A CIDADE DAS ARANHAS

A cidade e as aranhas

Todos os homens sonham com a vida eterna; a grande maioria desencarna sem descobrir que a morte é um engano.

Na Aracaju dos anos oitenta, as mudanças provocadas pela industrialização recente, jogaram muitas pessoas num oceano de dúvidas sobre o sentido de nossa existência terrena. Minha pessoa teve a oportunidade de ver florescer junto com o progresso da cidade, a semente de uma sociedade marcada pela reificação ou pela coisificação do ente humano – algo muito conhecido nas grandes metrópoles do mundo inteiro. A mocinha Aracaju, nos anos oitenta e noventa, perdia sua pureza de cidade muito pequena para se tornar, em pouco tempo, em uma arena de conflitos, ou em um mar de contradições e tensões sociais. Seus moradores agraciados pela chave mestra do capitalismo – o dinheiro, fizeram como nas grandes cidades brasileiras - se encastelaram em seus condomínios e prédios modernos enquanto uma gigantesca massa humana mergulhava dia após dia num mar de miséria.

Foi nesse imenso mar de desesperançados que nasceu o jovem Túlio. Túlio era um rapaz de muito valor para sua família. Esta, embora pobre, era formada por pessoas dignas e honestas. Túlio levava consigo a boa educação de seus pais e a certeza de que “Deus ajuda a quem trabalha”. Esse era o lema do jovem rapaz nascido no bairro Santos Dumont – o trabalho como meio de mudança social.

- Meu filho, eu trabalhei a vida inteira. Pelo menos, eu posso comprar o meu caixão. Seu Maurício mais uma vez disse a palavra chave.

- É meu pai, Deus sabe o que faz. Existem diferenças na sociedade, mas, o trabalho traz a mobilidade e esperança de uma vida melhor. Túlio como seu pai era adepto da filosofia do pagar para viver.

- Meu filho, graças a Deus que você entendeu isso cedo. Essa foi a causa de você não ter tido o mesmo destino dos outros garotos aqui do bairro.

- Pai, eu tenho planos de comprar, no fim do ano, uma moto. Minhas economias darão para arcar com as despesas. Graças a Deus!

- Que bom meu filho.

Pai e filho se despedem para mais um dia longe de casa. Túlio foi para a loja de autopeças “Aki tem tudo”, e seu pai para a fábrica de sandálias no bairro Industrial. A casa de Maurício ficava deserta desde que dona Amélia foi morar no céu. Amélia, mulher de Maurício, depois de anos de trabalho como domestica, conseguiu a chave da casa própria no bairro Santos Dumont. No dia em que a genitora de Túlio soube que, finalmente, sairia do aluguel, acendeu uma vela gigante para Cosme e Damião: “Eu sabia que um dia Deus ia se lembrar de mim”. Pena que dona Amélia passou tão pouco tempo na nova casa. Amélia entregou seu sonho para seu marido e seu único filho – Túlio; a morte impediu que dona Amélia visse o fruto de seu trabalho.

A natureza é implacável assim como são o individualismo e egoísmo humano. Seu Maurício foi abordado por dois marginais nas proximidades da Orlinha do Bairro Industrial. O velho prestes a se aposentar sentiu a lâmina fina de uma faca empunhada por um adolescente. Maurício foi para o céu sem ver seu sonho realizado e Túlio ficou na terra para tentar realizar o seu. Com a morte de seu pai, o jovem Túlio se desarmonizou. O rapaz nunca bebera antes, nem havia passado uma noite fora de casa. Túlio, então, passou a frequentar a balada noturna de Aracaju.

- Túlio, até que fim você acordou para o real sabor da vida. Túlio deu uma risada por entre os cantos da boca. Sua mão direita segurava um cigarro como se ele fosse uma boia para o sobrevivente de um naufrágio; na outra mão, o jovem rapaz segurava o copo de caipirinha feita de vodca e limão. Aquele devia ser o décimo copo.

- É minha amiga Têca até que fim a vida começou para mim.

- Amigo, lembra dos tempos do Costa e Silva?

