Vítreo

- Maldito cristal!

Ele estava arrasado. Ao longo da sua carreira jamais poderia esperar tamanha decepção. Depois de todos os esforços empenhados, não era sequer justo que fosse tratado daquela maneira. Ele ia recorrer e procuraria sanar aquela injustiça. Mas recorrer à quem? Quando todos aqueles que se sentiam injustiçados procuravam corrigir alguma arbitrariedade, recorriam a ele. Mas ele... Recorreria a quem?

Revisou mentalmente todos os passos e procedimentos que deveria executar na sala de reuniões localizada no coração do prédio situado ao centro do estreito mar Ândico, e que flutuava a mais ou menos setecentos metros de altura, há mais de dez mil anos. O palácio prateado de Hûter.

Em todo esse tempo, por alguns séculos, era ele quem se sentava naquela cadeira. Uma mesa de carvalho que variava do azul turquesa ao violeta vivo e ao negro profundo contornava a cadeira talhada pelas mãos de um antigo anão em uma rocha rara que lembrava madeira. Emoldurada pela escultura que saía da parede atrás e avançava pelo espaço. Uma fênix gigantesca e brilhante. Suas asas douradas e escarlates invadindo a imensidão da sala, indo quase até a porta por onde recebera tantas vezes, tantas pessoas importantes.

Agora, nada daquilo fazia o menor sentido. E o melhor que ele teria a fazer talvez fosse esquecer. Por mais que lhe doesse. Esquecer tudo aquilo, e rápido, mas...

- Não entendo. Não é que eu esteja reclamando que minhas asas não estão crescendo... Mas, é que a de todos os outros parecem já ser maiores que a minha... E o meu sonho era ser um velocista!

Apenas um jovem ninfo. Era bem provável que fosse o novo estagiário. O rosto marcado por pequenas erupções cutâneas típicas dessa fase. Mirava-se no espelho cravado na parede de um modo que quase não se distinguia onde começava a estrutura lisa do espelho e a massa grossa da parede dourada e levemente rosada. As plantas que cresciam grudadas à parede tinham sido uma boa ideia também. Tornavam o ambiente agradável. De que importaria isso agora? Passaram tantos estagiários por ali que ele não seria capaz de se lembrar de todos. Mas, este último, ao menos parecia ser simpático... Talvez. Estava tudo perdido.

Deveria ter dado alguma resposta ao garoto. Por que não mandou que saísse imediatamente? Teria o garoto entendido, atendido? Iria se arrepender depois por não ter lhe concedido ao menos aquilo. Outras preocupações o angustiavam, entretanto. Foi até a ampla varanda da sala. Mirou o espetáculo que a vista lhe oferecia. O imenso mar azul escuro à sua frente. O encontro com o oceano quase no horizonte onde ainda era possível identificar a mistura das cores das águas que se encontravam. A ampulheta dos deuses escorria com rapidez, via com clareza. Enxergou centenas de dragões voando na direção do castelo, a lua e as estrelas.

Os dragões voavam com velocidade e beleza. Cortavam o vento forte e soltavam labaredas de fogo, que daquela distância quase lembravam fogos de artifício estourando no céu. Sentiu o arrepio pelo corpo, ainda que não pudesse afirmar que estava surpreso. Só não entendia que tipo de magia havia os possibilitado de domar os dragões, agora. Deveria ser algo muito sombrio, não tinha dúvidas. Em poucos instantes estariam ali. A lua principal estava bela e cheia como nunca tinha visto. Pediu perdão pelos pecados. Não os dele.

Compreendeu e sentiu-se tolo percebendo que já estavam cercados. “Não foi o cristal”. Pensou, lembrando-se da demissão recente do seu cargo quando seu poderoso cristal não fora capaz de mostrar qualquer coisa nas fronteiras. Apenas neblina e sombras... Uma grande encenação, apenas, pantomima. Aquele desfecho não tinha sido arquitetado em um dia ou um mês... Quanto tempo preparavam a invasão? Deu por si. Em quem ele já não poderia estar confiando? Agora via os sinais... Ainda não podia ter certeza. O orgulho o havia cegado? Ou o desejo de acreditar que tudo estava bem... Sentiu-se um pouco como um ratinho num labirinto sem saber a saída, quando a porta da sua sala se escancarou.

- Ninfo! – Gritou o velho mago.

