Aqua Cristal

A linha calma vestida pelas águas não-violadas pelo trajeto do navio se assemelhavam bastante à camada de terra inviolada que cobre a tão amada e preciosa terra firme.

O navio que se movia sob os seus pés mortais caminhava em linha reta até um destino desconhecido,abocanhado pelo horizonte,onde mar e céu se beijavam eternamente,longe de olhos de aventureiros.

O iniciante marujo olha perdidamente para o mar.Sua pobre e infeliz imaginação não consegue imaginar o quão hostis poderiam ser os ambientes obscuros e criaturas horrendas sob a película superficial da água.Havia passado uma vida inteira tendo os seus tímpanos entupidos com histórias de que o inferno era uma terra regada à fogo e lava,onde os pecadores para lá condenados passavam da eternidade sendo torturados com todo tipo de dor e sofrimento que os seres vermelhos e chifrudos poderiam proporcionar.Na estranha serenidade daquele momento,tinha certeza que os religiosos estavam completamente errados.O inferno estava justamente em baixo dele.E ele não era governado pelo fogo e habitado pelos vermelhos chifrudos.Ele era governado pelo mar e seus habitantes eram seres tão misteriosos e aterrorizantes que a mera suposição de sua forma física poderia assombrar os homens com a mais divina loucura.E os pecadores condenados ao castigo eterno seriam torturados com infinitas correntes de água preenchendo o seus pulmões e retirando o ar responsável pela sua humanidade.Seus restos seriam jogados à areia.Devorados pelos monstros da água eles seriam.

Tais pensamentos apenas colocariam o Marujo num mar de temor e paranóia.O mesmo tentou se distrair com as milhares de tarefas disponíveis com intuito de garantir a integridade do navio construído em madeira refinada.

O sol adormeceu.A lua despertou de seu sono para anular o calor vermelho do sol.Sob a luz tão pálida quanto a brisa gelada do inverno,céu e mar foram tingidos com a mesma cor,tornando-se um só.

O Marujo se levanta de seu descanso.Este último foi bruscamente violado por um grito estridente.Tão estridente que poderia ter arrancado a sua alma de sua frágil casca.Ele se levantou,porém ninguém mais estava de pé.Muito menos acordado.Acreditava que aquele grito era apenas para ele.Um chamado vindo do inferno do mar ou uma alucinação criada por sua própria cabeça atormentada pelo odor do sal.

Ascendeu uma lamparina.Uma fagulha de luz num ocenao de escuridão.Ele se dirigiu até a borda do navio para ver algo distante de sua zona segura.Um amontoado de rochas sobre o mar.Estavam organizadas de uma forma tão imperfeita que contaminavam a calma do oceano com sua imperfeição.Mas havia algo a mais...

Uma silhueta preenchida com o branco vivo que apenas uma pessoa poderia vestir.As únicas formas percebidas pelos seus globos oculares eram semelhantes à de uma mulher.Ele se apropriou de um dos botes anexados ao navio e navegou pelas águas negras a fim de saciar sua curiosidade faminta por respostas.

A madeira do bote se encontrou com a rocha fria.O Marujo deixou sua área de conforto apenas para ver algo que desafiava a sua razão.

Uma mulher que tinha a cauda de um peixe no lugar das pernas.Seus cabelos brilhavam como se sua alma fosse banhada à ouro.Havia uma criatura de carne sobre sua mão esquerda que tinha a forma de uma estrela.Ela acariciava a mesma com a sua mão direita e a olhava como se fosse a sua filha.Uam criatura vinda do mar.

Era como se o oceno fosse a sua terra firme.Mulher e água em harmonia como um só.

Antes que o Marujo manifestasse alguma palavra do seu idioma,a mulher-peixe desviou seu rosto para o primeiro e lançou-lhe um olhar sem nenhuma gota de ameaça.

Aquele sereno olhar paralisou seus ossos por um instante.Ele acreditava fielmente que a bela aparência mascarava a sua monstruosidade.

