogadores de Har voltaram para as celas.

O Lanceiro da equipe de Vinm mal pisou no círculo verde e retornou para o de maior movimentação, onde estão as celas, em disparada rumo à argola. Os integrantes de Har ainda estavam dirigindo-se para as celas quando perceberam o ataque e, instantaneamente, voltaram-se para impedir o Lanceiro.

– Todos só podem se mexer quando o Lanceiro estiver no círculo grande? – perguntou a garota franzindo a testa.

– É. – respondeu secamente o rapaz, sem tirar os olhos da arena.

– Se ele está sem a lança, como ele pode pegar a argola?

– Meslistha. – falou Silmar com um tom de raiva na voz – Você está atrapalhando.

– Certo, depois quando eu fizer um daquele bolo de morango eu não terei com quem dividir.

– Você sempre divide com Silvus, não comigo.

– Eu levo para sua casa. – respondeu Melistha balançando os ombros – O seu irmão é que come tudo.

– Vamos fazer um acordo. Eu explico novamente e você me deixa ver o jogo, certo?

Melistha concordou com um leve movimento de cabeça e um sorriso mostrando todos os dentes. Ela não gostava das partidas dos Cinco Círculos, mas toda vez que Silvus participava, ela acompanhava Silmar aos jogos.

– O Lanceiro deve tentar roubar a argola enfiando a lança nela, só dessa maneira se pode marcar ponto, entendeu?

– Sim.

– O Carregador é quem leva a lança e as outras armas. – continuou Silmar. – Ele deve entregá-la ao Lanceiro quando este estiver no menor círculo, aí o Lanceiro tenta pegar a argola.

– Certo. – respondeu a garota olhando para Silmar.

– Quando estiver com a lança, o Lanceiro deve ficar no círculo pequeno, ou seja, só pode sair de lá se devolvê-la ao Carregador.

– O Carregador é o único que pode carregar a lança?

– Isso mesmo.

– E por que ele carrega as outras armas? Por que ele não ataca ninguém?

– Porque ele só carrega as armas. – respondeu já impaciente o irmão mais novo de Silvus. – Ele deve entregar as outras armas para os Caçadores, quando estes estiverem sem. São eles os que atacam.

– Os Caçadores são os únicos que podem usá-las?

– Muito bem, Melistha. Está aprendendo. – Silmar fez tom irônico e Melistha uma careta de desaprovação, dando língua.

Silmar sorriu e continuou.

– São. Eles podem usar as maças ou as boleaderas, inclusive arremessá-las, para tentar derrubar os adversários.

Um urro de vaias chamou a atenção dos dois para a arena. Um integrante da equipe de Har estava caído e, de onde ficavam os substitutos de Vinm, saiu em disparada mais um Caçador.

– Agora eles estão com sete! – exclamou Melistha.

– E nós com cinco. – respondeu desanimado o garoto. – a cada jogador abatido, a outra equipe ganha o direito de colocar mais um jogador na partida.

Silmar fechou os olhos quando um homem vestido com uma armadura que escondia todo o seu corpo, portando dois enormes escudos e montado um cavalo protegido por placas de metal, trancou o caminho de um Caçador de Har e este foi nocauteado pelas maças e boleadeiras de dois Caçadores de Vinm.

– E esses com escudos? Quem são?

– Os Guardiões. Entram na partida para proteger os seus companheiros.

– Mas, e estas armaduras?

– Eles podem esbarrar contra outros jogadores e, por sofrerem muitos ataques tentando defender os companheiros, entram com toda essa proteção.

Suspiros de tristeza surgiram em quase toda a arquibancada, seguido pelo som do gongo indicando o término desse tempo com a equipe de Vinm roubando a argola prateada.

– Um a zero para eles. – resmungou Silmar enquanto sentava-se. – E estava perto da ampulheta chegar ao fim. Agora nós iremos atacar e eles se defender.

Um homem a cavalo dirigiu-se ao centro dos círculos para recolocar a argola, novamente, no cruzamento das cordas sobre as colunas no menor círculo da arena.

– Agora seu irmão joga?

– Sim.

A garota voltou-se rapidamente para a arena.