Sua voz saiu atrasada demais, tarde demais. Assim como o movimento das suas mãos e a bola de energia que iluminava toda a sala. Mas não era capaz de salvar a vida do jovem. O corpo do ninfo, junto a seus sonhos de velocista, jaziam agora presos por um arpão que atravessava sua garganta e perfurava uma das colunas, enquanto seu sangue inundava a sala e seu corpo libertava os últimos gaguejos engasgados de um corpo em espasmos que abandonava a vida.

- É expressamente proibido que haja morte nesta sala!

- Cala a boca velho! Você me dá vontade de rir. É proibido... Você está fraco demais, não está? Está surpreso.

Desta vez sim, estava surpreso. Mas nem tão velho... Nem tão fraco. Ainda necessitaria de muitas informações, algumas as quais tinha receios se teria realmente acesso algum dia. Contudo, já imaginava parte da arquitetura e tinha a certeza da traição.

- Sou apenas um velho, cujos cabelos brancos alcançam quase os pés e não nego que minha barba me confira um certo charme. – Seus lábios dançavam em um sorriso, mas seus olhos eram brasas.

A escultura da fênix na parede deu um guincho alto. E suas asas começaram a mover como se alçasse voo. Os olhos da ave começaram a irradiar uma intensa luz vermelha que deixou o ambiente com uma atmosfera incendiária, como se todo o lugar pegasse fogo e labaredas saltassem raivosas das asas do animal.

Os olhos do mago pareciam estar em outro lugar. A mente do velho viajava e em algum lugar entre a vida e a morte, acariciando os mistérios que passavam por ele como um raio, símbolos, escritos, que o atravessavam como velhos fantasmas. Quando conseguiu ver os olhos de algo, ou alguém, mergulhando as mãos dentro do pântano, e levando aquilo à boca.

O brilhante castelo ficara engolido pelo fogo e todos os dragões pareciam ter enlouquecido quando a fênix alçou voo deixando um rastro incendiário violeta-alaranjado, em direção a um espaço paralelo. Os soldados antes triunfantes com a invasão ao palácio prateado agora agonizavam as queimaduras, e o fogo que derretia suas armaduras e comia suas carnes. O velho mago suturava o lapso no cosmo, como se cruzasse por um túnel escuro cortado por luzes de diferentes cores. E se esforçava para domar as dobras no tempo que atravessava.

Quando caiu, sentiu o corpo todo dolorido. Em especial no peito, dificultando sua respiração. Agradeceu a lama do pântano que o recebia. Rolou para o lado deixando se envolver um pouco mais por aquela massa morna e marrom de terra e água.

Deixou soltar uma risada.

- Não estou tão mal assim, hein!

Mas estava. Agradecia por não ter morrido à fuga. Seus olhos baixaram ao nível do horizonte e ele deu de frente com os olhos que há pouco tinha enxergado. Sim, tinha conseguido. Talvez, nem tudo estivesse perdido por fim.

A fênix estava lutando contra o lamaçal. Toda suja suas penas tomavam um aspecto engraçado. E ela guinchava de reclamação.

- Não reclame tanto sua mal agradecida. Você está viva hã! Assim como eu. – A frase final do velho mago saiu como um pensamento em voz alta.

Á sua frente, os olhos o encaravam sérios.

- Então. Acho que consegui. Uma esperança parece surgir como um leve traço ao fim desta terrível tempestade para nosso mundo. – o mago dirigia-se à dona daqueles olhos intensos.

A dona do par de olhos dourados e brilhantes era uma mulher. Talvez a mulher mais bela que aquele velho mago jamais tivera visto antes em sua vida. E ela estava completamente nua. Sua nudez era quebrada apenas pelas manchas de lama que cobriam seu corpo aqui e ali, deixando revelar sua forma e toda a beleza que residia nela.

Ela se levantou sem pressa.

- Você precisa me ajudar! – O mago disse sem saber se ordenava, ou suplicava.

Milhões de pequenas vozes saltaram da mata ao lado. Ele não saberia dizer se estava em uma floresta muito adensada, ou em uma caverna tão ampla que pudesse ter crescido uma floresta dentro. O local engolido, em parte, pela escuridão tinha uma atmosfera esverdeada e também azulada. Procurou a luz das estrelas, sem sucesso. Lembrou-se do brilho da lua que vira antes. Mas também não conseguia encontrá-la onde deveria estar o céu.

As vozes agudas, em sua maioria, com algumas poucas muito roucas que se destacavam, se aproximavam e aumentavam. Um som confuso, desordenado, embaralhado e nada amigável que avançava como uma espécie de cólera. Uma onda gelada percorreu-lhe partir das suas omoplatas para seus braços, mãos e dedos que começaram a tremer ligeiramente.