A sua bela voz embalada por um tom lírico serviu para afirmar sua parcela de humanidade.

"O que procura,Marujo?",foi o que ela disse.Aquela frase o acertou feito uma bola flamejante de canhão.Esperava que sua língua fosse formada por palavras que pareceriam profanas para os mais supersticiosos.

"Pensei que estivesse perdida no mar.Deixei o meu navio para poder resgatá-la",ele disse.Tentava procurar algum resquício de coragem para manter a postura perante aquele ser estranho,porém gracioso.

Ela riu.Uma risada revigorante e cheia de vida.Ela aparentava possuir fôlego fora do mar,lugar onde parecia ser a sua casa.

"Acha que estou perdida,mas nunca estive tão familiarizada com estas águas",disse ela.Sua expressão era bem humorada.Conversava naturalmente com o Marujo como se ele não fosse perigoso.O medo não se mostrava presente na sua voz.

"E que tipo de criatura você é?",perguntou o Marujo.A curiosidade corroía a sua carne como uma enfermidade mortal.

"Fico feliz em ouvir isso de você",respondeu ela,sentindo-se lisonjeada."As minhas nadadeiras cobertas por escamas me permitem navegar sob estes mares como um peixe,ao mesmo tempo que possuo as feições e linhas de uma mulher",dizia ela enquanto batia suas nadadeiras sobre as pedras abaixo dela."De uma certa forma,eu atendo pelo que vocês homens chamam de sereia",revelava ela enquanto puxava suas mechas amareladas para revelar os cortes horizontais no seu pescoço,semelhantes às guélrras usadas pelos peixes para respirar dentro das água.

O Marujo finalmente estava observando uma criatura marinha.Porém,ao contrário do que ele imaginava,ela não possuía uma forma estranha,aparência horrenda ou dentes assuatadores.Era apenas uma criatura com traços humanos que possuía as características para possibilitar sua vida no ambiente marinho.Além disso,sua beleza era uma qualidade nunca antes vista por pessoas como ele.

"Mas como poderia uma criatura tão bela quanto você sobreviver neste inferno cheio de água e sal?Não existem outras criaturas perigosas que poderiam lhe fazer mal ou te machucarem?",perguntou o Marujo.Não acharia crível a possibilidade daquela bela sereia viver num espaço desconhecido,servindo de presa fácil para ameaças misteriosas.

Ela riu novamente.Uma risada mais forte que a anterior.

"A parte humana da minha aprência pode parecer uma isca para eventuais predadores,mas nós sereias vivemos em harmonia com os outros seres marinhos.E além disso,nós sabemos nos denfendermos",disse ela,aparentando estar segura de si.Todavia,a persistência do olhar de curiosidade e indagação do Marujo a incomodavam.Sua expressão de alegria se desmanchou em um sinal de tristeza.

"Mesmo passando seus dias sobre as águas,ainda é desconhecido sobre elas a ponto de tratá-las como territórios hostis?",perguntou a sereia,lançando um corte de seriedade com as lâminas dos seus olhos.

O Marujo acenou com a cabeça,expressando a sua tímida sinceridade.

Em seguida,a sereia passou seus dedos entre as mechas de seu belo cabelo.Como se estivesse tentando tirar alguma coisa delas.

Uma espécia de jóia emergiu de suas mechas.Sua forma era perceptível aos olhos no momento que ela parou nos dedos dela.Um pedaço de vidro redondo,colorido com um azul extremamente escuro e preso à uma argola de um metal pintado de negro.

"O que seria essa jóia?",indagou o Marujo.

"Este é o Olho de Poseidon.É uma jóia guardada pela maioria das sereias.Se você olhar por ela,poderá ver o mundo vivido por nós,sendo este invisível para olhos humanos",disse ela enquanto colocaca a jóia sobre a palma de sua mão desocupada com a lamparina.Ela a fechou com os seus dedos e deslizou os seus sobre a mão fechada.

