Sangue de Dragão

O velho mago aproximou-se das chamas que crepitavam pronto para começar a contar a estória para a multidão reunida em torno da fogueira. Pigarreou um pouco e, passando um olhar vítreo e sério em cada um dos seus ouvintes, começou.

“Saibam ó mortais que muitas coisas eu vi nesses anos em que peregrinei em busca de sabedoria, e de todas as aventuras que eu assisti ou que ouvi, nenhuma foi mais heroica do que a estória do nobre cavaleiro Ronaldo que viveu e morreu pelo fio de sua espada. E aqui nesta noite estrelada de feliz colheita, cabe a mim relatar a estória deste cavaleiro.”

Foi há muito tempo, numa época em que havia cavaleiros andantes em busca de oportunidades para provar sua valentia e ter suas aventuras cantadas pelos menestréis. Havia então um jovem cavaleiro de nome Ronaldo, vindo de Évora, veterano de várias batalhas. Estava ele em seu corcéu, vestido em sua armadura cintilante passando por terras desconhecidas em Toledo, quando de longe avistou um castelo. Em seu caminho passou pela aldeia que o cercava. Lugar de miséria humana e fome. O nobre cavaleiro passou por casas de madeira apodrecida e telhados de capim, assim como habitantes magros e esquálidos, criadores de porcos sujos e, depois de cavalgar pelo centro do lugarejo, encontrou a estrebaria, onde um velho curvado pelos anos lhe recebeu com aspecto de poucos amigos.

- Salve velho, sabes onde posso passar a noite?

O velho, com certa desconfiança, certamente devotando ódio a todos os nobres, cuspiu no chão e apontou com a cabeça para a direção do castelo de Toledo, depois fez uma mesura ensaiada em forma de cumprimento.

- Nobre cavaleiro, certamente encontrarás acolhida no castelo.

O cavaleiro desmontou de seu cavalo, largou o elmo com enorme penacho e, jogando uma moeda para o velho, mandou que este desse comida e água para o cavalo. E olhando mais uma vez ao redor, para os olhares hostis dos habitantes, interrogou o velho.

- Me diga, velho... Por que esta aldeia parece tão miserável, por acaso sofreram algum ataque dos mouros nos últimos tempos?

Olhando de esguelha para Ronaldo, o velho lhe desferiu um sorriso de escárnio.

- Tu não sabes o que acontece por aqui, mas quem dera tivéssemos sofrido ataque dos mouros, pois deles, como meros homens que são, poderíamos nos defender. O caso é mais sério meu senhor. Somos vitimas de um dragão.

À simples menção de um dragão Ronaldo sobressaltou-se, pois em seus anos de cavaleiro andante foram muitas as estórias de dragões que ouviu, mas nada que comprovasse serem verdadeiros os relatos em questão.

- Me digas velho, estás a brincar comigo? Por acaso tenho aparência de menino para acreditar em tal sandice?

O velho simplesmente esfregou as mãos em torno do fogo de uma forja e com uma expressão ausente contemplou Ronaldo nos olhos.

- Acredito que estas terras foram amaldiçoadas por culpa de atos de negligencia de nosso fidalgo e protetor, o senhor do castelo.

- E quem é o senhor deste castelo afinal?

- Barão Hernán dy Maltrivia é o nome do senhor do castelo e em conta de seus atos é que estamos à mercê dessa criatura demoníaca.

“Tudo começou há vários anos atrás, o barão Maltrivia era um valente cavaleiro que lutou ao lado do rei Afonso durante a reconquista e a expulsão dos mouros desta península. Como era um nobre, e em agradecimento por sua bravura em combate, pediu este castelo como recompensa e as terras e camponeses a sua volta. Havia só um porém... o antigo dono do castelo, que morreu sem herdeiros que reclamassem sua posse, deixou uma herdeira de nome Helena, fruto de um caso de amor entre o senhor e uma camponesa.

Helena era uma linda jovem e, para preservar seu direito ao castelo, o barão de Maltrivia desposou-a. Contra a vontade dela, entretanto, pois que ela foi criada como camponesa, sem saber de sua herança e estava prestes a casar-se com um plebeu das redondezas por quem nutria verdadeiro amor. Sabendo disso o barão matou o pobre rapaz, e trancou-a em uma torre do castelo até que concordasse com o casamento. E depois de algum tempo Helena conformou-se com sua situação e concordou com tal união. Mas nunca lhe deu nenhum herdeiro. Por isso se conta que foi novamente trancada na torre.

Com ciúmes da beleza de sua esposa e furioso por ela não ter gerado nenhum herdeiro, proibiu a todos de entrarem no castelo e foi tornando-se cada vez mais negligente com suas tarefas de protetor destas terras. Foi quando surgiu um dragão que se pôs a destruir as plantações e aterrorizar a população.”

Ronaldo de Évora contemplou a aldeia em volta ainda relutante em acreditar na estória de um dragão, mas eis que o velho juntando as mãos em um ato de suplica lhe intervém.

- Por favor, nobre cavaleiro, é preciso matar o dragão para que tudo volte a sua normalidade neste povoado.

