De Sangue e Ferro - Parte III - Despertar

Ano 356 da Era Khî-örr, Topo da Montanha de Pëth.

O vento ruge ao redor do Templo da Montanha enquanto um vulto imenso, mesclado à nevasca, atravessa os pórticos. O bruxulear das tochas dentro do templo imprime nas paredes aquela imagem gigantesca, adornada com um manto de tecido rude, que caminha em direção ao centro do templo onde se ergue uma enorme estátua do deus alado Pëth.

- Mestre, - sibila o gigante - está tudo preparado para o rito.

Os olhos de pedra da estátua adquirem um brilho amarelado, e a cabeça se vira para o gigante. Ouve-se um estrondo e a boca da estátua se abre.

- Excelente, Zhyar. Tua devoção será recompensada a seu devido tempo. Agora, mostre-me a espada.

Zhyar retira de dentro do manto uma enorme espada de duas mãos. A empunhadura da espada é toda trabalhada em jade e ouro e na cruzeta o entalhe de uma águia se destacava com as asas abertas. A lâmina de dois gumes bem afiados, com três gemas incrustadas ao meio, onde a lâmina faz uma pequena barriga, cintila ao ser exposta.

- Perfeito. - diz mais uma vez a imagem de Pëth. - O tempo se aproxima, onde os antigos novamente caminharão entre a carne e o sangue.

A estátua ergue o braço em direção à abertura acima de sua cabeça e um raio atinge a palma de sua mão. Logo em seguida, ela aponta a mão em direção da espada, e um feixe de luz intenso é disparado. O gigante é lançado longe pelo impacto, enquanto a espada flutua diante da estátua.

- Agora, Zhyar, leve esta espada às planícies de Kûll-thäll-alendir onde o eleito dos antigos a empunhará para a vitória.

Hoje, vale de Ell-Pêhör.

O estrondo da queda de Tÿr-koll da cama faz com que todos corram em direção ao seu quarto.

- Onde estou? - pergunta o monarca, tentando erguer-se do chão.

- Sua alteza está muito ferido. - diz o jovem indo em sua direção - deixe-me ajudá-lo a se levantar.

- O que aconteceu? - indaga o rei - Onde estão minha armadura e minha espada? Por que não estou no campo de batalha com meus soldados?

Neste momento, entra pela porta um rosto conhecido. Alguém que ele lembra ter visto, porém não recorda onde.

- Sua majestade precisa descansar. Ao jantar, explicarei tudo.

O rei faz menção de se levantar, mas o jovem repousa a mão em seu ombro e faz sinal para que se deite. Ele sente a dor em seu ombro e olha para os panos que cobrem seus ferimentos por todo o seu dorso. Olha ao redor, tentando reconhecer o local e encontrar seus pertences, mas é em vão. Sua cabeça dói. Ele se deita e apaga novamente.

Cerca de 3 horas mais tarde, ele acorda com o cheiro de ervas que provêm da cozinha. Se levanta cambaleante e caminha até a porta do quarto. O resto da cabana parece humilde, feita em parte de madeira e em parte de pedra e barro. Uma mesa de uma peça só de tronco situada ao meio, com algumas cadeiras de madeira bem rústica ao seu redor. Ao canto, um fogão de pedra com algumas panelas de ferro em cima, provavelmente de onde provinha o excelente odor de ervas que acordou o rei.

- Hoje, em vossa homenagem, comeremos cordeiro com ervas e javali ensopado. - disse uma mulher por trás dele.

O rei se vira e vê, sob a soleira, uma mulher em trajes rudimentares e humildes, um pouco sujos da fuligem que o fogão de pedra expele. Ela tem o rosto também um pouco sujo de fuligem. É uma mulher de tamanho mediano, com longos cabelos vermelhos, um pouco desgrenhados.

- Não tens necessidade de dispor-vos de vossas posses por minha causa, senhora. Onde estão os outros com quem falei ao acordar?

- Estão todos no campo, majestade. Logo o sol irá se pôr e estarão todos de volta. Por favor, majestade, senta-te. Aceitas um pouco de água?

Tÿr balança a cabeça, afirmativamente. Enquanto a mulher vai até a bacia de madeira reforçada e pega um cálice com água, ele olha mais uma vez em volta, tentando encontrar seus pertences.

- Não estão aqui. - diz a mulher. Ele estava distraído e a resposta da mulher o pegou de surpresa, pois não tinha notado que ela havia se aproximado.

- Sobre o que falas? - pergunta ele, tentando disfarçar.

- Vossos pertences. Estão seguros, não se preocupe. E se o quiséssemos morto, o deixaríamos ser morto pelo jhaarum que o atacou. Lorde Tûha lhe trouxe praticamente morto.

Lorde Tûha. Tÿr já ouvira este nome antes, quando seu pai ainda era vivo. Mas não seria possível que se tratasse da mesma pessoa. Se fosse, teria agora pelo menos 200 anos.

A porta se abre e por ela irrompe uma criança com um cesto cheio de verduras. Logo atrás dele entram um jovem esguio segurando um machado e um homem com um capuz verde com bordas douradas. O homem passa diante do rei e o encara por alguns instantes, e vai até a mulher, abraçando-a. Eles vão até o outro quarto, cochichando algo que Tÿr não conseguiu ouvir. O jovem pousa o machado sobre a mesa e olha para o rei. Nunca antes imaginara estar diante de um monarca. Ainda mais Tÿr-koll, o grande Rei Águia. Era assim que o chamavam nas províncias.

