A Vendedora de Sonhos

Areia. No cabelo. Nas mãos. Nos pés. Nas roupas. Na pele.

Como poderia estar sobre um mar de areia se tudo que os olhos vêem são apenas a clássica escuridão?

Levanto-me e tudo que a visão consegue captar é a divisão quase inexistente entre um oceano de areia cuja existência se estende àquela observada pelo meu ser e o céu negro e frio, como se o mundo estivesse submerso em uma longa e gélida madrugada.

Nego-me a acreditar de imediato nesse antro de solidão grosseira. Um fruto de um sonho não requisitado. Porém, os grãos abaixo de mim insistem em permanecer sobre a superfície que cobre minha força vital. Se comportam feito verdadeiros grãos. Cheiram como eles.

O que poderia justificar minha entrada nesse espaço que se compromete a imitar de forma cruel a realidade na qual houve minha gênese?

Viro minha confusa cabeça para todas as direções e tento procurar alguma alma perdida neste silencioso inferno. O contato social poderia, de certa forma, amenizar a tempestade no interior da minha caixa craniana.

Os pés tocam a fofa areia e transformam a caminhada em uma tarefa menos exaustiva. O desespero devorava minha calma como vermes se alimentado da podre carne.

A procura terminou. Vejo uma silhueta. Uma silhueta que parecia ser uma pessoa sentada. Uma silhueta preta e verde.

Corro até ela como um nômade sedento por água. Sinto minha força esvanever. O corpo secar. Os olhos perdem a nitidez.

Consigo chegar perto da silhueta. Uma mulher. Cabelos tão negros negros quanto a noite. Um rosto jovial que me trazia um fino fio de paz. Um vestido tão verde quanto a juventude que aparentava portar.

Outro detalhe dela que eu não havia identificado quando eu a vi de longe era o grande pedaço de tecido que se estendia no chão. Um tecido azulado, quase enegrecido. Sobre ele, foram deitadas várias peças de artesanato, fabricadas a partir pedaços de madeira e fios de tecido. Materiais estes que, obviamente, não se encontram no espaço aqui presente.

Ela poderia ser uma viajante. Uma viajante que, ao acaso, parou no mesmo deserto sombrio onde parei.

“Olá, viajante”, eu disse, com a voz seca e quase irreconhecível para mim.

Ela, que estava concentrada em seus pertences sobre o tecido, olhou para mim e ouviu o que eu havia dito. Ela começou a rir de forma animada, como se eu tivesse falado algo que tivesse saído direto da boca de um comediante. Aquela situação ficou mais estranha para mim.

Quando ela recuperou o fôlego, ela finalmente falou.

“Você me chama de viajante, mas você também é um”, disse ela, com uma voz suave que transparecia certeza.

O desentendimento se fez presente em meu rosto. Perguntei o motivo daquele dizer, e ela respondeu pacientemente:

“Não lembra deste lugar? Acreditava que o esquecimento não fosse algo tão danoso para este lugar. E só de ver você colocando os pés aqui com uma cara de clara surpresa te faz um turista em um espaço que antes era seu.”

“Do que está falando?!”, eu disse, com a raiva e o incômodo transbordando pela minha voz.

“É disso que estou falando”, disse a moça ao tirar um dos itens do tecido esticado sobre a areia. Era um urso. Um urso feito com tiras retorcidas de madeira. Apesar de ser uma escultura simples, ela trazia instantâneamente a lembrança de um urso.

Fiquei incomodado com aquela situação. Por que aquela louca, sob nenhum contexto, me mostrou uma escultura escultura de madeira?

“O que significa isso?”, eu disse, visivelmente incomodado. Não sabia o significado daquilo.

“Será que a vida adulta foi tão amarga com você a ponto de fazer com que você esquecesse do lugar onde você guardava seus próprios sonhos?”, respondeu ela, com total certeza das palavras que acabara de dizer.

Paralisei por um momento. Um fio gelado e hostil subiu pela minha coluna. As possíveis palavras que poderiam ser disparadas pelo meu canhão de falas encontram-se dispersas dentro de mim. Nunca pensei que formular uma simples frase naquele momento fosse uma tarefa hercúlea.

“Então… Vejo que se esqueceu”, concluiu ela enquanto colocava a escultura de tiras de madeira em seu devido lugar na coleção de peças artesanais. “É engraçado ver o quão rápido o amor pelos animais e o ardente desejo de observá-los em seus habitats pode queimar tão rápido. O quão estúpido pode parecer viajar apenas para conhecer animais os quais nós conhecemos por fotos de livros de escola. Tem certeza que se lembra disso?”.

E eu me lembrei. Das miniaturas de animais que eu colecionei com tanto carinho. Dos mapas que estendi nas paredes do meu quarto. Das enciclopédias que me esforcei tanto para conseguir. Nos trajetos nos quais pensei tanto em fazer.

