Declínio - #1 - Uma história sobre ossos.

(Leia o prólogo antes de ler esse capítulo - http://www.recantodasletras.com.br/contossurreais/5825396 )

Capítulo 1 - Uma história sobre ossos.

Certa vez eu, o narrador dessa história, precisei remover uma cárie dental, não lembro bem como a dentista chamava, obturação se não me engano, eu em toda a supremacia de minha tolice neguei a utilização de anestesia, aquela com certeza foi uma das piores dores que senti. Fogo na perna, sete pontos na cabeça, um soco direto no nariz, nenhuma dessas sensações se aproximava do que Fernando sentia, "alguém que já sentiu todas as dores do mundo" era a alcunha que lhe foi atribuída pelos colegas.

Os olhares de pena seguiam pelo corredor quando após se recuperar totalmente Fernando voltou a frequentar as aulas, os colegas apertavam os lábios e sorriam com frequência para ele, exceto João, que lhe encarava com indiferença que poderia ser facilmente confundida com raiva:

- Fico feliz que esteja recuperado o suficiente pra festa de formatura. - Celebrou Maria.

Pablo riu:

- Eu duvido que o rabugento vá, afinal ele odeia lugares isolados. - Provocou o amigo.

Fernando sorriu, estava feliz de enfim estar ali após algum tempo, sentia-se em casa com os amigos:

- Vou sim, apesar de ser em um sítio e bem longe de tudo. - Disse fazendo careta. - Maria, você como sempre será meu par.

A garota deu de ombros, simulando uma apatia mentirosa.

A maioria dos adolescentes do local já subia para a sala antes mesmo do sinal ecoar:

- Vamos. - Disse Pablo dando o braço para Fernando se apoiar.

- Relaxa, eu to bem... Sério. - Disse Fernando negando a ajuda com um sorriso amarelo.

Enquanto subiram perceberam de relance que João encarava Fernando na multidão:

- Cara, não entendo por que o João odeia tanto você. - Comentou Pablo enquanto se aproximavam da sala.

Fernando encarou de volta o rapaz, que desviou o olhar voltando-se a seus próprios amigos:

- Não entendo também. - Disse Fernando sem prestar muita atenção.

Antes de entrarem de fato na sala, uma mão tocou suave o antebraço de Fernando, fazendo-o parar. Era sua irmã mais nova:

- E ai como está se sentindo? - Perguntou feliz.

Fernando sorriu de volta:

- Estou bem... De verdade. - Respondeu.

A irmã abriu a boca para falar mas fechou novamente, hesitando.

Fernando conhecendo a irmã disse:

- O que você ia falar, você não veio aqui apenas para perguntar se estou bem, afinal acordamos no mesmo quarto, escovamos os dentes juntos, tomamos café da manhã e viemos no mesmo carro até o colégio. - Disse Fernando rindo.

A irmã corou:

- Então... Nossa formatura é no mesmo dia... E eu queria perguntar se posso andar com você lá no sítio. - Perguntou a irmã encabulada.

Fernando riu, de fato a formatura seria no mesmo dia, a de Fernando do colegial e de Gabriela no ensino fundamental:

- Tudo bem, bom que posso cuidar de você bem de perto. - Disse Fernando bagunçando o cabelo da irmã, que sorriu e se despediu voltando para sua sala.

Todos haviam entrado na sala, o corredor estava vazio e antes que Fernando pudesse entrar, uma voz interrompeu-o novamente:

- Cuidar da irmãzinha, como você debilitado pode cuidar de alguém? - Perguntou em tom de deboche.

Fernando conhecia aquela voz, era João.

Era uma história bem simples, João e Fernando cresceram na mesma sala e na mesma rua, João era como um protetor para o colega durante a infância toda, até que Fernando aceitou sua doença e começou a ter mais autonomia, desde então sua relação com João nunca mais foi a mesma:

- Pois é... Mais fácil ela cuidar de mim. - Retrucou Fernando olhando o rapaz nos olhos.

João fechou as feições, ficaram ali se encarando um tempo, até que o mesmo deu de ombros e passou por Fernando na porta, entrando primeiro.

Fernando esperou um pouco e entrou também.

Sentaram em seus respectivos lugares, Maria não esperou nem o colega esquentar a cadeira:

- O que aconteceu, vi daqui de fora você e o João no maior climão. - Perguntou curiosa.

Fernando respondeu olhando para a janela, o lado de fora da escola:

- O João é fraco em não aceitar sua importância real. - Continuou olhando para o céu lá fora.

Maria e Pablo se entreolharam, Pablo deu de ombros e a aula começou.

O professor estava falando sobre doenças raras e diferentes há semanas, falaram sobre Leucemia, Alzheimer, DSTs. Fernando há semanas esperava a vez que tocariam no assunto de sua maldição, sabia que o professor falaria eventualmente sobre esse assunto, pois era de seu feitio criar polêmicas que gerassem algum tipo de desconforto, mas justamente no dia em que o professor tocou no tema, Fernando estava ocupado demais pensando no passado, em sua relação com João, pensando que de fato não conseguiria proteger sua irmã de nada:

- Alguém sabe o que é Osteogênese imperfeita? - Perguntou o professor.