– Não se preocupe. – disse ela. – Silvus vai roubar a argola.

O som do gongo soou novamente e todos começaram a gritar quando a equipe de Har partiu para tentar marcar um ponto.

------

A festa continuou pela noite calma de céu estrelado, todos comemoravam a vitória obtida hoje sobre a equipe visitante de Vinm, cidade vizinha a Har que vivia de agricultura.

As batidas dos tambores e as suaves flautas alegravam os salões protegidos pelas tendas. Diversas pessoas pulavam e cantavam enquanto tentavam realizar uma dança coletiva, mas sem ensaio. Gargalhadas surgiam em todas as partes quando alguém errava as coreografias e ficava bastante embaraçado. Várias bebidas eram servidas e as equipes, e seus familiares, tinham um local perto dos músicos, de onde se podia ver toda a animação.

– Oi, Silmar. Onde está o Silvus? – perguntou Melistha, pulando embalada pelo ritmo do ambiente.

– Na mesa com a “Equipe de Har”. – respondeu ironicamente Silmar. – Às vezes ele esquece que tem família.

Melistha, com seus cabelos cacheados presos por uma fita e enfeitados com jasmins e margaridas, pegou Silmar pela mão.

– Vem, vamos buscá-lo.

Os dois saíram dançando em direção à mesa onde Silvus conversava com outros jogadores.

– Eu não acredito, nem sequer falou com vocês. – bradou um homem de idade mediana usando gibão de couro e capa. – Esta nossa filha esta ficando fora dos limites.

– Tudo bem. – respondeu outro homem sentado na mesa onde Silmar estava – Eles ainda não viram Silvus depois do jogo. – O homem apontou para uma cadeira e continuou – venham, sentem-se conosco.

Manius e Fília Coldaw, os pais de Silvus e Silmar, conhecem Milano e Tamura Bhur, pais de Melistha, há muito tempo. Ambos moram em fazendas vizinhas e plantam flores e frutas para exportação.

– Foi uma grande partida. – comentou Milano.

– Grande. – respondeu Manius. – Silvus marcou duas vezes. – continuou o pai orgulhoso. – Ganhamos por dois contra um deles.

– Silvus não se machucou? – perguntou Tamura, aflita.

– Graças aos deuses, não. – respondeu, feliz, Fília.

– Ele já tem vinte anos e senta-se à mesa com os soldados de Har com se fosse um deles. – disse Milano, pegando um copo de vinho para a esposa – É um dos poucos moradores que joga com os soldados. Ele deveria se inscrever para ser um.

– Quem sabe, Milano? – respondeu o pai de Silvus. – Nós plantamos sementes hoje e colhemos frutos amanhã. – Manius fez uma breve pausa, olhando para o filho – Ele irá colher o que está plantando hoje.

Os quatro continuaram conversando pelo resto da noite. Falavam das formas largas de Manius, do gibão de couro de Milano, do penteado de Fília, da magreza de Tamura e tiveram agradáveis momentos relembrando os anos passados.

Melistha e Silmar dançavam e se aproximavam da mesa de Silvus até que pararam bem em frente a ela.

– Oi, “Silvus-que-esqueceu-da-família”. – disse Silmar.

– Como vai, Silvus? – perguntou, sorridente, Melistha.

A mesa da equipe de Har, formada toda por homens, olhou admirada para a beleza natural da garota. Seus olhos cor-de-mel sumiam quando ela sorria mostrando todos os dentes, os lábios carnudos eram vermelhos como o mais tinto vinho e destacavam-se da pele clara e rosada. Os cabelos, também claros, quase alcançavam a cintura e um vestido longo e rendado lutava para esconder um corpo formoso e suave.

– Oi, Silmar. – respondeu Silvus, corando. – Oi, Melistha.

– Mel. Você sempre me chama de Mel. – respondeu Melistha, fazendo Silvus ficar mais vermelho.

– Papai e mamãe mandaram dizer que estão bem. – indagou, novamente irônico, Silmar.

– Vem. Vamos falar com seus pais. – falou Melistha esticando a mão para Silvus.

Timidamente ele se levantou, mas sem prestar atenção na mão da garota.

