Alfa e Ômega

Nem mesmo a profunda e rebuscada explanação de Nietzsche poderia dar cabo para o que ele observava. Aquele cenário era algo impensável, intangível, impossível e outros tantos “ins” que Auguste Comte debruçaria sobre suas teorias positivistas e choraria copiosamente.

Lá estava ele; sozinho e envolto pela transparência do infinito. A sensação era de uma plenitude indescritível. Todos os seus sentidos estavam preservados, com a exceção da fala, era possível incorporar para si o gélido nevoeiro que dançava taciturno.

Lançava a mão para o alto na tentativa de tocar algo mais concreto, talvez outra mão, mas só o que sentia era a forma gasosa da imensidão na qual se encontrava.

Diante destas constatações, sua razão foi unânime, estava morto e sozinho no limbo de alguma matéria desconhecida do tempo e espaço. No plano terreno trabalhara muito com teorias que buscavam provar: “A + B” que a nossa existência no borrão universal advinha de evoluções e números. Provara não existir nenhuma linha, mesmo tênue, ligando o homem ao plano sobrenatural ou espiritual.

Contudo, naquele lugar, suas teorias robustamente embasadas por livros e cérebros dos mais prestigiados cientistas não tinham efeito algum. O derradeiro momento chegara; a verdade apresentou-se diante das cortinas do desconhecido para os olhos e ouvidos de quem a prestigiava.

Abaixou a cabeça ciente da realidade. “O ser humano não é capaz de assimilar tudo que está disposto no universo. Fui mesquinho e ignorante em achar que sabia a solução para todas as incógnitas. Compreendo, agora, perfeitamente”. – Com um gosto amargo mastigou estas palavras em sua consciência.

Ao elevar o olhar, visualizou algo que nunca esperara encontrar. Um pouco acima de sua cabeça, um relógio, similar aos encontrados nas paredes de casas e escritórios, tomou forma reluzindo diante da fina camada de gás. As passadas dos ponteiros indicavam que faltavam quatro minutos para que ambos abraçassem a casa de número doze.

Os sentimentos de aflição e medo tomaram conta do corpo. Sentou-se no vazio e abraçou as próprias pernas na tentativa de sentir-se seguro; buscava alento, alguém com quem pudesse falar sobre os seus pesadelos, e mesmo alguém para pedir perdão por todos os seus erros. Aos poucos o frio do nevoeiro dissipara para dar lugar à escuridão que se instalara na suspensão da eternidade.

Receoso de outras visões perturbadoras não levantou a cabeça. Com ela bem firme entre as pernas não presenciou o início da chuva de estrelas flamejantes a rasgar a plenitude como bolas incandescentes traçando o destino inevitável.

Começara a chorar, mas não conseguia gritar. Tampara os ouvidos na tentativa de abafar as zoadas a cada estrela que cortava em sua direção. Mirou discretamente para o relógio; faltavam três minutos para o derradeiro encontro.

Ao fundo, bem ao longe da chuva de fogo, atentou a algumas linhas subirem como se fossem os créditos apresentados ao término de um filme. Na primeira frase, com maior destaque, leu as sombrias palavras: “O Fim”, esta era seguida por intermináveis nomes de seu conhecimento e outros tantos que nunca pensara em existir.

Com os olhos vermelhos e inchados, ele não tinha nenhum refúgio para instalar e acalmar o atormentado espírito que insistia em gritar o horror do âmago. Olhou pela terceira vez para o relógio; dois minutos separavam o encontro iminente. Sem perspectiva de alguma solução ou resposta voltou decair o olhar para os próprios pés até sentir algo pousar sobre seu ombro. Afoito, ficara de pé, e percebera que se tratava de uma grande mão. Foi o primeiro registro de um sorriso que nascia e iluminara sua expressão.

Meneou a cabeça para o lado e pôde constatar a presença de um grande homem vestido em sua armadura desgastada pela a ação do tempo. Sua longa e espessa barba confiava toda a sabedoria adquirida por cada mente que viveu no plano terreno desde o interlúdio que separou o Gênesis do Apocalipse. Ao lado da cintura, o grande homem possuía uma sacola pequena amarrada por uma corda desgastada e suja. A mão do ombro do pequeno homem elevou-se para ir de encontro à sua cintura. Desatou o nó com facilidade e de dentro retirou uma ampulheta a qual era possível constatar que a areia findava.

- “Ele me parece uma figura da qual li nos antigos livros…” – Ecoou em sua mente forçando a lembrança passada, e não tardou a sequenciar a majestosa e imponente figura de Chronos.

Este apontou novamente para o relógio. Os olhos do pequeno homem correram o dedo em riste e fixaram-se na face do medidor que mostrava um minuto para o descanso final. O receio e o medo voltaram. Os nomes continuavam a subir; o pequeno não percebera antes, entretanto a cada nome que subia um pesado som, como uma seca batida, era emitido.

Sem dizer uma única palavra, o grande homem olhou as apressadas passadas do ponteiro que ditava quantos segundos faltavam até que este se unisse aos outros dois companheiros que jaziam mortos. Com sua mão espalmada, servindo como base para a ampulheta, encarou o pequeno e sorriu. Lentamente virou sua mão até que o medidor do tempo tornasse para o lado e fosse de encontro aos seus pés. Na miríade do vago chão, a areia espalhou-se e perdeu-se.

A figura mitológica já não estava presente. A imagem translúcida do relógio aos poucos morria, assim como cessara a furiosa chuva de estrelas vermelhas. Nenhuma batida fúnebre era ouvida; o silêncio voltara a nascer como da primeira vez que fez se sentir naquele mundo.

O pequeno cerrara os olhos pesadamente. Não conseguira achar algum sentimento palpável para exemplificar aquele momento de paz. Suspirou, e vagarosamente abriu os olhos dando por conta não estar mais sozinho. Ao mesmo passo, outros milhares de mentes, da lista de nomes que subiam, fizeram o mesmo processo; todos despertaram na mesma fração da linha temporal.

Incontáveis olhares, desde Adão até o último sobrevivente do nosso mundo, apontavam para uma dourada estrada que se formava em direção ao horizonte. Entendera que a suprema e divina verdade estava mais à frente, contudo encararia em breve o responsável pela criação de todos aqueles espíritos, corpos e mentes que rumavam com a certeza do mistério há muito tempo implantado no íntimo humano: “De onde viemos? Quem somos? Para onde vamos?”.

Chronus
Enviado por Chronus em 14/03/2014
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