- Ainda não sei se acredito nesta estória de dragão, mas eis que vou pedir abrigo no castelo e tirar isto a limpo, velho.

...

Cavalgando pelas terras devastadas do povoado, o jovem cavaleiro de Évora chega até o castelo, imponente fortificação com suas torres altas e muros protegidos por um fosso largo. Do alto de uma guarita no muro um arqueiro grita:

- Quem vem lá?

- Sou Ronaldo de Évora, um cavaleiro andante e, pelas leis da cavalaria, solicito abrigo e comida ao senhor fidalgo deste castelo em nome do rei Afonso de Castela e Aragão.

Depois de algum tempo em que o arqueiro pareceu falar com seu superior, a ponte levadiça é finalmente baixada e Ronaldo segue castelo adentro. Atrás dele um portão de ferro é baixado e novamente ouve-se o barulho da ponte sendo movida. Diante do cavaleiro então surge um senhor de malha de ferro e túnica com uma capa violeta tremulando. Com uma voz que mais parece o troar de uma tempestade em aproximação, o velho fidalgo caminha em sua direção.

- Salve nobre cavaleiro. Entre por aqui.

Após descer do cavalo, Ronaldo cumprimenta com cortesia. O barão, ordenando ao cavalariço jovem e magro que levasse a montaria, acompanha o jovem cavaleiro para o interior do castelo, lugar de tapeçarias com motivos diversos bordados, e onde se vê o brasão de família do barão Hernán dy Maltrivia.

Durante a refeição farta oferecida pelo anfitrião, Ronaldo procura saber sobre as estórias do dragão.

- Ouvi pela aldeia uma estória interessante sobre um dragão que devasta suas terras nobre barão.

-Ah, isto? – ressalta o barão cofiando sua barba grisalha. – Há algum tempo surgiu uma criatura que parece ter saído de um livro de demônios dos hereges. Sem duvida deve ter sido evocada por algum pagão em um ritual de feitiçaria.

- Já tentou matá-lo? Este dragão? – pergunta Ronaldo enquanto mastiga um pedaço de faisão e observa uma criada maltrapilha servir-lhe mais vinho.

- Já tentei algumas incursões pelos domínios da criatura, mas eis que esta tem uma pele dura como aço turco e perdi vários de meus soldados na empreitada. Agora estou velho e não tenho mais forças para prosseguir.

- Então o senhor me concede a honra de procurar tal criatura e enfrentá-la?

O velho barão, com meio sorriso, concorda, e entorna a taça de vinho.

- Ficaria grato se com sua juventude e coragem, pudesse por fim a este tormento.

- Então estamos de acordo.

...

Já no aposento em que foi alojado, após ter retirado sua malha de ferro e colocar sua armadura de lado junto de sua espada e escudo com o brasão de sua família, um leão, Ronaldo se joga na cama e fecha os olhos. É aí que começa a ouvir um tipo de gemido ou lamento baixinho, como uma canção triste e distante. Saindo de seu leito, caminha devagar até o corredor onde o som parece aumentar de intensidade.

A disciplina e autoridade do barão deveriam ser temíveis, sua imagem deveria amedrontar a todos, por isso não havia guardas dentre os corredores, pensa Ronaldo. Assim prossegue até a torre norte guiado pela luz do luar que entra pelas janelas. Após subir muitos degraus levado pela sua curiosidade, chega ao que parece uma cela, onde pode ouvir distintamente o resto da canção triste. Depois de levantar a tranca da porta por fora, vê a mulher mais bonita de sua vida debruçada sobre a janela, seu rosto carregado de lágrimas. Ela olha para ele com certo espanto e ele parece hipnotizado com a bela visão.

Então, como que acordando de um sonho, ele ouve a voz da bela mulher, lhe ordenando que partisse antes que fosse tarde demais, na medida em que um barulho indistinto aumenta de intensidade, deixando claro que alguém se aproxima.

Ronaldo corre até seu quarto o mais rápido que pode e chega ofegante, mas não consegue mais conciliar o sono. Em seus pensamentos domina a imagem da bela mulher, a mais bela mulher que já vira. Certamente, Helena, da estória que o velho da estrebaria lhe contou. E fica indignado pelo sofrimento imposto a ela pelo barão de Maltrivia.

...

Na manhã do dia seguinte, o cavaleiro de Évora, após se vestir com sua armadura, parte para a caçada acompanhado de soldados de infantaria do barão, assim como vários arqueiros armados de bestas, e um batedor que vai a frente tentando pegar os rastros da fera a partir do ultimo local em que fora vista.

Prosseguindo na caçada e tentando apagar de sua mente a visão da bela mulher é que Ronaldo de Évora chega, depois de horas de busca infrutífera, a uma caverna escura na encosta de um monte. O cheiro é de morte e várias carcaças de animais queimados jazem na beira da entrada. Entrando devagar, o cavaleiro contempla estalactites pendentes do teto como dentes afiados, e a umidade do lugar parece sufocá-lo. Eis que o cavaleiro e os saldados dão de cara com o dragão, um animal grande, maior que três cavalos postos um atrás do outro. O dragão, entretanto, dorme quieto sem perceber os invasores de seu território.

