O Fã

O escritor tinha um fã.

Franziu o cenho ao se dar conta disso. Sabia que tinha leitores, uns mais fieis do que outros, é verdade, mas nunca lhe passou pela cabeça que tivesse um fã, alguém que conhecesse intimamente o seu trabalho, compreendesse a importância e o significado das palavras que ele colocava no papel e que o apreciasse tanto ao ponto de expressar abertamente isso.

O fã havia enviado uma “carta”.

Não era o tipo de correspondência com a qual estava acostumado. Geralmente, as cartas que recebia vinham dentro de um envelope, com o seu nome e endereço de um lado e o nome e o endereço do remetente do outro lado. Mas essa chegou enrolada e amarrada por um cordão. Era de um material diferente do papel, certamente algum tipo de pele animal tratada e esticada até ficar finíssima. O toque era macio sob os seus dedos, muito agradável. Era de um amarelo envelhecido que remetia a épocas imemoráveis.

A caligrafia do autor era floreada, mais desenhada do que escrita, antiquada para os dias atuais. E a cor dela, um marrom rico que se havia impregnado nas fibras sugeria que a tinta usada não era do tipo mais comum.

O escritor estava intrigado.

Alisou a carta, apreciando o calor que se desprendia dela e passava para os seus dedos. Todo o resto do ambiente era frio como pedra. Decidiu lê-la só mais uma vez, só para se certificar de que entendeu a coisa direito:

“Saudações, Sr Le Mort!

É a primeira vez que escrevo uma carta para alguém e receio que ela não fique tão boa como eu gostaria. (Risos.)Espero que a intenção, pelo menos, pague pelo seu precioso tempo!

Sou seu fã. Sim! Foi uma confissão. (Risos.)Espero que isso não seja algo embaraçoso para você. Tenho certeza de que está acostumado com esse tipo de coisa. Não estou certo? Claro que estou!

Eu o acompanho desde o começo, sabe? Desde o seu primeiro conto, “Estrela da Manhã”, publicado na internet, há mais de uma década atrás. Comprei aquela antologia só por causa dele... a maneira como você descreveu a queda do Portador da Luz e depois o fez se envolver com uma freira já madura foi o que me levou a ir voando até a livraria mais próxima, embora ela ficasse bem longe. (Risos.)Eu nem li o resto do livro, sabe? Mas fiquei abraçado a ele durante horas, revivendo cada momento que você descreveu nele, saboreando cada sentimento que você injetou em cada suspiro que saiu da boca daquela mulher santa...

Depois dessa sua pequena mas brilhante estreia, vieram os seus contos mais sombrios... os meus favoritos! “Dedos de Cera”, “A Casa Sem Fim”, “Cemitérios”, “A Promessa”, “O Casamento Vermelho”... sei todos de cor. (Risos.)Eu ficava, e ainda fico, impressionado com o seu talento e a sua desenvoltura para tratar do sobrenatural de uma maneira tão viva, tão realista e tão... humana.

Mal pude acreditar quando soube que você iria lançar o seu primeiro romance. Foi como se eu tivesse sido atingido por um cometa! Cada partícula do meu ser vibrava de alegria. (Risos.)Foi uma sensação ótima. Que me fez agradecer por existir. “Lendas Sob a Cama” é, até hoje, um dos meus livros preferidos, e eu não empresto para ninguém! (Risos.)

Depois dele veio “Amor Amargo”, que me fez chorar lágrimas de sangue como eu nunca havia chorado antes. E, depois, com “Dorotea”, eu redescobri o caminho para o Paraíso nas suas palavras. Até me emociono ao falar sobre isso...

Recentemente, descobri que você tem publicado historietas picantes em uma revista masculina. Não preciso dizer que sua “Vênus Galáctica” me deu mais prazer do que a imagem manipulada do corpo avantajado daquela... como é mesmo o nome dela?.... ah! Vicki Vintage.

Fico extremamente empolgado quando encontro algo novo seu, seja sobre anjos, demônios, duendes ou mesmo alienígenas hermafroditas. É sério! Eu sei que vou gostar de qualquer coisa que você publicar, seja no papel ou na web. Em contraponto, os meses de espera que já tive de esperar por sua causa, fizeram-me definhar um bocado.

Hoje, você não está tão ativo como antes. Isso me deixa apreensivo. Tenho medo de um dia descobrir que você não escreve nada há anos e que, durante todo esse tempo, eu tenha esperado em vão. Deus me livre! Mas esse medo existe e é quase palpável. Afinal, você nunca foi um sujeito muito sociável. Dez anos colecionando obras suas e sequer consegui uma foto. (Risos.)O mistério que vos cerca, caro Le Mort, é quase tão grande quanto a vossa criatividade.

Devo ressaltar que, não fosse pelo seu trabalho e pela sua disposição em escrever sobre coisas que a maioria das pessoas ignora ou abomina, eu... bem... eu me sentiria meio excluído. Você não deve estar entendendo nada. (Risos.)O que eu quero dizer é: obrigado por existir e tornar este mundo mais... interessante para mim.

Acho que disse tudo o que gostaria de dizer. E... parece que não me saí tão mal assim, não é verdade? (Risos.) Espero ter feito bem em lhe enviar isto. Li em algum lugar que você gosta de pergaminho... espero que tenha gostado deste que eu escolhi, a cabra que deu origem a ele era valiosíssima, mas o dono a ofertou a mim de bom grado.

Atenciosamente,

Luís Cícero, seu fã.”

O escritor ficou encarando o pergaminho milenar, em silêncio. Releu o nome do remetente e sorriu.

Luís Cícero.

Alguém bateu à porta e ele teve de voltar à realidade.

- Pode entrar - disse, levantando-se da cadeira.

Um rosto branco como osso surgiu pela abertura, mas o resto do visitante não entrou.

- O que foi, Vladimir? - perguntou Le Mort, já vestindo o manto negro. - Outro ataque terrorista?

- Não, senhor - Vladimir apertou os lábios até eles se tornarem uma linha ínfima. - O Céu e o Inferno declararam guerra. De novo.

Le Mort fez uma careta, olhou por cima do ombro para o pergaminho enrolado sobre a mesa de ébano e suspirou.

Ter um fã podia ser complicado.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 12/02/2016
Código do texto: T5541648
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