A VELHA QUE NÃO MORAVA EM LUGAR ALGUM

Havia uma velha que tinha cerca de umas 260 milhas de idade. Ao menos era isso que falavam quando eu era garoto. Nunca entendi. Só sei que pensava “Nossa!”. Essa velha morava exatamente na divisa entre três países. Isso mesmo. Três países abraçando uma mesma fronteira. Um triângulo político.

Aos fundos da casa da velha, passava um rio que não era rio algum, culpa de três presidentes incompetentes em assuntos diplomáticos, que não conseguiam sequer chegar a um acordo acerca do nome de um rio que transpassava os três países. O rio de cá dizia um, o rio daqui dizia outo, o rio que não é de lá nem dali refutava o terceiro, e assim não se entendiam, deixando o rio sem nome. Mas rio que não tem nome não é rio algum dizia consigo mesma a velha. Mas rio que não tem nome não é rio algum diziam todos. Mas nem isso e nem a poluição, impedia a velha de lavar suas roupas naquela água de cor estranha. Pois não sendo rio algum , não havia modo de aplicar lei ambiental sobre ele. Aliás, lei alguma. Houve inclusive uma vez em que acharam um corpo boiando no rio, mas dado que não era rio algum, assassino algum foi procurado,o caso foi arquivado, e o morto dizem que nunca foi encontrado, embora estivesse lá, boiando naquele rio que não era rio nem lugar de morto boiar.

Aquela velha não era nenhum dos sonhos que a menina que, nunca chegou a ser, sonhou. Aquela velha não tinha lugar certo, pois um lugar certo deve ficar em um só lugar. As coisas – mesmo as mais velhas – não podem estar em mais de um lugar ao mesmo tempo. Não é certo essa coisa de ficar se mexendo mais rápido que o próprio tempo. Aquela velha não tinha consciência das coisas que não tinha. Aquela velha, pensava ela, não era velha alguma; lavava suas roupas em rio algum e tinha a idade de 260 milhas. Acho mesmo que sempre fora velha.

Em uma manhã daquelas em que á água do rio parecia borbulhar, a velha lavava suas roupas e cantava em algum idioma que não era idioma algum, uma mistura de três idiomas, acrescentado de um sotaque de quem nunca viveu além dali. Ao tirar da água uma camiseta, quase tão velha quanto ela e com buracos, trouxe junto um peixe estranho. Por mais que atentasse naquele peixe, que agora se debatia no chão, não conseguia saber exatamente o que havia de estranho naquela pesca. Começou a caminhar ao redor dele, como se o vendo de todos os ângulos a ajudasse no seu julgamento. Nada que pudesse ver a mais, talvez estivesse faltando alguma coisa. Tentou lembrar de outros peixes que vira, para que fizesse uma comparação mental e descobrisse enfim o que havia de tão estranho neste. Mas não lembrava de nenhum outro. Não lembrava de como era um peixe. Então, quando ele já dava seus últimos suspiros, ela o jogou numa jarra d’água. Por fim considerou que ao peixe faltavam as pernas e os braços. Era óbvio. Pobre peixe. Culpa das fábricas ou de alguma criança mal criada que tirara seus membros e depois o devolvera ao rio, como que por brincadeira.

Já dentro de sua casa de madeira, colocou a jarra com o peixe em uma mesa da cozinha, enquanto perto dali cozinhava batatas. Batatas, batatas, batatas. Era só o que comia. Há muito tempo não sentia o gosto delicioso de um ensopado de peixe.

- Hei velha, você não vai querer me comer.

- Ora, por que não, peixe feio?

- Por que você acha que eu sou tão feio, hein? São essas águas. É por que você acha que sou um peixe falante?

- Bem, isso não importa, pois daqui a pouco vai parar de falar. – falou a velha enquanto esfregava a mão na pança.

- Vamos lá. Você não é assim. Eu sei. Por que não me deixou morrer lá fora? Por que me colocou na jarra d’água?

- Porque eu não sabia se ia te comer hoje ou amanhã, e não tenho geladeira para te guardar morto, seu peixe feio.

- Eu sou feio e você é linda!

- Vou te comer agora mesmo! - e partiu pra cima dele.

- Espera, vamos negociar....

- O que vocês tem pra me oferecer além de vocês mesmo?

- Informações.

- De quê tipo?

- Existenciais.

- Confidenciais?