Maria olhou para Fernando a tempo de perceber que o amigo estava longe naquele momento, abaixou os olhos e ficou quieta.

- É a doença dos ossos de vidro! - Respondeu entusiasmado um aluno novo, o único que se manifestou com a pergunta.

Não que ele fosse corajoso nem sentisse indiferença ao colega, ele apenas desconhecia o fato de que Fernando tinha nascido com Osteogênese imperfeita Tipo dois, a mais grave de todas.

Acontece que raramente um bebê com Osteogênese imperfeita Tipo 2 chega de fato a nascer, os fetos morrem ainda no ventre ou no nascimento em si, os ossos são frágeis demais e se quebram com o bebê ainda no útero, Fernando era uma exceção, havia nascido com os ossos mais frágeis dentro de uma doença de ossos frágeis.

O garoto que respondeu a pergunta percebeu que a sala estava inquieta:

- Doença dos ossos de porcelana. - Disse João alto e sorrindo maliciosamente, nesse momento Fernando voltou a atenção à sala.

O professor repreendeu João e explicou a todos as causas dessa doença e como era a vida de alguém com os ossos de vidro.

Fernando ouviu tudo em silêncio até o sinal tocar, quando tocou foi o primeiro a sair da sala, antes mesmo do professor liberar.

Maria e Pablo olharam o professor como que pedissem para sair também antes de serem liberados, o professor consentiu e os amigos seguiram Fernando:

- Ei cara, que besteira ficar assim. - Disse Pablo correndo atrás do amigo.

Fernando sentou no pé da escada de pedra, os dois amigos sentaram em volta dele:

- Quando eu era criança meu sonho era tocar bateria, insisti para meus pais que queria uma bateria... Depois de muito insistir meu pai decidiu dar uma chance a bateria, os médicos disseram que com técnica eu poderia tocar o instrumento, fiquei muito feliz... Foram meses insistindo... Na semana que meu pai iria comprar a bateria eu acidentalmente quebrei diversos ossos da mão brincando com uma caneta... Uma caneta... - Os olhos de Fernando encheram de lágrimas. - Minha vida inteira eu me protejo de coisas simples como esbarrões, uma porta pode me matar!

Os colegas ficaram em silêncio, Fernando estava no seu limite:

- Eu não vou ser seu par esse ano. - Disse Maria séria.

Pablo arregalou os olhos para a amiga, como quem dissesse "Isso é hora de dar uma notícia dessas", mas a menina ignorou.

Fernando olhou para ela, como se olhavam sempre, desde criança:

- Alguém te convidou? - Perguntou Fernando.

- Não, eu não quero acompanhar você na festa só isso. - Disse a garota.

De fato a garota só havia tornado a situação mais constrangedora, talvez ela quisesse realmente tirar o foco da questão dos ossos, talvez fosse outra a ideia...

As outras aulas foram mais tranquilas, na saída Gabriela já estava esperando o irmão mais velho no pátio para irem embora, Fernando se despediu de Maria e de Pablo e foram se dirigindo até a rampa que dava acesso a saída da escola, quando todos ouviram:

- E ai, ficou tristinho hoje na aula? - João dizia isso enquanto se aproximava.

Porém Fernando e Gabriela não pararam e seguiram até a saída:

- Ei, to falando contigo fragilzinho! - Gritou João na intenção de fazer Fernando parar.

Mas eles seguiam, agora quase chegando até o portão:

- Doença dos ossos de porcelana! - Riu alto João com os colegas.

Fernando soltou a mão da irmã e parou, Pablo lá atrás colocou a mão na boca:

- Ui... - Disse João fingindo surpresa. - Parece que vamos brigar agora.

Ele se aproximou de Fernando e encarou bem de perto:

- O que você vai fazer? - Perguntou João face a face com o antigo amigo.

Fernando cerrava os dentes e fechou o punho, Gabriela assistia tudo em silêncio:

- Eu vou socar você. - De fato era essa a vontade do garoto, por um momento esqueceu-se completamente de sua condição.

João fechou a cara, como quem fosse recuar, mas então abriu um sorriso malicioso se aproximando mais e disse baixinho no ouvido, apenas para Fernando ouvir:

- Com dois socos eu quebro diversos ossos da sua cara, deixo você agonizando na frente da sua irmã e passando vergonha na frente da namoradinha. - Disse João pausadamente. - Vai, vira as costas e vai embora daqui, agora.

Fernando abaixou os olhos e se virou de costas, indo em direção a saída, não disse nenhuma palavra até chegarem em casa.

...

- É aqui? - Perguntou Lerian à Glacial.

Glacial olhou em volta para os carros e a multidão:

- Não sei também.

Lerian olhou para o céu e viu um rastro quase invisível, apontava para o extremo norte dali:

- Vamos.

Pedro Kakaz
Enviado por Pedro Kakaz em 25/11/2016
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