– Nunca se deixa a mão de uma dama exposta, Silvus. – bradou Samonur, o chefe do Forte de Har. Um homem de meia idade e aparência forte, com cabelos curtos e grisalhos e pele escura – Principalmente quando ela pertence a uma bela garota.

– Não é isso senhor, eu não havia...

– Tudo bem, garoto. – interrompeu Samonur – Eu vi e, se a jovem Melistha, filha de grandes amigos como Milano e Tamura, permitir, gostaria de descobrir se ainda consigo dançar uma música.

Os olhos da garota pousaram sobre Silvus, mas este não se moveu. Melistha fez uma breve reverência e virou-se para Samonur.

– Minha Mãe disse que o senhor dançava bem, eu adoraria descobrir.

Segurando a mão de Samonur, Melistha olhou mais uma vez para Silvus enquanto dirigia-se ao salão. Silmar acompanhou o irmão até a mesa de seus pais.

– Idiota. – disse Silmar – Monta bem, mas é um idiota.

Silmar projetou-se um pouco à frente e levou a mão à cabeça quando Silvus deu-lhe um tapa na nuca.

-----

O sol nasceu forte na manhã após as festas. Pessoas acordavam cedo para cuidar dos negócios. Uma montaria, saída do Forte de Har, cruzou o pátio ainda sujo onde ocorreu a festa e partiu em direção às fazendas nas proximidades da cidade. Os raios do sol refletiam ao tocarem as gotas deixadas pela garoa fina da noite anterior. Moradores, carregando seus equipamentos de trabalho, acenavam para o rapaz magro de cabelos esvoaçados e escuros que passava à galope por eles. Silvus alcançou a estrada para sua casa e desapareceu rumo ao nascente rubro. Algumas cercas no caminho não eram obstáculos para sua montaria, que saltava atendendo aos pensamentos do rapaz.

A casa da família Bhur ficava no caminho da morada de Silvus e, quando ele passou por ela, viu Melistha, sempre com um vestido bem justo na cintura e com uma saia rodada, colhendo algumas verduras e legumes nas hortas próximas aos jardins coloridos de sua casa.

– Mel. – gritou Silvus, assustando a garota – Mel – continuou – Aqui.

Ela ergueu a cabeça e viu a mão de Silvus agitando-se no ar. Seus olhos quase fechados e os dentes a mostra indicavam um soriso refletindo o brilho do sol nascente.

– Eu consegui. – gritava o exaltado rapaz. – Eu consegui.

Seu cavalo rodava no mesmo lugar e, antes que Melistha pudesse perguntar algo, Silvus deu-lhe as costas e cavalgou velozmente para casa.

– Quem era, filha? – perguntou Milano aparecendo à porta.

– Era o Silvus. – disse Melistha olhando-o sumir no horizonte já dourado – Gritava que tinha conseguido algo.

Milano balançou a cabeça afirmativamente e, com um leve sorriso no rosto, abraçou a filha.

– Vamos entrar. Mais tarde visitaremos os Coldaws.

Uma fumaça fraca saia da chaminé na casa de Silvus, indicando que sua mãe estava preparando o desjejum. Ele mal parou o cavalo e foi logo pulando em direção à porta de madeira tosca, quase a derrubando com a força usada para abri-la. Silmar, que ainda dormia em uma rede, próximo a escada, caiu com o susto e acordou atordoado, com os cabelos mais assanhados que os de Silvus e o rosto inchado. Manius entrou na sala segurando um machado. Fília surgiu na porta dos fundos. Todos olhavam espantados para Silvus.

– Eu consegui. – disse o ofegante rapaz retirando uma carta do bolso de sua camisa.

– Ahm, o quê? – Silmar tentava terminar de acordar.

– Isso são modos de entrar em uma casa, Silvus? Eu poderia ter atacado. – bradou o pai.

– O que você conseguiu, querido. – disse calmamente Fília. – O que tem nessa carta?

Silvus segurava alto a carta, como se segurasse um troféu.

– Mãe. Pai. Eu consegui! – respondeu com a respiração forte. – Entrei para o exército real.

Seus olhos brilhavam de alegria.

– Eu vou para a capital.