Crônicas de Arunia - Cap 6

Aida mal conseguiu pregar os olhos naquela noite. Acordava a cada cinco minutos, revirando-se no saco de dormir.

A noite estava clara, com uma linda lua cheia soltando seus raios sobre a floresta. Era quase um pecado que a lua brilhasse tanto numa noite de angústia como aquela, iluminando todas as horríveis manchas de sangue no tecido da tenda. Aida pensava no ataque ao acampamento e tinha pesadelos com os rostos daqueles que haviam sucumbido com ele. Mas, além disso, tinha algo a mais em que pensar, graças à conversa que tivera a sós com Tillie quando os outros foram dormir e quando ela se oferecera para tomar o primeiro turno de guarda.

— Aida, precisamos conversar antes de irmos para Northcliff... É importante. Você provavelmente vai querer se sentar. — falara Tillie, acomodando-se num tronco de árvore caído ao lado de Aida.

— Hm... Por que será que eu não estou gostando nada desse tom sério? Qual o problema dessa vez?

A anã suspirou antes de começar.

— Eu já te contei sobre o interesse dos Águias pela Necromancia e sobre a tal pesquisa que eles estavam fazendo, não é...? — Aida assentiu, recordando a longa conversa que haviam tido um pouco mais cedo naquela noite em volta da fogueira — Só que eu não te contei a história inteira.

Foi a vez de Aida suspirar antes de falar.

— Como assim?

— Eu descobri que a pesquisa não era exatamente para eles.

— Mas você disse que foram os Águias que acharam você e o Zander.

— E foram eles! — respondeu Tillie apressadamente — Só que... Parece que eles não estavam sozinhos.

Se Aida já não estivesse sentada, esse seria o momento em que ela se deixaria cair pesadamente sobre o tronco. Bufou. Aquele dia parecia não ter fim e a cada hora que se passava mais uma desgraça acontecia.

— Um daqueles documentos que eu roubei quando estávamos fugindo — continuou Tille — continha informações de prestação de contas que os Águias mantinham pela pesquisa. — ela parou, incerta de que Aida estivesse compreendendo o que queria dizer, e procurou se explicar melhor — Você sabe, os recibos das transações de compra e venda de recursos, materiais e suprimentos...

— Tillie, eu sou uma ladra. Já roubei mercadores antes, eu sei o que “prestação de contas” significa. Continue.

— Tá, tá bom.

A anã tirou de um dos inúmeros bolsos de sua bolsa de viagem um pedaço de pergaminho com um carimbo oficial e várias anotações. Basicamente números, descrições e eventualmente nomes. Passou o papel para Aida, que o olhou rapidamente sem notar nada muito incomum. Tillie concordou com um meneio de cabeça.

— Quando eu vi esses documentos pela primeira vez, eu também não achei que eles continham nenhuma informação muito importante... Mas, prestando um pouco mais de atenção, eu percebi que uma enorme quantidade de moedas estava sendo paga à gangue por um homem chamado Oswald. — ela fez uma pausa dramática — Reconheci o nome assim que o vi, então pesquisei mais um pouco sobre ele e eu estava certa em reconhecê-lo. Acontece que há alguns anos esse homem e um dos meus professores da Academia tiveram uma enorme discussão sobre um artigo acadêmico e nós acabamos assistindo algumas palestras dele... Enfim, o ponto em que eu estou querendo chegar é: esse tal de Oswald... Ele... É um “nobre”, Aida.

A ladra ficou em silêncio refletindo sobre aquela nova informação. Não sabia ao certo como reagir ao fato dos Águias estarem aliados a um homem que era um nobre como ela. Ou melhor, um nobre como aqueles que a perseguiam.

— Eu só... — continuou Tillie — Bem, eu realmente não sei se ele está trabalhando sozinho em conjunto com os Águias ou se a Guilda Prateada pode estar envolvida nisso também... — a anã parou novamente para esclarecer — Você sabe, o exército dos nobres.

A ladra revirou os olhos. Aqueles acadêmicos sempre achavam que sabiam mais do que todo mundo, não é mesmo?

— Eu sei o que a Guilda Prateada significa, Tillie. Tenho me escondido dela a vida toda.

A anã assentiu.

— O que eu estou querendo dizer com tudo isso é que você terá que ser extra cuidadosa em Northcliff, Aida... Se a Guilda estiver realmente envolvida na busca pelo Reino Antigo, pelos segredos da Necromancia, ou seja lá pelo que for, o problema pode ser muito maior do que a gente é capaz de lidar.

