Reencontro

"Quantas vezes nós não dizemos que vivemos quando, na verdade, apenas nos arrastamos pela existência, acorrentados a mesquinharias sem importância?".

Estas foram as palavras que lhe brotaram na mente confusa, tomada por mil imagens. Ela andava não sabia por onde, pensando em fugir. Mas fugir do quê? "Não, não adianta fugir do que somos ou do nosso passado. Tudo sempre nos acompanha,como uma cicatriz que está lá, para lembrar o ferimento que um dia nos foi infligido". E ela vagava, os olhos inexpressivos, o que daria a quem a visse a impressão de que ela estava alucinando ou drogada quando, na verdade, refletia profundamente.

Pensou em sua família. "Somos todos tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes, afastados um do outro, como estranhos que se veem forçados a conviver juntos". Um dia, ela conhecera um homem que estivera preso por uns anos. Como era viver numa intimidade forçada ao lado de pessoas tão diferentes, sentindo-se sozinho todos os dias?

Pensava em mergulhar no infinito, libertando-se daquela vida que não era uma vida de verdade, apenas uma sucessão de fatos que trazia os seres humanos acorrentados a ela até que chegasse a doce morte, .

libertando-os das obrigações. Cansada,sentou na terra, pensando em como seria bom dormir, dormir e não ter que acordar para as infindáveis responsabilidades que sempre a prendiam.Fechou os olhos.

Ao abri-los, deparou com alguém estranho e, ao mesmo tempo, familiar. Era uma menina numa túnica clara, olhar ávido e lábios frescos. Uma estranha energia brotava da menina. A energia de alguém que queria viver, mergulhar na vida, desfrutá-la profundamente.

-Olá.disse a menina.

-Olá.respondeu a mulher.

-Que houve com você?

-Estou cansada, meu bem. Cansada.

-Você não era assim. Você tinha sonhos.

-Sim, eu os tinha. Mas eles não se realizaram, meu bem. Acabei acorrentada a uma existência medíocre e sem sentido.

-Então, é nisso que eu me transformei?

-Como assim? a mulher deu um pulo, colocando-se em pé.

-Transformei-me numa mulher conformada, que apenas existe, mas que não vive e que desistiu de ser feliz?

-Não me julgue, eu lutei, com todas as minhas armas, mas não consegui realizar nada! Meu casamento não passa de uma mesmice, meu marido e eu nos tornamos dois desconhecidos, e meus filhos, por quem fiz tudo, tratam-me como se eu fosse um estorvo! Toda vez que falo do que sinto ou preciso, expressando os meus pensamentos, eles distorcem tudo, fazendo-me parecer a errada, a chata, a que só sabe reclamar!

-E seu emprego?

-É um emprego medíocre, não vê? Passei um tempo sem trabalhar, esperando meus filhos terem idade de ir à escola e agora, vejo que tudo que fiz foi desistir de mim, sacrificar-me! E para quê? Para depois, ficar de escanteio!

-Você me esqueceu, colocou-me de escanteio também?

-Quando criança, é fácil sonharmos, não é?

-Sim, mas não é fácil tornar o que sonhamos realidade! Às vezes, eu me pergunto o que teria sido se eu não tivesse pensado tanto nos outros!

-Por que não pensa um pouco em mim, no que você costumava ser? Naquela época, você acreditava que venceria todos os obstáculos, que, não importando o tamanho dos problemas, você os superaria com seu esforço e que, havendo boa-vontade, nada seria inútil.

-Eu era ingênua, meu bem.

-Não, você tinha esperança. Isso é bem diferente de ser ingênuo.

-O que quer que eu faça? Não posso voltar atrás e mudar tudo que fiz!

-Você pode lembrar de mim. Não sou importante para você?

-Não sei.

A mulher olhou a menina e se viu no espelhinho que carregava. Anos a separavam do que ela fora. Anos de desilusão, decepções e sonhos desfeitos. Como ela, depois de tudo que acontecera, poderia recuperar a alegria e a esperança que a acompanhavam na infância?

-Eu ainda estou em você. Olhe bem para dentro de você. Não esqueça de mim. Quero que lembre que existo e que me importo com você.

-Só você se importa comigo, não é?

-Importe-se você também consigo mesma. Isso é o mais importante.

A menina a abraçou com força e aquele abraço tão quente e cheio de carinho a comoveu como há tempos não se comovia com os beijos e carícias de seu marido. Lágrimas desceram dos seus olhos que há tempos não sabiam o que era chorar, pois fazia muito tempo mesmo que ela não conseguia se emocionar.

Ao abrir novamente os olhos, não havia ninguém ao seu lado, mas ela se sentia bem. A menina podia não estar mais lá, porém, ela podia senti-la, presença impalpável e infalível. Levantou-se.

Pegou o ônibus, voltou para casa, esperou pelo marido e pelos filhos. O marido trabalhava até tarde e os filhos, depois da escola, iam ver seus amigos.

Quando eles voltaram, ela assistia à televisão. Estranharam-na. Ela não perguntou como eles estavam, como fora seu dia.

-Mãe, está tudo bem?perguntou o filho mais velho.

-Sim, nunca estive tão bem em toda minha vida.

-Aconteceu algo especial?indagou o marido.

-Eu me reencontrei, apenas isso.

O marido e os filhos se olharam, rindo.

-Bem, que bom.

Ela os olhou, vendo que não haviam entendido.

-Bem, vejo que não entendem.

-O que quer dizer?

-Que é preciso que a gente se importe com a gente e não esqueça nunca quem a gente foi, ou paramos de viver e ficamos apenas acorrentados à existência.levantou do sofá.

Novamente, eles não entenderam.

-O que está acontecendo, querida?insistiu o marido.

-Está acontecendo que quero voltar a viver.

-Mas onde você não vive? Você tem família, seu trabalho, sua casa...

-Viver é mais do que isso. É preciso ir além de tudo isso para viver, meu querido marido. E, para que não estejamos sozinhos, precisamos fazer mais do que viver numa mesma casa. Temos que nos aproximar um do outro.

Naquela noite, à hora de dormir, o marido contemplava a esposa adormecida. Que acontecera que a deixara tão mudada, tão cheia de vida e dizendo aquelas coisas estranhas?

-Não, ela não é mais a mulher com quem estou casado há anos.