Quatro Cores

Em algum lugar distante, mas não em outro lugar.

As chamas azuis devoravam impiedosamente as torres mais altas do castelo, roíam os vitrais coloridos e comiam as estátuas de prata. As explosões provocavam fortes tremores de terra e o céu parecia rugir de dor, tamanha a destruição que acontecia diante de seus olhos.

Uma iruli voava entre as colunas de poeira violeta que emergiam dos escombros. Era grande, com penas negras e brancas. Usava uma coleira dourada no pescoço e um pingente vermelho na pata esquerda. Havia muitos dias que a guerra atingira a capital. Desde então, a destruição se espalhou como fogo em palha.

Oralefi estava no topo de uma das colinas que cercavam a cidade. Estava cansado, sujo de fuligem e olhava com esperança para o céu. Um ponto branco surgiu entre as nuvens e se aproximou rapidamente, vinha na direção dele. Cortava o ar pesado e descrente da guerra com asas fortes e persistentes. A águia voava como uma flecha, trazia consigo um embrulho de pano. Quando estava perto do chão, as penas começaram a desaparecer. As asas tornaram-se braços e as garras, pernas longas e fortes. Os olhos se mantiveram os mesmos, mas agora ela era uma mulher. De cabelos brancos e lisos. Ela vestia um manto esvoaçante, trazia no pescoço uma gargantilha e um anel real no dedo. Oralefi a cumprimentou. Estava ofegante e mal conseguia falar.

- A imperatriz precisa que você leve isso – ela entregou o embrulho para ele. Lá dentro havia uma fada ferida. – Encontre as outras falas na árvore de Palamdas e leve todas elas até a caixa de madeira da Cachoeira Branca – ela respirou fundo – Elas devem estar lá até o meio da noite, exatamente no meio da noite.

Naquele instante uma gigantesca explosão vermelha encheu o céu sobre a cidade. Eles olharam na direção dela e viram três ogofs, de armas em punho, vindo na direção da colina. Os ogofs eram os inimigos, as criaturas de fúria lideradas pela malévola Miluda.

- Vá logo, Oralefi – a iruli disse. – A esperança deste lugar está com você – ela deu as costas para ele e desceu a colina na direção dos ogofs.

A mulher se transformou em águia, voou a poucos centímetros do chão e com suas garras curvas perfurou o peito de um dos inimigos. Os outros dois avançaram sobre ela com seus chifres de ferro vermelho. Eles emanavam um calor infernal que em poucos segundos começou a chamuscar a grama ao redor deles. A águia voltou a ser mulher e saltou do peito do ogof agonizante levando consigo uma adaga de seu cinturão. Colocou-se em posição de combate, segurava a adaga com o braço esticado, apontando para o céu tingido de vermelho. As labaredas começaram a aumentar e a fúria dos ogofs brotava pelas frestas de suas couraças. Eram criaturas malditas, vindas do interior dos vulcões. Tinham quatro patas, duas delas possuíam casco. As outras duas eram muito parecidas com mãos humanas, eram maiores e menos precisas, mas incrivelmente fortes.

Um deles avançou sobre a iruli e não encontrou nada. Ela subiu no ar delicadamente, como se seu corpo fosse feito de brisa. Caiu nas costas do ogof que lhe atacara e cravou a adaga em seu pescoço. O outro, enfurecido, atacou com o machado de pedra que estava em suas costas. A mulher tornou-se águia novamente, esquivou-se, agarrou o braço dele e o arrastou no terreno pedregoso.

Oralefi desejou boa sorte à sua companheira, amarrou o embrulho de pano no pescoço e começou a correr para longe da cidade. A grama era alta e cheia de pequenos insetos saltitantes que se assustaram quando Oralefi passou. Naquele instante, sua pele se cobriu de pelos azulados e um par de olhos amarelos substituiu seus olhos humanos. Oralefi se transformou em um veloz lobo azul. Ele olhou uma última vez para trás e depois desapareceu entre as árvores do bosque de flores.

Longe do calor da guerra, a noite era fria e o céu azul profundo. As árvores começavam a perder sua vida e transformavam-se, aos poucos, em estátuas de pedra cinza e gelada. Oralefi continuou correndo. Nada era obstáculo para ele, o vento ficava para trás e a guerra começava a tornar-se apenas uma lembrança. A mudança era iminente e um medo repentino alastrava-se sob o céu e por toda parte. O medo de todas as criaturas daquele lugar havia flutuado para fora de seus corações, enrolava-se, rastejava, gemia. As figuras de medo pálido e recém chegado estavam em todo o lugar. Seus dedos esguios e bruxuleantes de nuvem poeirenta tentavam arrastar qualquer coisa para dentro de seu terrível domínio.