Tillie tinha razão. Os nobres eram conhecidos há muito tempo como seres perigosos e a Guilda Prateada em especial não era uma organização qualquer. Pelo que Aida sabia, eles estavam envolvidos com a administração do reino e praticamente mandavam em tudo. Se tivessem um objetivo, não descansavam até alcançá-lo. Isso a ladra podia dizer por experiência própria. Já fazia algum tempo que os nobres não a encontravam, mas ela tinha certeza de que estavam por aí a procurá-la. E se eles estivessem em Northcliff, não demorariam muito a perceber quando ela chegasse à cidade.

Quando Aida deu por si, o sol estava nascendo no horizonte e seus raios luminosos atravessavam a lona da cabana. Era dia e ela não havia dormido quase nada, apenas relembrando tudo o que acontecera.

Contudo, parecia que não fora a única. Ao se revirar mais uma vez no saco de dormir, pousou seus olhos sobre a amiga deitada ao seu lado e percebeu surpreendida que Sky estava acordada olhando para o nada. E parecia ter ficado assim a noite inteira.

Aida teve receio daquela expressão que a amiga fazia ao encarar o teto da cabana. Era como se Sky estivesse em transe.

— Ei... — chamou cautelosamente, como quem tenta acordar alguém sonâmbulo. — Sky, está tudo bem?

— Eu não o avisei.

Foi tudo o que a morena respondeu. E por um segundo Aida pensou que ela tivesse enlouquecido de vez. O que queriam dizer aquelas palavras?

Depois de algum tempo, Sky virou-se de lado para encarar a amiga. Seus olhos, agora inexpressivos, estavam vermelhos e secos como se toda a água do mundo houvesse evaporado por eles.

— Eu não disse nada para ele, apenas saí escondida daquele jeito... — continuou Sky — Ele morreu imaginando onde eu estaria. Morreu por minha causa. É tudo culpa minha.

Certo, pensou Aida. Sua amiga definitivamente havia enlouquecido de vez.

— Sua culpa? Desculpe Sky, você é uma ótima ladra e tal, mas eu acho que não poderia matar dois ladinos ardilosos, um mercenário gigante, um arqueiro habilidoso e um médico especialista, tudo isso sozinha. Foram os Águias que fizeram isso, e da forma mais covarde possível. Se há algum culpado nessa história, são eles, e não você.

Sky pareceu não ter escutado uma só palavra do que Aida acabara de dizer.

— Eu o culpei, Aida. Pela morte da minha mãe eu culpava o meu próprio pai. E ele sabia. Morreu sabendo que eu sempre o culpei. Não consigo me esquecer disso. Jamais vou esquecer. Quando se perde alguém desse jeito... Essas memórias deixam marcas para sempre.

Aida ficou em silêncio, tentando compreender o que a amiga estava murmurando. Só conseguia sentir a dor que aquelas palavras transportavam.

— Eu fico aqui pensando se... Se tudo seria diferente se eu tivesse dito aquilo que eu nunca disse.

Sky falava de perdão, de confiança, de demonstrações de amor. A frase “Eu não disse nada para ele, apenas saí escondida daquele jeito” significava muito mais do que uma simples constatação sobre a fuga das duas ladras na manhã do dia anterior. A morena estava falando da sua própria fuga. Uma vida inteira de fuga da necessidade de confrontar o pai e dizer que o amava e o perdoava apesar de tudo.

— Você realmente se sentiria melhor se pudesse dizer aquilo que nunca disse? — perguntou Aida, também entre murmúrios.

— Não sei... E acho que agora eu nunca vou saber.

Saindo da tenda, Aida sentiu o sol em seu rosto e se espreguiçou manhosamente. Deu uma olhada ao redor do acampamento e viu que Tillie estava desmontado sua barraca e guardando algumas coisas para a viagem, Zander acabava de descer da árvore onde havia estabelecido seu posto no último turno de guarda da noite. Ele não parecia nem um pouco cansado, isso porque os elfos lunares não precisavam de tantas horas de sono quanto a maioria das outras criaturas. Mas seu rosto ainda trazia aquela inexpressividade característica a qual Aida havia começado a achar um tanto quanto charmosa.

