Mais de lá

(...)Parecia criança, quando deitava a cabeça no meu peito pra ganhar cafuné. Que chegava em casa cansado do trabalho e vinha se esconder em mim. Eu ti deitava no meu colo e ficava ouvindo todas as lamentações. Às vezes, eu nem fala nada, deixava só tu falar, porque gostava de poder ti aliviar, de ti ver relaxar, e de estar perto e junto pra poder fazer isto.

Gostava de ti fazer massagem, de subir na tua pele massageando desde os pés até a nuca, de sentir teu corpo ir relaxando a cada toque das minhas mãos. Depois deitar do teu lado, e ficar ti olhando dormir, tão sereno, tão calmo, até eu pegar no sono também, ali, do teu lado, toda encolhida. E quando de madrugada, tu despertavas, com frio talvez, me abraçava e me acalentava pra dormir mais junto. Tinha todo o cuidado de me cobrir com o cobertor sem me mexer muito, pra não ter o perigo de eu acordar.

E havia também aquelas noites, em que tu acordavas pra ler. Acendias a luminária do teu lado da cama, se ajeitava meio sentado nos travesseiros, pegava os óculos e abria o livro. Eu não gostava da claridade. Tivemos muitas discussões em torno disto, o que nunca teve fim, pois tu não perdias a mania de ler de madrugada. E não foram poucas as noites que fizeste isso. Eram muitas noites por semana. Muitas vezes eu nem notava, continuava dormindo e outras, eu dormia, um pouco relutante contra a claridade, mas dormia, e outras, geralmente nas sextas-feiras, quando poderia dormir até mais tarde no sábado, acordava, pegava meu livro e lia também ou ia pra sala dormir sozinha. Meu trabalho era muito estressante e tu sabias o quanto dormir bem era fundamental pra mim.

Eu sei o quanto isso ti chateava. Mas não poderíamos ser perfeitos em tudo, tínhamos que ter pontos pra discordar. Apesar de nos entendermos muito bem e conhecermos as manias, os gostos e as vontades um do outro, era inevitável que de vez em quando tivéssemos nossos estranhamentos e nossas brigas. Nunca gostei de discutir, é perda de tempo brigar. Se tu não davas o braço a torcer, eu dava. Como na história da claridade do quarto, se eu não estava gostando, ao invés de reclamar e acabarmos discutindo, eu saía do quarto. Levava travesseiros, cobertor e ia me alojar na sala. Claro, tu reprovavas, mas também não falava nada, sabia que eu detestava discutir. Ainda mais no meio da noite. Nós nos respeitávamos muito. O respeito sempre foi a base fundamental no nosso relacionamento. Mas de fato éramos teimosos. Os dois. E também não gostávamos de brigar. Alguém tinha de dar o braço a torcer, e se não fosse tu, então que fosse eu.

Mas eu sabia que tu não conseguirias deixar nada ruim. Mais tarde acabaria indo atrás de mim na sala. Eu sabia disso, mas mesmo assim deitava e pegava no sono. Depois, escutava os passos leves se aproximarem, tu me ajeitares nos teus braços, pedir pra eu continuar dormindo e me levava de volta pro quarto. Pedia desculpas, com a voz baixa, quase silenciosa e me cobria de carinhos. Me embalava, cuidava do meu sono. Ficavas passando a mão de leve nos meus cabelos, tirando os fios soltos do rosto, deslizando a mão de leve pelo meu braço até chegar na mão, segura-la, aconchegar-me no teu abraço e dormir com a cabeça na minha, perto da minha orelha. E quando amanhecia já estávamos bem de novo.

Dias de semana movimentados, muito trabalho. Eu ficava sozinha todos os dias tu chegares da faculdade. Além de escritor, era professor no curso de letras. Eu aproveitava minhas noites sem ti pra estudar o francês e o alemão, menos nas quartas, porque era tua folga e quando não estava cansado demais programávamos alguma coisa diferente pra fazer. Chamávamos alguns amigos, minhas irmãs ou teus irmãos pra jogar canastra, buraco, pife-pafe ou qualquer joguinho de baralho. Às vezes, até os antigos jogos de tabuleiro entravam pra brincadeira. Jogo da vida, Banco Imobiliário, Detetive e até jogar palitinho valia. Adorava essas noites de jogatina. Tu sempre cozinhaste muito bem, por isso, aproveitavas essas reuniõezinhas pra pôr teus dotes culinários em prática e, claro, todo mundo adorava.

Depois que todos iam embora, e íamos limpar a cozinha, guardar os jogos, como foste tu quem fez o jantar, eu não reclamei em ter que lavar a louça. E enquanto eu lavava, tu ias tomar banho pra me esperar pra deitar. Não era tarde, no máximo às dez e meia já estaria tudo terminado, mas nem me importava de ficar sozinha na cozinha, fazendo tudo, tu só tinhas uma noite de folga durante a semana e eu entendia que tinha que descansar.

Quando subia, ia direto pro banho. E quando ia pro quarto, tu estavas dormindo, mas como eu sabia que gostavas de abraço depois do meu banho, eu me aconchegava ainda meio úmida em ti e começava a ti dar beijos leves no peito, no pescoço, nos olhos, nas bochechas, na boca, voltar a descer pelo pescoço e chegar na barriga e subir de novo pra deitar a cabeça no teu peito. Claro, tu acordavas, e ainda meio sonolento acariciavas minhas costas, me puxava e me beijava pra valer. E eu gostava tanto, que era quase um vício os teus beijos. Ainda mais misturados aos teus toques e teus carinhos que só tu sabias por onde começar e como ou quando terminar. Se não era perfeito chegava muito perto de ser. Era a nossa perfeição.

E os abraços, os carinhos escondidos, as manhas, as chorumelas, os sorrisos bobos, as risadas, a respiração forte, os passos diferentes, o som da respiração. Saudade de cada pedaço e de cada tempo. (...)

(continua.)

Gabibis
Enviado por Gabibis em 12/08/2007
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