- Claro que lembro. E você naquela época já era linda. Os dois passaram, a sair juntos. Túlio e Têca amavam a mesma coisa e dividiam o mesmo mundo. O paradigma era: “A semana é para o trabalho, e o final de semana para a curtição”. Este era regado a muito álcool.

As pessoas da comunidade do “Santos do Dumont” testemunharam Túlio pôr Têca para morar na casa de seus pais.

- Parece que Túlio vai fazer vida com essa moça.

- Quem é ela comadre?

- É a filha de seu Flores, o catador de alumínio.

- Como ela cresceu. Eu me lembro dela aqui na rua a brincar com suas amigas. Mulher o tempo passa ligeiro. Os anos passaram, e com eles a juventude do casal. Túlio chegava aos quarentas e Têca aos quarenta e um. Túlio continuava trabalhando na autopeça, sua mulher trabalhava na rua Laranjeiras como balconista. A moto de Túlio não suportou a idade. Túlio quis comprar outra, mais, mesmo com a inflação contida, a vida de casal e a curtição não lhe permitia uma economia maior.

- Têca, esse ano completam vinte anos na autopeça.

- Parabéns, maridão! Têca pula no pescoço de seu amor beijando-lhe a face.

- Obrigado, mas, num é isso que eu queria. Espia!

- Vinte anos trabalhando e não tenho nada. Mesmo nós dois com nossos salários não nos permite fazer nada além do que fazemos: Beber no final de semana.

- E o maridão queria o que? A vida é isso! Túlio se conformou com a resposta de sua mulher, mas, decidiu sair a pé para relaxar suas emoções. Túlio chegou à linha de trem da antiga leste. Passa a parede de proteção e caminha pelos trilhos; ele sabia que os trens trafegavam por ali muito raramente. O caminhar pelos trilhos o fez lembrar-se de seu pai e sua mãe. Ele se recordou que os dois trabalharam a vida toda e não tiveram nada. A única coisa de que eles podiam se orgulhar era de sua honestidade e dignidade.

- Psiu!

- Quem?

- Psiu!

- Quem é? Túlio olha para a linha paralela a sua. Nela estava um vagão velho que outrora fora usado para transportar suco de laranja de Boquim para Aracaju. As portas do vagão estavam abertas, contudo, seu interior era muito escuro, nada se podia ver. Túlio corajosamente caminha para o vagão.

- Pare aí moço!

- Por favor, eu não tenho nada!

- Que é isso rapaz, não sou bandido não! Túlio por um instante se acalmou.

- Venha aqui moço! Túlio subiu no vagão. Este estava muito escuro, ninguém podia ser visto ali.

- Fique aí mesmo rapaz! Túlio voltou a ficar nervoso: “Epa, acho que estou em apuros”. Pensou o jovem vendedor de peças para auto.

- Qual é o número de sua identidade?

- Que é isso moço? Ninguém dá esse número assim não.

- O cpf também!

- Quem é o senhor? Uma nuvem de fumaça na forma de caracol precedeu a resposta a pergunta do rapaz.

- Moço, os romanos diziam que tudo tinha que ser escrito e documentado. O estado de direito é o estado da papelada ou da burocracia. Você sabia que isso dá muito dinheiro e gera muitos empregos em todo o mundo? O jovem aracajuano estudou muito pouco para entender essas coisas, no entanto, Túlio se interessou pela história da misteriosa criatura do vagão.

- O moço podia sair daí, digo, do escuro, para que eu possa vê-lo?

- A falta de simetria social e de leis mais justas para todos é a causa das mazelas sociais. A burocracia é um instrumento de exclusão social em muitas realidades estatais espalhadas por todo o mundo.

- O amigo pode me dar só um pouquinho de sua atenção?

- Moço, a burocracia quer dizer também controle sobre a sociedade. A realidade social é a soma de todos os seus fenômenos. São eles que mostram suas leis, atributos e marcas distintivas e individualizantes.

