Lupércio queria ser mãe.
            - Repara menino... Quem tem filho é mulher. Homem não pode parir...
            - Então quero ser mulher...
            - Cruz-credo... Valei-me meu Jesus... Se teu pai escuta um disparate assim, te corta de reio...
            Trinta anos se passaram depois dessa conversa. Lupércio, homem feito, é agora jagunço do coronel Feliciano e carrega nos ombros, segundo os peões da fazenda, ao menos uma dúzia de mortes e igual número de filhos. Tanto os matados quanto os nascidos se espalham por léguas nos capoeirões do Talhadão do Catulé lá pelas brenhas de Macaúbas no sertão baiano.
            Voltemos vinte anos para encontrar Lupércio trabalhando de lavador de carros na zona central de Salvador.
            - E aí Lú... Quantos tu já ralou hoje?
            - Sei lá, perdi a conta, só sei que estou arreado... Nem comi nada até agora. O que vale é o “cacau”. Depois desta parada vou lá pras bandas da lagoa ver se faturo mais algum...
            - Tu inda vai fiar rico moleque...
            - Qual? Preciso é juntar muito dinheiro para cair fora.
            - Ainda é aquele conversa de virar matador?
            - Psiu! Oh cara boca mole, fala baixo. Tá querendo me fubeca? Pô.
            De fato, Lupércio havia um bom tempo cismara em ir para o sertão baiano e por lá fazer a vida como “ajustador de contas” como costumava dizer. Era sabido que Seu Feliciano velho coronel, vivente lá pelas barrancas do São Francisco, arregimentava uma capangada para amealhar terras de pequenos sitiantes que eram despejados a peixeira ou a bala de parabelo de suas humildes propriedades. O coronel ficava com as terras e a jagunçada com as mulheres e os pertences dos defuntos que iam adubando a terra em covas rasas.
            Lupércio sonhava com os tesouros que conseguiria. Seria homem de confiança e bom matador e sairia desta miséria, custasse o quanto custasse.
            - Seu Feliciano, este é o cabra que lhe procurava... Veio com uma história de ser jagunço seu. Dessa forma Lupércio foi apresentado ao coronel, que em pouco tempo, simpatizou com o recém-chegado.
            - Toma tento Lupércio, quando eu der uma ordem, não tem o que discutir é cumprir e pronto... Estamos entendidos?
            - Ora seu Feliciano, não tem com que se preocupar mandou... Tá feito.
            As rixas e os desafetos do velho fazendeiro iam sendo todos despachados para um mundo melhor com alma encomendada ou não. A fazenda quase que dobrava de tamanho a cada ano. Lupércio acumulava dinheiro, desafetos e bastardos. Perdera a conta de tudo e de todos. Sonhava agora em herdar o posto e a fazenda do velho Feliciano. Sem perceber, mexera em vespeiro... Feliciano coronel das antigas era raposa velha e astuta. De há muito dormia com um olho sempre aberto e não tardou tomar providências.
            Festa de Nossa Senhora da Anunciação. O foguetório pipocava ensurdecedor na praça defronte a matriz de Talhadão do Catulé. Foi como por obra do demo, um bando de mascarados saracoteando ao som da retreta que repenicava no coreto arrastou Lupércio em meio ao turbilhão e desapareceu no capoeirão por de traz da igreja.
            Passava muito do meio dia quando Lupércio foi encontrado enroscado num mundaréu de pés de xiquexique entre a vida e a morte. A capangada do dia anterior, além da surra, haviam levado as “bolas”... O cabra-macho dali prá frente passaria a falar fino. Salvou-se por milagre de Nossa Senhora da Anunciação, conforme se espalhara pela região.
            Alguns anos se passaram como também as dores da mutilação. Porém as dores da alma estavam bem vivas e a humilhação queimava em ódio os dias de Lupércio. Aguardava o momento certo para dar o troco... O dia demorou mas chegou... Coronel Feliciano envelhara e, a saúde em função das orgias, já não era a mesma. Lupércio, como de costume, preparou o jantar do velho.
É bom que se esclareça que após a mutilação, Lupércio abandonou a vida de capanga e matador, pois não suportava as piadas e os olhares irônicos dos antigos parceiros. Já a mulherada... De que jeito?
            O trabalho na fazenda limitava-se aos afazeres da casa grande, aos cuidados com o velho e com alguns dos filhos que conseguira reunir após o trágico episódio da castração.
            Após o jantar, Coronel Feliciano foi sentar-se, como de costume, na varanda para pitar seu cachimbo... Passou mal, sentiu enjoo, falta de ar, arrepios e por fim desmaiou. Lupércio observava aguardando os efeitos do feijão com fornecida que lhe servira minutos antes. A dose foi pequena... O velho não morreu, apenas perdeu os sentidos, os olhos e as "bolas". Desacordado, Feliciano foi levado ao emaranhado de xiquexique e lá permaneceu agonizando por dias até ser encontrado morto em companhia de algumas cascavéis que são abundantes no Talhadão.
Lupécio mandou rezar missa pela alma do defunto... Doou suas roupas e botas... Queimou as velhas tralhas do passado... Vestiu elegante vestido de rendas... Cobriu-se de xale de seda... Trocou de nome... Hoje, Dona Lupe é mãe exemplar de pelo menos uma dúzia de filhos...
 
 
 
 
 
 
 
Claudio De Almeida
Enviado por Claudio De Almeida em 09/04/2014
Reeditado em 14/03/2015
Código do texto: T4762721
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