O Marujo sentiu a massa daquela jóia em sua mão.Sentia estar segurando um objeto estranho ao seu toque.Um pedaço do oceano preso em seus dedos.O presente de uma sereia.

"Obrigado",disse ele.Ela sorriu ao ver a sua gratidão.Ele virou o pescoço para trás e viu o seu navio parado no mesmo lugar.Ele voltou para ela."Tenho que ir agora.Creio que não hesitariam em partir sem um membro da tripulação", continuou ele.Sua preocupação era verídica.

"Eu entendo.Espero que fique feliz com o meu presente",disse ela.

"Não se preocupe.A beleza dele já me agradou",disse ele,com toda a sinceridade do mundo.

Ela sorriu ao ouvir suas palavras.Um sorriso com uma gota de tristeza ao vê-lo partir.

Ambos se despediram antes de voltarem para as suas respectivas camas.O Marujo voltou para o seu modesto bote e remou até o seu navio.No meio do percurso,não conseguiu desviar seu olhar da sereia sobre o amontoado de rochas.Apenas no momento no qual o encouraçado de madeira chegou ao seu alcance que ela pulou sobre as rochas,em direção à água e desapareceu.Desapareceu dentro de seu espaço natural,banhado pelas trevas e iluminado pela lua.

O Marujo deitou sua cabeça sobre o travesseiro mais uma vez.Começava a achar que tu aquilo foi apenas um sonho bem realista ou uma forte halucinação norturna.Porém,isso não teria a mesma graça do que cobrir aquilo com o mantoda realidade.

Ele aproveito o pouco tempo garantido pelo seu sono para examinar o presente da sereia antes de cerrar os olhos e ser levado para o dia seguinte.Nunca havia visto uma jóia como aquela.Uma vida inteira sem ter visto aquilo.Um artefato dado por uma mulher-peixe.Ele se lembrou do que ela disse.

"...poderá ver o mundo vivido por nós,sendo este invisível para olhos humanos..."

Aquela parte ecoou em sua cabeça como um grito caminhando dentro de uma escura caverna.Estava de fato interessado em ver o mundo vivido por elas após o encontro com a enigmática sereia.E aquela jóia é a chave para vê-lo.

Ele posicionou a jóia sobre o seu globo ocular faminto por luz.Ele viu através dele.

A escuridão do quarto entrava em completo contraste com a visão da jóia.Via um espaço tomado por várias luzes claras e coloridas,sendo estas de cores quentes.No instante no qual a luz branca não obstruía a sua visão,contemplou a verdadeira imagem através daquele artefato.

Ele via o mar.O salgado mar.

Povoado pelas mais belos das estruturas naturais e decorado com plantas marinhas desenhadas cuidadosamente,ele se distanciava muito do inferno molhado ao qual atribuíra o mesmo nome.As criaturas que trafegavam pelo mesmo não ostentavam nenhum sinal de hostilidade.O perigo não estava escito em suas faces e caminhavam de forma suave e calma.Seguindo o seu próprio caminho,sem quebrar a tranquilidade de outros seres.

Seus olhos eram agraciados com tudo aquilo.Principalemnte após as sereias aparatarem no seu campo de visão.Tão belas quanto aquela que conheceu há pouco tempo.Tão vivas quanto ela.Tão graciosas quanto ela...

...até a jóia deslizar de seu olho maravilhado e voltar para o ambiente morto do dormitório do navio.Ter as quentes cores arrancadas de seu olho e substituídas violentamente por um quarto escuro de madeira compartilhado por seus companheiroa de viajem foi um susto que não somente causou uma imensa dor ao seu olho,como também envenenou o seu peito com uma sensação sombria similar à tristeza.

Nunca pensaria que o mundo dos homens fosse parecer tão estranho para ele mesmo.

O Marujo acordou de seu sono fundamental.Quase se esqueceu de sua inestimável jóia.Passou a mão sob o seu travesseiro e a encontrou com seu tato.O sorriso involuntário que esboçou ao se reencontrar com sua amada peça era tão largo quanto o mar poderia se extender até ser engolido pelo horizonte.

