Baleia: o galgo infeliz! 


     Seu focinho estreito e comprido vivia farejando o ar em busca de algo interessante para comer ou investigar. Mais, precisamente, para comer. Será que sua origem afegã, havia lhe transmitido, pelos genes, a fome dos desertos guerreiros de Afeganistão? 

     Foi um filhote alegre e ligeiro, atendendo, prontamente, aos chamados do dono, homem culto muito achegado à literatura. O cãozinho gostava, além das corridas investigativas, da serenidade da grande sala, no térreo da casa, que servia de biblioteca. Lá se deitava, aos pés da poltrona confortável, ao lado do dono, que passava horas a ler. Livros e mais livros, folheados, lidos e manuseados e, embora, o dono fosse de origem européia, os mais apreciados eram os dos escritores brasileiros. 

     O fato é que o perfil físico do cão, não deixava dúvidas quanto à inadequação de seu nome de batismo. Ao galgo, elegante e aprumado, nunca havia incomodado ser chamado de Baleia, até o dia em que o brincalhão sobrinho de seus donos, veio passar uns dias em casa dos tios. Logo entraram em convivência amigável, correndo pelo pátio a buscar bolas e apostar corridas. Sua tristeza só começou no dia em que o menino, mexendo nos livros do tio, apanha um livro de história natural ilustrado e lhe mostra a foto de uma baleia. 
     Riu muito do galgo nesse dia, pois esse ficou hipnotizado diante da foto e depois corria até a porta de vidro, na sala e se olhava longamente.
Decididamente, aquele nome não combinava com ele. Como poderia atender pelo nome de um ser marinho de tal porte? Enorme, gordo, e o pior, de olhar plácido e meigo. Não se consolou, quando seu dono ao vê-lo tão tristonho, explicou ter escolhido aquele nome como homenagem a um cachorro muito inteligente e fiel, personagem importante de renomado romance brasileiro. Nem, mesmo, em saber que aquele enorme espécime, não era, exatamente, um peixe e sim, um mamífero! 

     Depois daquele dia fatídico o galgo nunca mais foi o mesmo. Agora ele entendia, também, o porquê de todos acharem graça no nome do yorkshire da vizinha. O menino, com requintes de crueldade, havia lhe mostrado a foto de Átila, o rei dos hunos, justamente o nome daquele pobre cão com pouco mais de um quilo e que, a despeito de seu sexo, usava perfume e laçarote, no alto da cabeça. Aquilo era uma inominável humilhação! 

     Mas, ele, o galgo, vindo de raça de caçadores, oriundos de um país de homens tão viris, não poderia se conformar com tal afronta. O cão permaneceu semanas melancólico e cabisbaixo, nada do que o dono propunha lhe agradava, até que um dia, em sonolento devaneio, teve a idéia salvadora. Arrumaria novo dono e, assim, conseqüentemente, outro nome, mais condizente com sua estirpe. 

     Não latiu mais para o carteiro ou entregador de gás, afinal, eram potenciais futuros donos. Pelo contrário, fazia-lhes festas de boas vindas. 

     Um dia, passava pela rua um carrinheiro, desses que apanham papéis, e sucatas, antes dos lixeiros. O galgo observou, atentamente, a vinda vagarosa do homem em direção a sua casa e pensou que deveria ser muito interessante andar, assim, o dia todo, conhecendo lugares novos, cheiros, pessoas e outros animais. Então, numa fração de segundo, fez uso de suas longas pernas e saltou o portão de entrada. Começou a seguir o homem, mas este nem reparou nele. Depois de muitas ruas percorridas, quando o carrinheiro sentou, numa sarjeta, para descansar, foi que percebeu o galgo ao seu lado e exclamou :“Eta, cachorro magro, seu! Não te dão comida não? Esses ricos são tudo igual, sovinas danados...De onde tu é? Bem, acho que você me escolheu pra dono, né? Então, enquanto ninguém vier ti buscar, vai ficando aí, que preciso, mesmo, de companhia.”
Levantou pesadamente, e se pôs a puxar o carrinho. Chamou: “Vamos Magrão”. 

     O sol se abriu ao som daquele nome másculo e maiúsculo, parecido com ele. O galgo sorriu satisfeito, abanou o rabo e latiu em puro agradecimento. Aquilo sim era um nome digno! 

     Magrão viveu feliz por muitos anos, junto ao seu nômade dono. Dormia nas ruas, comia as sobras das parcas porções, consumidas pelo homem e morreu satisfeito, com a dignidade resgatada. 

     E assim, acaba-se essa história e morre a vitória, que entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra...

Célia Regina Marinangelo