O chamado II

(Continuação)

O guarda, tomado por certo sentimento de hostilidade ao ouvir estas frases serem proferidas pelo estranho homem, deslizou a sua mão direita para baixo e segurou firmemente o cabo de sua espada.

- Quem era aquele velho que mais tinha a aparência de um andarilho? Quem lhe havia dado o direito de falar de maneira tão desafiadora de seu senhor? Que autoridade ele tinha para falar de Deus como se dele fosse íntimo? – cogitava impacientemente o soldado.

Essas questões rebatiam-se em sua mente, e pensar nelas o deixava em um estado de ânimo bastante alterado. Sentiu a temperatura de seu corpo subir e estava impelido a tomar alguma atitude contra aquele homem. Na sua percepção, o velho havia cometido uma terrível blasfêmia contra Deus e contra o seu senhor e isso ele não poderia tolerar.

O soldado, então, fitou os olhos do velho para calcular seu próximo movimento. Ponderava capturar o andarilho e enviá-lo às masmorras, o que certamente renderia alguma recompensa generosa.

Contudo, no momento em que seus olhos encontraram os do sábio, este desejo ganancioso foi arruinado. O guarda sentiu-se impotente, como se um adversário tivesse lhe tirado a espada das mãos em um combate. De fato, os seus dedos que entrelaçavam firmemente o cabo da arma que carregava foram aos poucos se soltando e o corpo do cavaleiro foi sendo tomado por uma onda de relaxamento que fluía dos seus pés até a cabeça.

- Como explicar o que estava acontecendo com o seu corpo e sua consciência? – pensava intrigado o cavaleiro.

A ira do soldado tinha sido aplacada. De repente não sentia mais vontade de prender o velho e muito menos de feri-lo com sua espada. Por um breve instante achou que podia ter sido enfeitiçado pelo andarilho. Sua mente, contudo, tentava lutar contra essa possibilidade, pois jamais acreditara em histórias deste tipo.

A serenidade do sábio e seu estado de profunda paz se faziam notar por um forte brilho que emanava de seus olhos. O guarda sentiu um calafrio. Temia continuar encarando o rosto daquele sujeito, mas uma força mais poderosa o fazia continuar. Mesmo com receio de estar sob o efeito de um feitiço, ele queria ir adiante.

- Há quanto tempo não fitava olhos como o do velho? - pensava enquanto reparava na beleza misteriosa daquela luz.

Instantaneamente uma antiga memória veio à tona. Em uma noite gelada do campo, uma mulher de feições delicadas e longos cabelos pretos servia uma concha fumegante de sopa em seu prato. Após fazer o mesmo às outras pessoas sentadas ao seu lado, a mulher dirigiu a ele um olhar tão penetrante como o do velho e com um generoso sorriso lhe disse:

- Coma, meu bem! Esquente-se um pouco! Está frio e não quero te ver doente!

A memória de sua infância era muito viva e o cavaleiro estava intensamente comovido. Agora tinha certeza de que não se tratava de magia, apesar de ainda não saber muito ao certo o que estava acontecendo.

A mulher em sua visão era sua falecida mãe. Há muito tempo o cavaleiro não pensava nela. Anos a fio lutando guerras impossíveis tinham embrutecido seu espírito. As suas emoções e sentimentos mais genuínos e sublimes tinham sido abafados por uma intransponível couraça que lhe servia de armadura.

Era verdade que cavaleiro havia se tornado um grande soldado, um guerreiro implacável, impiedoso e leal no cumprimento de seu dever. Todavia, os últimos anos de sua vida o haviam mergulhado nas trevas do fanatismo e da ignorância.

O olhar do velho parecia devolver ao cavaleiro a humanidade que ele tinha perdido. O amor que outrora ele enxergava em um simples gesto de sua mãe, apresentava-se agora encarnado diante dele na figura de um velho andarilho.

De repente, toda aquela cantoria que ele acabava de ouvir deixou de causar mal estar ao seu corpo e a sua mente. A maneira como o sábio havia falado de Deus, em vez de causar repulsa, seduziu o cavaleiro a seguir o seu chamado.

O sábio mantinha-se ainda em total tranquilidade, analisando as expressões do soldado que há poucos minutos o queria tão mal. Ao ver que o guarda da ponte agora ensaiava um tímido sorrido e notando que o estado de tensão abandonava o seu corpo, quebrou o silêncio com mais alguns versos:

Corajoso soldado,

em ti ainda habita a Luz!

Isso logo eu reconheci!

Sei também de outra coisa

A sua vocação é a guerra,

não dispensas nunca uma boa peleja!

Alinha a sua espada cavaleiro!

Aprende quem é o seu inimigo

Não jures de morte outro homem sem mesmo conhecê-lo!

Antes de atacar o próximo,

Olha primeiro para o seu próprio interior

Há muito trabalho há fazer!

Um castelo de virtude a construir,

Para que com justiça a sua espada você possa brandir!

Aquele que domina a Ira torna-se Justo

E isso você deve fazer!

(Continua)