- O senhor sente-se melhor? - perguntou a criança parada à sua frente, com os olhos brilhando. Ele sentiu compaixão por aquele olhar meigo.

- Sim, pequena criança, sinto-me melhor. Apenas a cabeça ainda me dói um pouco. - responde ele, com ternura mas sem deixar o tom firme inerente à sua personalidade forte de guerreiro. Mesmo após ser coroado rei, Tÿr não conseguiu deixar os campos de batalha, sentia uma necessidade visceral de liderar os soldados à guerra. Raras foram as vezes que ele não acompanhou seu exército durante as campanhas.

- Que bom, - continuou a criança. - mamãe usou todo o estoque de Erva de Thoph para poder fechar vossos ferimentos. Estavas quase morto, sabias?

- Imagino, pequeno.

- Não perturbes sua majestade, Zolla. Deixai-o descansar. - disse o jovem, puxando a criança. Tÿr julgou que seriam irmãos.

- Está tudo bem, meu jovem. Qual o teu nome? - indaga o rei, olhando-o nos olhos.

- Mök, senhor, vosso humilde servo. - respondeu o jovem, fazendo uma reverência.

- Muito bem, Mök. Podes me dar mais um pouco de água?

- Certamente, senhor.

Mök pega o cálice da mão de Tÿr e vai em direção à bacia. O rei observa a criança brincar ao chão com algumas pedras, quando sente uma mão pousar sobre seu ombro esquerdo. Instintivamente, o rei olha para trás e vê o homem do capuz com o rosto familiar de antes.

- Por favor, majestade, siga-me. Preciso mostrar-lhe algo. - diz a voz rouca.

O rei se levanta e segue o homem para fora da cabana. A vila era pequena, com uma meia dúzia de cabanas no mesmo estilo da que se encontravam. À sua frente havia um pequeno poço cercado por alguns arbustos que formavam uma espécie de praça circular, com alguns bancos de madeira sem encosto. Do outro lado da pequena praça, se erguia uma espécie de templo de madeira, com uma imagem de uma águia em pleno vôo, toda em prata. O rei olhou em volta e viu algumas poucas pessoas na rua. Provavelmente estavam todos em suas casas.

- Venha. - disse o homem, andando à sua frente.

Quando chegam à porta do templo, um velho que estava sentado na praça grita, chamando a atenção de todos que estavam na rua:

- Eis que se aproxima o tempo. O tempo dos antigos está próximo. E tu, majestade, estarás diante de vossos medos para triunfar ou cair.

Ao findar suas palavras, o velho se levanta e anda em direção a uma das cabanas. O rei faz menção de segui-lo mas é impedido pelo homem ao seu lado.

- Não temos tempo para isso. Venha, majestade.

O interior do templo era bem simples, com algumas esteiras de reza estendidas no chão de terra batida. Seu interior contrastava com seu exterior. As paredes eram todas em mármore branco e em cada uma, um candelabro e uma vela que se queimava mas não se derretia. Acima de cada vela, estava entalhado a imagem da águia em pleno vôo que há do lado de fora. Eles continuam andando e chegam a uma pia de mármore polido ao centro. Acima, no teto, uma abóbada com várias pinturas que contavam a história da Guerra de Vah-lanÖr.

- Tÿr-koll - chamou o homem da voz rouca - tua linhagem foi escolhida antes que nascesses, para liderar-nos contra os exércitos dos seguidores dos caídos. Quase tombaste à mão dos Jhaarumj, seguidores da deusa obscura, mas graças a Pëth, consegui impedir. Sabes que eles querem vosso trono, para que sua deusa possa caminhar mais uma vez entre a carne e o sangue, levando horror e devastação.

O rei observa atentamente seu interlocutor, atento a todos os movimentos de suas mãos sobre a pia de mármore. O homem da voz rouca continua:

- A 200 anos atrás, eu fui escolhido para guiar os descendentes do trono até o seu destino, e meu avô antes de mim. Fomos incumbidos pelos antigos da tarefa de mostrar-vos o que vos espera a cada geração. Vosso pai esteve aqui, neste local, antes que nosso povo sucumbisse à fúria dos Jhaarumj, e viu sua morte pela mão do Conclave.

O rei se espantou com tal revelação. Até hoje, a história que conhecia , e que viu acontecer, era que seu pai havia morrido em seu quarto, vítima da saúde debilitada por muitas batalhas.

- Mas, meu pai morreu em um leito. Como pode ser isso que me dizes?

- Sim, vosso pai morreu em um leito, porém foi através das bruxarias de um dos monges que serve à deusa obscura, que veio o seu decesso. Ele sabia disso, mas optou por não o revelar a ninguém na vã esperança de descobrir quem era.

- Mas se vós vistes a sua morte, logo deveríeis saber quem era o autor de tais atos vis.

- As águas do destino mostram apenas os fatos, não os seus autores. Enfim, agora estais aqui, e deves saber do vosso destino.

O homem faz sinal para que o rei se aproxime da pia. Ele se aproxima e olha para a água. Uma luz intensa invade o templo, seguido de um silvo agudo e logo após o silvo um grito. Ele sente sua espinha gelar e um arrepio percorre sua nuca.

Ele vê seu pai.