- Não sua surda...ei, calminha, desculpa. Por que eu teria informações confidenciais? Sou somente um peixe.

- E por que então teria informações existenciais? Seja lá o que for isso.

- Por que eu existo, ora.

- E eu não existo por acaso, seu peixe feio?

- Claro que sim, mas você já parou pra pensar nisso?

- Não preciso pensar nisso, isso não é coisa de se pensar,a gente é e pronto. Além do mais, informação não enche barriga.

- Mas se você não existisse não haveria barriga pra encher, não é mesmo?

- Mas eu existo e essa aqui está roncando de fome, cê tá querendo ganhar tempo, seu malandro?

- É o que a gente mais quer na vida? E pra quê?

- Parece que a gente não fala a mesma língua. Cê fala coisas....

- Sou um peixe sábio.

- Hahaha! Ora essa. Frequentou, por acaso, a faculdade dos peixes?

- E precisa de faculdade pra ser sábio? Em verdade te digo. Quem estuda demais não tem tempo pra aprender.

- Deve se achar o mais sábio entre os peixes.

- Isso eu não tenho como saber – falou o peixe com uma fisionomia de peixe triste que mais parecia de peixe morto. Apesar de falar como um humano e aparentemente pensar como um humano, ele, embora tentasse muito, não conseguia imitar as expressões adequadas, e isso, essa tentativa de mostrar uma tristeza que não é de peixe, chegava a ser hilário, cruelmente hilário. Contudo, ela não fez piada alguma. Ao que ele continuou – Nunca tive com quem discutir isso, pois dos humanos eu fujo, e com os peixes nunca falei.

- Por que não?

- E você já viu um peixe falar?

- Oh! Na verdade...bem ...eu acho nunca vi muita coisa na vida – falou a velha num tom mais amistoso e melancólico enquanto se sentava num banquinho e enxugava a testa com um pano de prato encardido – ou, se vi, não me lembro. Tudo que conheço é isso aqui. E nesse rio, nunca vi peixe antes. Talvez antes dessa fábrica haviam alguns, talvez até cardumes inteiros, mas isso eu não lembro.

- Às vezes parece que a gente não existe...

- Tem razão. Onde você aprendeu tanto?

- Fui a muitos lugares.

- De que jeito?

- Caminhando é que não foi.

- Digo...esse rio vai muito longe?

- Longe demais, atravessa o mundo.

- Sério mesmo?

- Verdade pura.

- Bem...então...pensando por esse lado, não deve ser tão ruim essa vida de peixe. Solidão por solidão, ao menos você tem liberdade.

- Até alguém nos trancar em uma jarra e querer nos devorar.

- Esquece isso – falou ela gesticulando com o pano de prato – acho que perdi a vontade.

Após uma longa pausa em que ambos ficaram pensativos, embora, obviamente, a expressão dele não demonstrasse isso, ela perguntou:

- Você quer batatas?

- Sim. Eu adoraria batatas.

Fora da casa que não era casa alguma o tempo se fechava e ventava forte. A chuva logo caiu e ligeiramente o rio subiu. A velha espiou pela janela e disse que nunca o rio subira tanto, ainda mais em tão pouco tempo de chuva. A casa começou a tremer e se despedaçar, enquanto a velha gritava pela vida e pela sua morada. E assim, como se fosse uma mágica cruel da natureza, o casebre sumiu. Só sobraram pedaços de madeira.

O que os dois conversaram neste momento trágico não foi ouvido por ninguém neste mundo, pois o barulho da chuva era muito forte. Contudo, conforme o peixe falava, a velha que estava chorando foi adquirindo um semblante de coragem, como se estivesse em um momento em que já não havia mais motivos pra temer a morte, como se cada segundo a mais vivido fosse algum tipo de lucro de alguma conta maluca que alguns fazem para chegar a uma tal expectativa de vida.

A velha que estava sentada se levantou. Então, em poucos minutos, enquanto o rio alcançava o nível de onde havia uma casa, agora havia outra coisa. A velha que não era velha alguma e não morava em lugar algum, agora guiava um barco feito dos restos da casa. Ao seu lado nadava o peixe que antes ela achava feio, mas que agora era o seu melhor amigo.

O peixe sorriu. E a velha, que antes não morava em lugar algum, passou a morar no mundo inteiro.

Lucas Esteves
Enviado por Lucas Esteves em 28/04/2014
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