O seu pedaço das maravilhas do oceano estava em suas mãos.

Enquanto os outros tripulantes do navio trabalhavam até seus corpos se desmancharem em suor,o Marujo se apoiava sobre uma das bordas do encouraçado e olhava as águas através da jóia.As imagens vistas pela mesma ainda conservam a sua beleza única e original.As criaturas pareciam tão reais que ele poderia tocá-las e sentir sua pele molhada.As plantas marinhas tinham cores tão iluminadas quanto as suas irmãs da terra firme.A areia parecia tão perfeita que poderia dormir sobre ela e fazê-la tua cama pelo resto de seus dias.As sereias vistas por aquela estranha ferramenta aparentavam estar felizes com a sua presença e começavam a seduzí-lo para as terras líquidas.Falavam em abandonar o mundo das pernas e viver no mundo das nadadeiras.

Tal oferta era muito tentadora.

Isso até um outro tripulante agarrar o seu braço com a jóia e puxá-lo para examinar a mesma.

O Marujo olhou para o dono da mão que puxou a sua.Um tripulante de imagem demasiadamente mal cuidada.A pele do topo da sua cabeça era mais evidente que o seu cabelo,combinando com a barba mal cuidada e mal aparada.Seu corpo era corado devido aos longos banhos de sol.Sua boca fedia como a bunda de um rato e era possível ver o estado da mesma,facilitadado pela falta de vários dentes.Os poucos restantes tinham um estado similar à sua casa.Os tecidos sujos e surrados denunciavam o tipo de pessoa que o importunava.Os olhos selvagens viam a sua jóia com extrema cobiça.

"O que pensa que está fazendo,Marujo?",perguntou o tripulante,com uma voz áspera quantp o gralhar de um corvo."Acha que pode ficar o dia inteiro admirando esta jóia enquanto seus colegas morrem de trabalhar?"

"Eu não estava querend...",tentou se explicar o Marujo,mas sua tentativa de defesa fracassou miseravelmente no momento que o tripulante estendeu rapidamente suas garras para arrancar a jóia de suas inocentes mãos.Ele esforçou-se em manter o homem morinbundo longe de sua pessoa,mas sua cobiça era mais forte.

"Todo tesouro que chegar neste navio não pertence mais a um só",esbravejou o tripulante.Seu grito era tão violento e agressivo quanto o grito de um demônio.O medo cresceu dentro do Marujo,achando estar na presença de um monstro.

Foi apenas uma questão de segundos até os outros tripulantes se assimilarem à baderna.Não sabia dizer quem se aproximou para terminar o confronto e quem se aproximava para arrancar a jóia de sua mão.Animais vorazes brigando por comida.Tempestade agitando os céus.A foice do caos cortando a cortina da serenidade.

O tormento do Marujo só acabou no momento que sentiu alguém lhe empurrar com uma força forte o bastante para jogá-lo para a borda do navio e fazê-lo cair deste.O modo como submergiu na água foi tão súbito quanto a certeza que a morte o esperava impaciente.Ninguém foi até a borda procurar por ele enquanto ele era engolido pelas águas.Ao mesmo tempo que o mar penetrava pelas suas narinas e inundavam seus pulmões,viu a sereia sair da sombra do encouraçado para olhar a sua condição.Não saberia dizer se ela era real naquele momento,ou apenas uma ilusão criada por sua cabeça para suavizar o início do seu descanso eterno.Sua expressão de profunda tristeza o fez olhar para suas mãos uma última vez.

Nenhuma delas estava segurando o Olho de Poseidon.

O Marujo não se importou.Ele fechou os olhos,manteve a calma e se deixou ser engolido pelo vasto oceano.

Ele sabia que não estava indo para o Inferno,mas sim,para o Paraíso.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 02/09/2017
Código do texto: T6102322
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