BLASFEMIA

BLASFEMIA

Continuando com as recordações da minha infância quando nos reuníamos sob a luz do luar ao redor do idoso ferroviário Zelu, para ouvir suas histórias, surge-me na mente aquele quadro de tranqüilidade e de imorredoura saudade. Pare-me que o ouço entoando a voz grave e pausada, como se estivesse escolhendo cada palavra. Ele, realmente possuía o que modernamente chamamos de carisma. As crianças ficavam embasbacadas e os adultos, no mesmo ambiente, disfarçadamente, não só prestava atenção como gostavam.

Falta-me poder narrativo para descrever suas histórias com as nuances emprestadas por ele, num linguajar simples, contudo, procuro transmitir-las dentro da minha modesta capacidade de escritor amador, desculpando-me de antemão por usar, às vezes, vocábulos empolados, não por vaidade, mas porque meu nível cultural está estribado em dicionário e palavras cruzadas. Eis outra:

- Havia um simplório matuto que também o chamam de caipira, pirau, que, para passar o tempo enquanto pastoreava o gado e as cabras, gostava de cantar ou filosofar, deitado sob a proteção da sombra de frondosa árvore de nome mangueira, do tipo que não dá frutos, vulgarmente classificada pelo agricultor de macho. Quando o céu estava com aquele aspecto que chamamos hoje de brigadeiro, então sua imaginação voava. Costumava entoar uma modinha;

- Antonce, cadê minha muié amada,

Dona do meu sofrido coração,

Pra mode me fazê amor

Na empeleitada da criação.

- Numa ocasião, ele foi derrubado pelo sono devido ao calor do verão. A bela rês Azulona, reconhecida como furadora de cercado, arrebentou a cerca e muitas se debandaram lhe dando muito trabalho, além de um carão do avô. Por causa do evento, um dia ele, intranqüilo, com medo de dormir novamente, começou a filosofar:

- Aquela fessora de catecismo diz que Deus tá em todo lugar; não cai um fio de cabelo que Ele não sabo e que Ele não erra, tudo que Ele faz é certo. Ora, ora, apois sim! Mas Ele fez os home errado. A gente devera tê uma cara pra frente e outra pra traz, pro mode eu oiá as rês e também drumi. Aí, intimamente sorriu e pensou: Ninguém ia falà d´eu por traz. E pruquê não quatro mão e quatro perna?

-Diz os filósofos que a ociosidade é mãe dos bons e maus pensamentos. E quando a mente tem espaço (céu) para voar a imaginação o domina. O roceiro Zé do Carro aproveitava o ócio das horas de pastagem dos animais para filosofar. Ele dispunha do dia todo pois levava o feijão com arroz e farofa para almoçar. Ele costumava apanhar as postas de fezes das vacas para queimar e espantar os mosquitos que o atanazava. Após o almoço, ele espreguiçava-se e louco para dar um cochilo, mas para não cair nos braços de Mofeu, passava a filosofar.

- Na árvore sempre havia pássaros na busca constante de alimento. O nosso herói começou a observá-los, principalmente uma ave apelidada de cibite (vocábulo que no linguajar da roça significa pequenino), que saltitava cantando alegremente, de um galho para outro.

Ao procurar se distrair olhando-a, novamente sua imaginação entrou em ebulição. E sempre para criticar os erros de Deus. (Meu bisavô dizia quem não tem o que fazer o diabo aproveita para cutucar a bunda com o seu gancho).

Tal situação se adaptava ao Zé do Carro naquele horário do meio dia. Olhando a cibite e também de olho na Azulona, ele pensou:

- Oia aí, Deus errado de novo. A aibite, des tamaínho avoa por todo canto e pula de gáio em gáio. As vacas do tamanhão da Azulona, não avoa. Deus está errado! Sentenciou!

- O caipira estava de boca aberta e olhando pra cima. Coincidiu a cibite despejar-lhe um jato, de goela à dentro, de federento e amargo cocô, figurou o Zelu com o dedo apontando para o local.

- Zé do Carro, de imediato, raciocinou, exclamando:

- Deus ta certo. Se fora o cocô da Azulona?

- Ouviu-se uma risada geral das crianças.

- O Zelu finalizou: Vocês devem ficar sabendo que apelido pega como coceira. Portanto, não apelidem seus amigos.

- A esperta ave que não tinha nada com as diabruras do Zé do Carro, perdeu o batismo de Guriatã e ficou conhecida com o apelido depreciativo de “Caga cibite”.

Iran Di Valencia
Enviado por Iran Di Valencia em 21/04/2007
Código do texto: T458260