Cecília
Cecília via-se inundar pelas gotas quentes e fluidas que caíam sobre seu corpo. Enquanto fechados, seus olhos enxergavam outra dimensão, prazerosa e onírica, que a fazia suspirar quase como se estivesse tendo um orgasmo. Bem, ela imaginara que essa sensação era a mais próxima do paraíso em que podia chegar, mas não estava certa de que um orgasmo pudesse mesmo se comparar com aquela inerente volúpia que sentia quando a água lentamente encharcava-lhe os cabelos, pois nunca havia tido um.
Abriu os olhos. Via-se agora defronte à realidade da qual tanto se amargurava. Sua angústia se convertia em lágrimas que lentamente se misturavam com a água, e seus pensamentos continuavam ali, sólidos, não se dissipavam com o vapor. Ela então ilustrava estórias surrealistas no vidro embaçado, planejava fugas, assassinatos, imaginava seu sangue escorrendo pelo ralo, traçava destinos, percorria caminhos, inventava teorias, interpretava sonhos, desvendava mistérios, beijava suavemente o pescoço de algum rapaz, cantarolava canções inexistentes, e compunha suas melhores poesias, tudo isso compulsivamente desesperadamente urgentemente. No auge de seu delírio, entrava em colapso por alguns segundos. Pensava em gritar, mas tudo que podia era esboçar sussurros abafados à si mesma, sentar no piso frio e suspirar... agora não mais de prazer.
Acabado sua viagem interna, Cecília se enrolava numa toalha felpuda, limpava o espelho com as mãos e se encarava, como se estivesse perguntando à si mesma se ainda permanecia sã. A resposta era inconclusiva, mas dia após dia ela continuava se perguntando.
Ainda enrolada na toalha, seguia para o seu quarto e iniciava seu ritual. Em silêncio, espalhava por todo corpo um creme com cheiro de orquídeas, [nem Jean-Baptiste Grenouille pudera ter criado um aroma tão maravilhoso]. Ainda nua diante de um enorme espelho, desembaraçava seus cabelos e continuava analisando cada centímetro de seu corpo, viajando por si mesma, deleitando-se em seu próprio perfume. Em seguida, punha uma lingerie lilás bordada com uma renda delicada e sutil, por cima, uma camisa branca de algodão, deixando as pernas à mostra. Feito isso, Cecília ouvia sua música preferida e se debruçava na cama abraçada ao travesseiro que era sua única companhia. Seus cabelos ainda molhados cobriam parte de suas costas, e naquela atmosfera de melancolia e sensualidade, tudo que se podia ouvir era o som que vinha do toca-discos:
"Pode ser que, entreabertos
Meus lábios de leve
Tremessem por ti
Mas nem as sutis melodias
Merecem, Cecília, teu nome
Espalhar por aí
Como tantos poetas
Tantos cantores
Tantas Cecílias
Com mil refletores
Eu, que não digo
Mas ardo de desejo
Te olho
Te guardo
Te sigo
Te vejo dormir."
A música se repetia pela oitava vez, e Cecília enfim adormecia.