Ela caminhou tranquilamente em sua direção e o cumprimentou com um bom dia amigável, o qual ele retribuiu.

A garota notou subitamente que aquela era a primeira vez que conseguia ver Zander com todos os detalhes em plena luz do dia. Quando eles haviam se conhecido na caverna, estava muito escuro para tirar qualquer conclusão e quando saíram dela, o dia já estava quase acabando. Era a primeira vez que podia ver com clareza as feições atraentes que compunham o rosto macilento do rapaz, a palidez cinzenta de sua pele, o brilho de seus cabelos negros e a profundidade de seus olhos prateados. Isso sem contar com o corpo esguio, porém definido por baixo das vestes escuras e simples que ele usava.

— Então, vamos partir agora? — perguntou Zander.

Aida encostou-se ao tronco da árvore ao seu lado e respondeu em tom zombeteiro:

— Qual a pressa? Você não gosta do nosso rústico acampamento cheio de cadáveres, sangue e drama?

O elfo a encarou como se não houvesse entendido a brincadeira. Mas nunca se sabia exatamente o que a expressão de Zander significava. Talvez ele estivesse dando gargalhadas por dentro, vai saber.

— Você tem um jeito estranho de ficar triste, Aida... — ele encostou-se ao seu lado no tronco da árvore e lhe passou uma fruta que parecia ter acabado de colher — Mas eu gosto. Fazer piada da morte é um modo interessante de encarar a vida.

De novo, Aida não fazia ideia se ele realmente gostava ou se estava sendo sarcástico.

— Awn, Zander. Também gosto do seu jeito estranho de flertar com uma mulher. Realmente esse negócio de não mudar de expressão nem quando está fazendo um elogio deixa qualquer uma caidinha.

O elfo passou de pálido a vermelho em questão de segundos.

— Eu não...! Quer dizer, eu...

E quando Aida explodiu em gargalhadas ele finalmente pareceu se acalmar, percebendo que se tratava de uma brincadeira. Mas ainda assim permaneceu um tanto confuso.

— Eu realmente quis elogiar você, Aida. Desculpe-me se saiu de maneira errada...

— Eu sei, garotão. Só estou mexendo com você.

A garota piscou para ele e voltou a comer sua fruta.

Momentos estranhos de silêncio se seguiram até Zander resolver acabar com eles.

— Honestamente, nunca vi tantos mortos no mesmo lugar desde a minha Aprovação.

— Aprovação? — repetiu Aida, com as sobrancelhas franzidas de estranhamento.

— Para a Academia de Artes Arcanas, em Ildis.

— Eu achei que ninguém precisasse de aprovação para as academias de Ildis.

— A maioria das pessoas realmente não precisa. No entanto, para magos... É diferente. Você tem que passar por alguns testes para provar que pode ficar calmo mesmo na pior das situações.

Aida riu tentando imaginar quando é que Zander não estava calmo. Para ela, nem uma sacerdotisa secreta dos reis antigos era tão calma quanto ele.

— Uau! Então as coisas ficam bem ruins quando vocês perdem o controle, não é?

¬— Quanto a isso você poderia tirar suas próprias conclusões se conhecesse meu histórico de tragédias.

O elfo olhou seriamente para ela, o que a fez esquecer qualquer piada que estivesse prestes a fazer. Aida ficou confusa e curiosa por aquela colocação, e o pressionou com seus persuasivos olhos verdes para que Zander explicasse melhor o que quis dizer.

Depois de um momento relutante, ele finalmente aquiesceu. Com uma espécie de suspiro, começou:

—... Quando eu era apenas um garoto, minha mãe acolheu uma garotinha Lith como serva na nossa casa. Ela tinha pequenas orelhas de ratinho... Chamava a si mesma de Kille, que significa “pés ligeiros” em Lithian.

Aida tinha visto alguns poucos Liths em sua vida, a maioria quando era criança e se escondera por um tempo em uma cabana na floresta perto de Ildis. Tudo o que ela sabia sobre aquela raça era que os Liths eram seres zooantropomórficos, isto é, criaturas humanoides com partes do corpo provindas de algum animal. Imediatamente ela imaginou uma pequena garotinha com orelhas de rato e grandes olhos vermelhos e assustados.

Outra coisa que Aida sabia sobre aquela raça era que as palavras “acolhida como serva”, as quais Zander utilizara ao iniciar sua narrativa, eram provavelmente um eufemismo para “escravizada”. A verdade era que a vida de um Lith em Ildis não era exatamente das melhores.