Oralefi tentava desviar-se das investidas do medo, fugia das armadilhas feitas de insegurança e se esquivava das garras certeiras e afiadas dos temores. O medo usava seus lacaios mudos. Disfarçados de pó negro que fora banhado nas águas dos gondoleiros e moldado pelas mentes medrosas dos seres. O medo lutava com suas redes intransponíveis e com sua malícia, com sua astúcia maligna.

O lobo azul não podia deixar-se abater, estava com medo, mas a força que possuía era maior. Corria como um relâmpago, o mais rápido que podia. “Oralefi”, o medo chamou. Um sussurro arranhado, um convite sedutor. O lobo ouviu seu nome e olhou, não viu nada, apenas o escuro esbranquiçado de medo. De repente, uma linha de fumaça enrolou-se em sua pata e içou seu corpo no ar. Depois desta, dezenas de outras linhas vieram do escuro e prenderam-se nele. Estava perdido. Ele olhou para o céu e seu uivo triste tocou as nuvens, como se lhes suplicasse ajuda.

Quando pensou que tudo estava acabado, o embrulho em seu pescoço começou a brilhar. Um brilho violeta e quente. Era a fada, a magia de uma fada. O medo ouriçou-se e estremeceu. A luz aumentava cada vez mais e sem que o medo percebesse, ela voou para fora do embrulho de pano. A fada voava devagar. Era Lucrecia, a conselheira da imperatriz. Com sua luz, ela assustou o medo e fez com que as árvores, flores e arbustos ao seu redor ganhassem vida novamente. Uma onda de cores percorreu o bosque e expulsou o medo que havia nele. As linhas soltaram Oralefi e se desfizeram. Lucrecia, enfraquecida, voltou para o embrulho e o lobo azul voltou a correr.

Depois de algum tempo, a petrificada árvore de Palamdas mostrou-se diante dele. Estava muito escuro, a noite tornava-se cada vez mais profunda, e uma neblina amarelada começava a se formar entre as raízes protuberantes e retorcidas que mantinham a árvore de pé e olhando para alto, como uma torre de mármore frio, inerte, afogada em desesperança. Oralefi saltou sobre as raízes, que mais pareciam pedregulhos, até atingir a abertura que havia no tronco, uma caverna em uma montanha de pedra maciça. Lá dentro, havia quatro pontos de luz, cada uma de uma cor. Uma azul, uma verde, uma vermelha e, a ultima e menor, amarela. Eram as outras quatro fadas. O lobo se transformou em homem e sussurrou com as mãos ao redor da boca.

- Eu estou aqui para levar vocês – quando disse isso, ele se deu conta de que não possuía muito tempo, o meio da noite já estava se aproximando.

As fadas despertaram e voaram para fora da árvore. Elas se ajeitaram no embrulho de pano. Agora, estavam juntas. Lucrecia, Jasmine, Lali, Rubi e Ihris. Oralefi olhou na direção da cachoeira, reuniu sua coragem e saltou das raízes. Antes de tocar o chão, havia se tornado lobo outra vez e sem demora voltou a correr.

A cachoeira não ficava longe dali e em pouco tempo ele estaria lá. Quando pôde ouvir o barulho da cascata, um sorriso teimou em surgir em seus lábios e suas costas começaram a se sentir menos pesadas. Mas, não podia vacilar. Faltavam apenas dois minutos para o meio da noite. Ele pulou sobre as pedras, até chegar ao ponto mais alto diante do véu de água nívea, onde uma pedra lisa, como um altar, emergia do meio dos respingos. Lá havia um pequeno baú de madeira escura, ele estava sobre o desenho dos três triângulos da imperatriz. Um minuto. Ele curvou-se, o barulho estrondoso da cachoeira parecia proteger o baú. As fadas saíram do embrulho de pano. Lali e Jasmine carregavam Lucrecia nos braços. Oralefi readquiriu sua forma humana e abriu o baú. 30 segundos. As fadas entraram e ele fechou a tampa. Meia noite. Estava feito.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 13/05/2007
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