Pequenas histórias 51

para Edmundo Colen

Deric toda vez que se olhava no espelho, perguntava:

- Onde meus pais foram arrumar esse nome da porra?

Não tivera tempo de perguntar, pois aos cinco anos ficara órfão. Morreram num acidente, Deric saiu ileso. Ficou pouco tempo no juizado de menores, até que um dia, surgiu um homem, localizado pela polícia, dizendo ser seu parente e, por ele foi adotado. Alberto e Marta Ramus, não tendo filhos, criaram ele com certo carinho não escondendo nada do menino. Deric passou a chamá-los de pai simplesmente porque achou que devia chamá-los assim. Mas quando alcançou a maioridade, o tratamento carinhoso lhe pareceu grosseiro, eles não eram seus pais, eram parentes distantes, portanto não via justificação nenhuma para tratá-los como tal. Marta e Alberto Ramus também, apesar de todo o carinho que tinha por ele, não via o do porque continuar a chamá-los de pai. E quando Deric decidiu sair de casa, não foram contra, aceitaram sua decisão, apenas fizeram um pedido e queriam que fosse atendido: que pelo menos uma vez por ano Deric fosse visitá-los podia ser no Natal ou no Ano Novo. E todo o ano Deric percorria os cento e setenta e cinco quilômetros para visitá-los.

Já fazia dez anos e, todos os anos, dizia a si mesmo que seria o último. No entanto, sem saber o motivo, cumpria o prometido. Não conseguia se desvincular da promessa. Olhando os canaviais ao longo da rodovia, mais uma vez disse a si mesmo que aquele seria o último ano. Percebia em suas palavras, a fragilidade da ação. O que lhe fazia se sentir fraco, o que fazia com que desejasse que alguma coisa acontecesse e esse ritual absurdo fosse interrompido. Queria que algo acontecesse ao invés dele romper e declarar aos pais sua decisão. Não tinha carinho nenhum e não desejava nada de mal a eles, o que não compreendia era sua fraqueza em colocar em ação o seu desejo. Deveria a tempos ter-se desligado dessa família que não era sua. E nem ele era deles. Será que não percebiam isso? Alberto e Marta Ramus percebiam sim, e tanto é que fizeram um acordo para que esse ano fosse o último. Deixariam finalmente, Deric livre deles.

Quando o táxi parou em frente à casa de Marta e Alberto Ramus, notou um silêncio penetrando como espada sem sentir dor nenhuma. Eles não estavam, como nos anos anteriores, esperando-o para as boas vindas. Deric pagou o táxi, percorreu o pequeno gramado, subiu os poucos degraus e entrou na casa.

Deric não entendia onde estava o absurdo no que fizera. Como relatou aos policiais que, depois de vinte dias, o prendera em sua casa a cento e sessenta e cinco quilômetros de distância, que fizera o que lhe pediram.

Só assim estariam livres tanto dele, como ele livre dos seus supostos pais.

- Mas eram seus pais adotivos. – disse numa voz sem acreditar no que ouvia o advogado de acusação.

Como Deric confessou o crime, relatando que matara os pais porque prometera a eles, o julgamento não foi longo, até rápido demais, o que nada surpreendeu o juiz.

- Por que matou os seus pais? – perguntou o advogado de acusação.

- Ora! Já disse várias vezes. Eles pediram, queriam morrer para ficarem livres de mim...

- E você deles.

- Isso mesmo.

- Você não está com remorso?

- Por que remorso? Não, não estou.

- Não está?

- Não estou. E deveria? Por quê?

- Ora, porque – quase gritou o advogado – o que vocês fez foi absurdo, atroz, assassinou a sangue frio dois velhinhos...

- Não, não assassinei ninguém.

- Como?

- Apenas contribui para um ato que eles não tinham coragem de praticar. Isso não é assassinato.

- Desisto Meritíssimo.

- Por favor, o senhor advogado de defesa deseja interrogá-lo?

- Sim, Meritíssimo.

- Deric, Conte para nós, principalmente para os jurados, o que você me contou.

- Que eles tinham medo?

- Sim, pode contar.

- Bom, como disse para o advogado aqui, eles tinham medo de ficarem sozinhos, isto é, se um deles morresse primeiro, como é que ficaria o outro? Como não tinha parentes nenhum, apenas eu, que não achava justo que fosse morar comigo, pois eu já estava preso a essa absurda promessa.

- Que promessa?

- De visitá-los todos os anos.

- Continue.

- Logicamente se um deles ficasse sozinho, seria posto num asilo e seria esquecido. E eles não queriam isso, se pudessem queriam fazer à última viagem juntos, isto é, queriam morrer juntos, ao mesmo tempo. Então, propuseram para mim, já que eles não tinham coragem e, que assim fazendo, não só eu estaria livre deles como eles estariam livres de mim. Como não achei absurdo nenhum, achei até um ato sublime, concordei. Apliquei uma dose excessiva de morfina e coloquei os dois deitados na cama como queriam. Acho que morreram como queriam.

- Uma coisa que intriga os jurados, e que transmito a você em forma de pergunta: Eles deixaram alguma herança ou você estava no testamento deles?

- Não deixaram nenhuma e eu não estava no testamento, pois que eu saiba não tinham nada de valor e nem dinheiro em banco.

- É só Meritíssimo.

No dia seguinte a mídia alardeava aos quatro cantos do país:

Jovem matador de velhinhos foi condenado por quatro votos a três. Sua sentença foi de cinco anos de prisão em regime fechado. Durante o julgamento, Deric, o assassino, demonstrava indiferença, como se não estivesse sendo julgado. Perguntando por um repórter o do porque de sua indiferença, respondeu:

- Já sei qual vai ser o veredicto. Portanto não vejo nenhum motivo para me preocupar.

- E qual vai ser o veredicto?

- Vou ser sentenciado a alguns anos de prisão.

- Mas me responda uma coisa.

- Pode perguntar.

- Você disse que matando os velhinhos...

- Velhinhos não, por favor, Alberto e Marta, eles tinham nome.

- Desculpe você disse que matando seus pais, você estaria livre deles.

- Sim, foi o que disse.

- E, no entanto vai ser preso, e onde fica essa sua liberdade?

- Ah! Entendo. Fiquei livre de um problema, e caio em outra prisão.

- Sim?

- A vida é feita de vários problemas, resolvi um, agora preciso resolver o outro. A gente se livra de um e cai em outro. Se não houvesse isso, a vida seria chata, não acha?

Deric colocou ponto final na frase. Pegou o calhamaço de papel, arrumou direitinho e enfiou num envelope pardo. Lacrou e chegando perto das grades, chamou o guarda.

- Por favor, pode despachar esse envelope para editora? Obrigado.

Assim que o guarda saiu, Deric deitou no catre e fechou os olhos.

pastorelli

Pastorelli
Enviado por Pastorelli em 31/08/2014
Código do texto: T4944388
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