Zander continuou:

— Ela não sabia ler nem escrever, então eventualmente eu comecei a ensiná-la e nós nos tornamos amigos... Era esperta para uma Lith, eu acho. E sendo um Mago eu nunca tive muitos amigos, então... Kille foi a minha primeira amiga de verdade. — ele falava com um tom de voz neutro, mas Aida percebeu lá no fundo um toque de emoção em sua fala. Realmente aquela garota devia ter sido importante para ele... Aida chegava até a sentir algo estranho ao ouvi-lo falar dela assim.

— Mas um dia minha mãe descobriu que eu estava passando muito tempo com uma serva. Então ela trouxe Kille até o meu quarto e começou a espancá-la na minha frente, dizendo que era isso o que ia acontecer se eu começasse a ficar amiguinho dos servos de novo.

Aida imediatamente se arrependeu de ter imaginado aquela garotinha Lith, porque estava tão absorta na história que havia imaginado todo o resto. E aquele desfecho a fez estremecer.

— Sua mãe parece ser uma senhora realmente adorável. — disse nervosamente.

— Ela é a mais gentil da minha família.

Zander não estava brincando e Aida podia sentir o quanto ele estava envergonhado pelas atitudes de sua família naquele momento.

— Eu duvido que ela esteja acima de você neste quesito. — a garota o encarou sugestivamente e lhe deu um sorriso acolhedor, que quase o fez sorrir também. — Então... O que aconteceu? Você a mandou parar, eu suponho.

Ele encostou a cabeça no tronco da árvore e desviou o olhar para as folhas das copas que remexiam-se suavemente com o vento.

— Eu queimei a casa inteira.

E o rapaz desviou os olhos novamente para os próprios pés, falando num tom quase melancólico.

— Conseguiram por pouco salvar a minha mãe. Mas Kille foi... Deixada para trás, nas chamas. — de novo, Aida se arrependeu de ter imaginado a tal garotinha Lith. A imagem dela presa numa casa em chamas e sendo consumida pelo fogo fez a ladra fechar os olhos por um segundo.

Sem perceber, ela pousou uma mão acalentadora no braço de Zander. Embora ele não demonstrasse nada em seu rosto, Aida sentiu como se ele estivesse prestes a derramar uma lágrima. Mas isso não aconteceu e o rapaz apenas voltou a olhar seriamente para ela, pousando uma mão sobre a sua.

— Foi aí que eu entendi o que aconteceria se eu me deixasse levar pelo meu temperamento de novo.

— Não foi sua culpa... — começou a garota, mas Zander a interrompeu:

— Sim, Aida, as coisas ficam bem ruins quando perdemos o controle. — demorou ainda alguns segundos em silêncio, mas finalmente afastou seu corpo do toque dela e soltou sua mão — Perdoe-me, eu não devia tomar tanto do seu tempo.

A ladra sentiu-se quase desapontada com aquela leve rejeição. Bem quando achava que ela e Zander haviam se tornado um pouco mais íntimos depois daqueles momentos... Ele a repelia como se estivesse arrependido de tê-la deixado conhecer um pouco mais de si mesmo. Que cara irritante.

Mas Aida não era do tipo que desistia fácil, aproximou-se um pouco mais de Zander e cravou seus olhos de forma intensa sobre ele.

— Eu não me importo. Sempre tenho tempo para histórias de cortar o coração... E para elfos bonitinhos.

No canto dos lábios de Zander, ela notou um raro prenúncio de sorriso começando a se formar.

— Se é assim, eu tenho uma boa quantidade de histórias de cortar o coração para contar. — para sua surpresa, o elfo devolveu seu olhar intenso e aquilo pegou Aida desprevenida. Sentiu de repente uma sensação de calafrio na espinha, como se tivesse acabado de saltar de um precipício e a adrenalina ainda pulsasse em seu sangue quente.

Nesse momento, Tillie e Sky aproximaram-se dos dois. Pelo visto, estavam prontas para pegar a estrada.

— Vamos? — perguntou Zander.

— Estou pronta quando vocês estiverem. — respondeu Tillie, abrindo um mapa em suas pequenas mãos. — Para o norte, aí vamos nós!

Ingrid Flores
Enviado por Ingrid Flores em 13/08/2015
Código do texto: T5345505
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