Tudo isso… Condenado ao tártaro do esquecimento profundo. Isso graças às prioridades de uma vida adulta. Uma vida sem atrativos. Uma vida sem flores. Uma vida recheada de obrigações.

Uma vida que eu não queria.

“Que bom. Vejo que se lembrou. E não só isso, como também há sobre este tecido algumas coisas a mais sobre você, como esta aqui”, disse ela enquanto me mostrava outra escultura de tiras de madeira retorcidas. Era uma cesta, com o que parecia ser um ser vivo dentro dela.

Era um bebê.

“Uma pequena vida capaz de dar algo tão grande. Não só a você, mas a todas as pessoas à sua volta. Pessoas ligadas à você. Ligadas por laços tão fortes que resistiriam até aos piores dos tempos e até às piores tempestades. Qual é o nome disso? Família?”.

Ele me remeteu ao meu sonho de constituir uma família. Uma amável esposa. Amáveis crianças. Um núcleo de pessoas no qual eu poderia depositar e receber todo o amor que um ser humano poderia presenciar. Entretanto, todo o calor do interior do meu coração foi roubado por este mundo cinzento no qual eu vivo. A ideia de constituir uma família passou a ser considerada um fardo o qual eu não poderia suportar. Meu corpo não sabe mais nutrir calor por um alguém.

Uma coisa tão fácil de se sentir passou a ser algo tão impossível de se sentir.

“E por último, um item especial”, disse ela ao mostrar para mim o último item de sua estranha coleção: Um violão. Um violão feito com tiras retorcidas de madeiras, assim como os outros itens da coleção. “Com doces melodias saindo de seus delicados dedos e uma voz carregada de uma suave ternura, a música que emanava de você poderia encantar até mesmo os mais endurecidos ouvidos. Um talento tão único, fadado ao desperdício”.

Meu amor pela música. Uma coisa tão forte, capaz de resistir a quaisquer obstáculos, foi demolida por algo patético como a procura de um emprego formal, apenas para viver uma rotina a qual eu abominava com todas as unidades do meu ser. Todas aquelas coisas resultaram em uma casca vazia, sem cores e sem odores.

Uma intensa ansiedade cresceu pelo meu peito feito tarântulas cravando suas asqueosas patas dentro de minha pele. Eu tinha a obrigação de saber quem era ela.

“Que tipo de pessoa é você?”, eu disse, com o medo palpitando a minha voz.

“Sou uma vendedora de sonhos, meu querido”, disse ela enquanto passava suas mãos sobre os artigos artesanais jogados sobre o seu pedaço de tecido.

Minha mente deve estar iludindo minha cabeça com a mais assustadoras das ilusões. Uma pessoa capaz de entrar em minha cabeça como se fosse um ligar qualquer e roubar meus antigos sonhos como se fossem suas estúpifas peças de artesanato seria uma pessoa digna de minha ira. Ela roubou meus pertences e admite isso na minha frente, como se não houvesse nenhum problema em admitir tal crime.

“Como você pode se chamar vendedora se você roubou algo que me pertence?”, eu disse, enraivecido.

“Bom…”, disse ela, aparentando estar indiferente quanto a minha fúria. “... não me considero uma ladra em relação ao modo como coleto minhas mercadorias, mas sim, uma sucateira”.

Manter minha expressão de raiva foi inútil em disfarçar a tristeza que se formava dentro de mim.

“Em outras palavras, eu pego sonhos que as pessoas não querem mais e os vendo para aquelas que possam cultivá-los.”

Como um raio que atinge minha cabeça. Assim foi o jeito como a melancolia andou dentro de mim. Deixei meus sonhos e desejos morrerem e apodrecerem em prol de uma vida chata e monótona. E agora, alguém vai viver os sonhos que almejei tanto em viver, fazendo do meu corpo uma carroça para uma mente rabugenta, cansada e triste.

A não ser que eu impeça isto.

Tentei avançar rapidamente sobre ela. Tinha o intuito de pegar meus sonhos de volta, e talvez algums de outras pessoas. Queria o bastante para não morrer deprimido. Infelizmente, ela foi mais rápida do que eu pensei. Com uma das mãos, ela pegou uma das pontas do tecido jogado sobre o chão e a jogou para o lado oposto, com o intuito de proteger as suas mercadorias. E com a outra, ela tentou me empurrar. O movimento, porém, parecia carregado com uma força sobre-humana, capaz de me mandar para um local longe de onde estávamos…

Recupero minha consciência. Abro meus olhos. Vejo pessoas. Várias pessoas ao meu redor. Muitas pessoas perto de mim. Estamos dentro de uma estrutura de metal. Um metal retorcido, viajando muito rápido.

Um metrô. Um metrô cinzento. Rodeado por várias pessoas cinzentas.

Creio que é assim como vou morrer. Triste. Cinza. Fraco. Com o coração endurecido.

Como eu queria poder sonhar de novo.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 20/02/2018
Código do texto: T6259508
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