As Relíquias da Morte

- Baseado em A Menina que Roubava Livros e Harry Potter e As Relíquias da Morte

Ando há anos pela terra deste planeta, desde que O Poderoso resolveu me criar. Recolho minhas preciosas almas todos os dias e nunca me esqueço do trabalho que tive durante as pragas do Egito e no dilúvio. Só porque é Deus acha que pode levar todos da Terra sem nem me consultar.

Reparei que com a evolução do homem, mais almas chegam à minha coleção. Incrível como o que o próprio Deus criou com tanto amor consegue se matar por um pedaço de papel com desenho de bicho. Sem contar o quanto é insuportável ver e ouvir pessoas reclamando sobre minha presença na vida delas; vivem mais de 60 anos e ousam reclamar quando eu cobro por tudo que viveram.

Mas minha existência tem o seu charme: já vi pessoas que me idolatram - mais do que o próprio Deus –, pessoas que festejam a minha chegada como O Dia de Los Muertos. Sinto até orgulho, sensação de trabalho feito. Entretanto, como tudo na vida e na morte não nos agrada sempre, eu me sinto no direito de explicar que detesto aqueles desenhos ESTÚPIDOS onde eu visto uma manta preta e seguro uma foice... Eu recolho almas e não grama!

Cada alma tem sempre uma história para contar. Uma vez visitei uma casa de camponeses anos atrás, a senhora que havia me chamado tinha por nome Maria e sofria com a idade já avançada: 95 anos; naquele tempo era comum eu arrumar tempo para me tornar amigo das pessoas antes de recolhê-las.

Dona Maria, alegre de tudo, gostava de me contar histórias que viveu na infância, de como viveu 50 anos com seu marido antes de eu visitá-lo. Sempre me dizia que não estava brava e que sabia que ainda duraria alguns dias, só achava muito engraçado a expressão das pessoas ao vê-la falando comigo (vivos não podem perceber a morte).

Uma semana depois de minha primeira visita, Dona Maria já estava acamada e só dormia. Ouvi uma das filhas dizer que era uma situação tão triste ver a mãe daquela forma, mas que não tinha nada a ser feito. Um dos vizinhos disse que foi uma boa mulher, mas que velho era assim mesmo, passa um tempo e morre.

Naquela tarde, jazia o corpo de Dona Maria no quintal da velha casa e sua alma no fundo do meu baú.

Eu gostava de Dona Maria e gosto de todos que entendem que um dia o tempo na Terra acaba. Não deixo ninguém para trás e não abandono ninguém no “pós-vida”.

É triste quando encontro por acaso alguém que quer fazer parte de meus tesouros, mas todo o esforço é em vão. Alguns chegam a ver minha verdadeira forma, mas quando me estendem as mãos tudo volta e eles acabam numa cadeira de rodas ou atrofiados numa cama. São por esses que sofro, porque eles sempre vão perceber minha presença e sempre vão saber que a visita não é para eles.

Posso parecer frio e sem sentimentos, mas não me importo se alguém tenta suicídio. Sou um colecionador, pode-se dizer até de raridades: era abril de 1945, de manha fazia um pouco de frio – claro que não sofro por isso, mas é notável a temperatura pela roupa das pessoas – e ouvi um chamado estranho, era uma coisa que eu nunca tinha ouvido antes. Quando encontrei o endereço da visita senti uma sensação pesada e desesperadora, logo pensei: “Uma relíquia!”.

Ao entrar no quarto, percebi que aquele homem era a pessoa mais cruel que eu poderia ter encontrado. Muitas almas antes possuíam marcas de escravidão por culpa da alma dele. Marcas de escravidão só aparecem em almas que, em vida, sofreram calamidades sem proporções por culpa de uma única alma. E a essa alma damos o nome de Legião, por possuir muitas perturbações.

Essa legião que encontrei tinha uma aparência bem estranha, até hoje vejo graça naquele bigodinho sem sentido que insistiu em manter em morte. O problema é que essa alma se perdeu no mesmo momento em que eu a recolhi: O Poderoso – Chato – me disse que almas tão malignas deveriam ser supervisionadas por um conhecido dele, um tal de Lucian ou Lufiz. Nunca tive interesse pela família divina.

Já presenciei várias mortes estúpidas, várias mortes trágicas. Mas em um das minhas recentes visitas conheci a família de Cândida, uma mulher de uns 50 e tantos anos cheia de problemas sem cura. Já alucinava e falava com os pais, já pertencentes da minha coleção.

Cândida tinha duas filhas: uma mais velha que insistia em dizer palavras positivas e incentivar a mãe para lutar contra mim. A outra filha, mais nova, seguia o que dizia a irmã. Porém, algo nela me chamava à atenção e resolvi deixar a enferma de lado e visitar a caçula.

Vivos não sabem que eu estou por perto, eles só percebem uma leve brisa, um raio de sol pela janela ou um cantar de andorinha. Mas aquela menina sabia que eu estava ali, olhando para ela em algum lugar do quarto que vivia trancada.

Nas orações pedia por um milagre, pedia para que a mãe partisse dessa vida. Contudo, o que mais se destacava em suas preces era o pedido de que se a mãe não fosse morrer e também não fosse receber um milagre, era para Deus trocar o corpo de Cândida com o dela; assim ela morreria e a outra teria mais anos de vida.

Não foi a primeira vez que escuto alguém querer trocar de lugar com um ente querido, mas é uma raridade um filho querer se sacrificar por uma mãe. Vivi muitos anos e posso afirmar que o ser mais ingrato da Terra é o filho.

Felizmente, a alma de Cândida é uma de minhas relíquias agora. Ela fica guardada numa sessão especial em respeito ao pranto desesperado da filha e àquela mulher destruída.

Eu acompanho a partida deste mundo até o funeral, e sempre tenho que ouvir os comentários mais insignificantes: “ERA UMA BOA PESSOA, MAS FAZER O QUE?” – todos são, necessariamente, bons depois que morrem. Ou “POR QUÊ? POR QUE A MORTE TEVE QUE TE LEVAR? TÃO INJUSTO”, é complicado querer explicar sobre quem faz as regras do outro mundo para pessoas que nem ao menos sentem minha presença ou a sensação torpe de olhar para o nada e ver algo.

Os seres humanos precisam entender que sofrimento pela perda é inútil. Ninguém se esconde de mim, afinal eu sou a Morte. E a Morte não tem piedade.