- O amigo poderia se mostrar para que eu o veja. Repetiu Túlio. O interior do vagão era escuro, muito escuro. Túlio não sabia o que procurar. Ele ouvia uma voz fina de homem. A voz o remetia a imagem de um cidadão de estatura média, em boas condições físicas; o homem usava cabelo partido no meio. “Quem?” Túlio pensou ao ouvir a voz novamente. O escuro do vagão não dava chances a Túlio de encontrar a fonte da voz. Mais uma vez o homem fala:

- Todos nós viemos para cá há muito tempo atrás. Nossa comunidade cresceu entre esses trilhos. Vimos muitos trens partirem cheios de popa de suco de laranja para outros estados do Brasil. O tempo quase desativou tudo. Agora os sonhos do trilho estão menores. A estação está muito solitária.

- O amigo quer dizer o que?

- O movimento das coisas nessa época permitia o uso de uma maior rede. Todo o lugar hoje tem trilhos. Quando estes faltam, coisa rara aqui e ali, como dizia o camarada russo da linguagem; criou-se, por aqui, uma teia discursiva. Os elos ou os nós estão em relação simétrica com o outro. A simetria de uma teia de aranha entre suas redes e fios, ou fios com fios, em permanente equidistância devia ser inspiração para o estado, embora possam existir as diferenças, e outras áreas de permanente tensão, a redes das aranhas se renovam, exatamente, nos ditos pontos de tensão e com elas evoluem as sociedades.

- Moço, por que sua pessoa não aparece, essa conversa está sem sentido.

- Moço sem os documentos você não existe. Um dia tive um sonho que o homem virava papel. A humanidade inteira era um texto de infinitas probabilidades de tecer um caminho. Túlio perdeu a paciência e iniciou uma varredura no vagão. “Nada meu Deus!” “Será que estou a ouvir vozes?”

- Calma! Já vou.

- Como é seu nome moço?

- Bem, bem desde que me entendo por gente, me chamam de “Ela”. Túlio dá uma risada. A voz retorna um tanto irritada:

- Moço, olha o respeito aí!

- Que respeito, rapaz!

- Bem Eu sou Ela.

- E eu sou Ele. Disse Túlio. Os dois riram sem nunca terem se visto.

- Já vou. Disse a voz novamente.

- Já vou disse Túlio.

Túlio voltou para os trilhos. Ele ficou sem entender a experiência que acabara de ter.

O casal seguia sua vida. Têca e Túlio viviam como Deus queria. No final do ano sempre tinha um churrasquinho de linguiça com carnes variadas com muita cerveja. Isso exigia que se escolhesse o final de semana, pois, o dinheiro não dava para muita coisa. O casal se aposentou. Os sobrinhos de Têca gostavam de visitar a casa. Um dia, os aposentados descobriram uma coisa: “Há um ninho de aranha no quarto dos fundos, Túlio?” “O que, meu bem!” “ Teias de aranha por todo o quarto; a vizinhança está reclamando das aranhas”.

Túlio foi ver as aranhas. Havia aranhas filhotes, e outras grandes, digo, enormes. O quarto estava, realmente, tomado pelo mundo aracnídeo!

- Meu amor o que é isso?

- Aranhas!

- Aranhas!

- Chamem os bombeiros!

- As aranhas estão mordendo!

- Isso! E agora?

- O que houve?

O processo de urbanização em decorrência do crescimento da economia devido o capital industrial exigiu ocupar todos os espaços urbanos disponíveis. As aranhas ficaram inquilinas. O inquilinato para as caranguejeiras é uma experiência não muito bem entendida. Esses animais não se conformam com a falta de espaço. As caranguejeiras invadiram garagens, e residências, a população chamou as autoridades.

- Aqui é a Tevê Fontinha falando diretamente de Aracaju no Siqueira Campos: “A invasão das caranguejeiras”. “Esse é um problema que a nova cidade tem que resolver”.

Túlio e sua mulher se aposentaram com 100% do salário mínimo. Têca e Túlio, já no fim de suas vidas diziam: “O trabalho transforma realidades”. A comunidade do Siqueira aprendeu a viver junto das aranhas. Vez ou outra uma faz uma arte em alguém.

Roosevelt leite
Enviado por Roosevelt leite em 20/10/2013
Reeditado em 22/10/2013
Código do texto: T4533835
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