Eram gnomos, duendes, anões, pequenos exus e outros seres que se amontoavam em volta. Inúmeros. Eram qualquer coisa, menos belos. Cuspiam no poço em que ele estava. Sentiu-se arrepiar do couro cabeludo às solas dos pés e uma ânsia de vômito fez com que se curvasse. “O que eu fiz?”.

Esforçava-se para ficar em pé. A lama secava no seu cabelo, na barba, no corpo todo e ele sentia muito frio. Ocultando os conflitos que eclodiam dentro de si, levantou o queixo e o peito em um sinal de pedido de respeito.

O gesto foi muito bem compreendido e houve uma explosão de gargalhadas. Alguns gnomos dançavam, duendes faziam canções. Elementos da água e do fogo se aproximaram também. Todos estavam em volta e todos os olhos postos sobre ele.

A mulher avançou lentamente pelo pântano como se não tivesse peso.

O mago deu um relance rápido para sua fênix. A lama do pântano já a tinha engolido até o pescoço. Cipós se enrolavam pelo bico evitando que ela pudesse emitir algum som.

- O que significa isso? Eu vim pedir ajuda.

- Ajuda? – A mulher respondeu. A cada passo, suas formas ficavam mais nítidas, sua nudez mais encantadora e ela, mais bela.

Gnomos, duendes, e outros seres que ele não soube nominar pularam para cima da fênix armados com facas, machados e foices e começaram a extirpar o pescoço da ave.

- Parem! Isso é um crime! Um crime imperdoável. A fênix é um ser puro, um dos mais puros. Por tudo... Parem com esse absurdo.

- A fênix é um ser puro, ele diz. – Falou a mulher para todos. – A sua fênix é mais pura do que todas as outras que viviam aqui? Olha e me diga o que você vê em volta.

Ele não poderia dizer com certeza porque sua visão parecia embaçar e tremular com alguma coisa... Quando passou a mão no rosto, espantado, confirmou as lágrimas que banhavam sua bochecha.

- Eu não entendo... – disse o mago.

- Vivemos por mais de oito mil anos renegados ao seu reinado. Nós que construímos e demos nossas vidas na construção do castelo prateado de Hûter. Assistimos nossos lagos se transformarem em pântanos. Tivemos o nosso direito ao sol, e de contemplar a deusa da lua, negados. Nossas fênix capturadas, assassinadas ou petrificadas. Nossos dragões confiscados e arrancados de sua família e seu sangue. E onde vocês estavam esse tempo todo? Onde os grandes guardiões do palácio prateado estavam esse tempo todo? Não deveriam ser vocês a quem deveríamos recorrer? Não seria você a quem deveríamos estender nossas esperanças?

- A ave... – o mago tremulava. – A fênix... Ela não tem nada a ver com isso.

- Não. Mas infelizmente, ela pagará por você. – a mulher respondeu. – Mais um pecado pra você colocar na sua conta, mago... Seu poder reside nela.

O velho mago reagiu com fúria.

A mulher era muito poderosa. E ele se foi sufocado. Experimentava o amargo sentimento da impotência. A sua última carta na manga estava sendo aniquilada. A fênix agonizava e quando ela morresse seria seu fim. O odor do lugar começava a ficar muito forte e enjoativo. A sua saliva parecia se encharcar de um sabor azedo, salgado, acre.

- Eu não entendo... – o mago perdia o chão e seu joelho batia com força no chão lamacento.

- Nós somos os renegados!

- Extintos há quase oito milênios...

- Expulsos. – A mulher corrigiu, aproximando-se como uma tigresa, e apoiando a mão no rosto do mago - Mas voltamos para resgatar o que é nosso.

- A visão! Algo deu errado na dobra do tempo... A visão que eu tive quando escapava daquele ataque bárbaro ao castelo... – Saliva explodia e saltava da sua boca, enquanto fitava os olhos dela e os profundos vales ali existentes.

Os olhos dourados da mulher emitiam uma luz forte e sedutora. Pareciam tão vítreos. Sua voz era ainda mais macia quando disse:

- Você viu seu futuro. E ele acaba aqui.

***

De algum modo, magicamente, o pântano voltou a ser o belo lago cristalino que tivera sido um dia. Os gritos ouvidos naquela noite não foram agradáveis, e jamais naquele lugar houve outros tão terríveis. Os renegados lutavam e sonhavam com a reconquista de seu lugar novamente naquele reino.

E novos tempos surgiam.

Gregg Coelho