Repentinamente, como que pressentindo a presença de seus caçadores através do cheiro destes, o dragão abre os olhos rapidamente e emite uma espécie de ronronar, virando-se para os intrusos e encarando-os.

O que se segue é digno de nota, os homens da frente cutucam a fera com suas lanças pontiagudas, e uma labareda de fogo os atinge, enquanto isso os arqueiros começam a disparar suas flechas que ricocheteiam na pele duríssima do animal.

Ronaldo, protegido das labaredas por seu escudo, ordena aos homens que ainda restaram para lançar as cordas com ganchos ao redor do dragão ao que os ganchos se prendem nas escamas da criatura, em seguida amarrando a outra extremidade nas estalactites. Sem perder tempo o cavaleiro de Évora corre com sua espada em direção à boca imensa repleta de dentes afiadíssimos, cravando-a na língua pegajosa do animal. Desesperado pela dor causada, o dragão cospe fogo nos poucos soldados que ainda restaram e debatendo-se freneticamente consegue se libertar das cordas. Com uma mordida feroz trucida os arqueiros que disparavam outra saraivada de flechas.

Caído no chão, sem seu escudo e sabendo que dentro de um instante o animal se voltaria para ele, Ronaldo pega uma lança perdida e corre com toda a sua fúria em direção ao dragão, enfiando-lhe a lança em seu pescoço, onde ele não sabia, mas ficava o coração do monstro.

Um grito de dor que mais parece uma tempestade assola a caverna. Em seu ultimo suspiro de vida, a criatura ainda se debate e bate suas asas com fúria nas paredes da caverna até finalmente derramar seu sangue vermelho escuro no cavaleiro caído, em seguida caindo de lado com um estrondo. A seguir impera o mais absoluto silêncio na caverna.

Ronaldo de Évora fica ainda algum tempo caído no chão aturdido pela luta, como único sobrevivente. E aos poucos, na medida em que vai recuperando sua concentração, começa a ouvir sons tranquilizantes da natureza a sua volta, como os pássaros que voltam a cantar do lado de fora uma doce melodia. Depois de retirar um dente do dragão com sua adaga da Mauritânia, ele retorna ao ar livre e à luz do Sol, deixando para trás aquele lugar terrível.

...

Foram muitas as comemorações do povo pela vitória de Ronaldo contra o dragão, e o barão dy Maltrivia deu um banquete em sua honra, durante o qual Ronaldo pareceu meio ausente. Todos pensaram que era pela dificuldade enfrentada na luta contra o dragão, mas em seu intimo Ronaldo só tinha pensamentos para a bela mulher da torre.

E foi assim que decidiu voltar para a cela daquela que só poderia ser a mulher da sua vida, e levá-la dali para bem longe, onde poderia tê-la só para si.

Esperou que todos no castelo se aquietassem e dormissem depois de tanto beber vinho, e passo a passo pelos corredores ladeando a parede, chegou até a porta da cela e, pegando de um archote, abriu a tranca e se dirigiu até a bela mulher que o recebeu com um sorriso. Ele não resistiu à tentação daqueles lábios macios e segurando-a com ternura, deu-lhe um beijo.

De repente chega à porta o barão segurando um copo de prata derramando vinho.

- Eu sabia. Sabia que estavas aqui somente para roubar minha adorada esposa – rugiu o velho barão cuspindo vinho. – Não penses que vai levar minha mulher só porque foi capaz de derrotar o dragão.

E sacando de sua espada, meio trôpego pela bebedeira, o barão tenta golpear o cavaleiro do Dragão, como ficou conhecido Ronaldo.

- Isto não são maneiras de se tratar uma bela mulher, barão. – grita Ronaldo enquanto se livra do golpe dele.

- Quem tu pensas que és para me dizer como tratar minha esposa, seu piltre, pelintra, sacripanta.

Ronaldo faz de tudo para se esquivar dos golpes do velho bêbado, até que, encurralado contra a parede, saca de sua adaga da Mauritânia e acerta o barão no peito, bem no coração. Em seguida assiste chocado a torrente de sangue derramado por este, caindo lentamente enquanto tenta com a mão segurar-se na parede, até cair inerte.

...

Nos dias que se seguiram, Ronaldo se reportou ao rei, que o absolveu da morte do barão, e em aclamação da própria população daquelas terras como seu protetor, o rei nomeou Ronaldo, o Cavaleiro do Dragão, como novo fidalgo do castelo. Casando-se com Helena, Ronaldo teve dias felizes ao lado de sua amada, ouvindo seu canto alegre como os pássaros.

...

O mago faz um meneio de cabeça dando por encerrada a estória ao redor da fogueira. Solta um bocejo, e finalmente completa.

“Tempos depois, um novo dragão foi visto voando sobre um rebanho de cabras, cuspindo fogo. Mas esta já é outra estória meus caros, e por hoje ficamos assim...”

...Fim...

Paulo Salgueiro
Enviado por Paulo Salgueiro em 13/03/2015
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