Flocos de Neve

O fabuloso mundo de Raysh é repleto de reinos exóticos, como o lar dos anjos no polo norte ou o dos demônios no polo sul, além das cidades fundadas por humanos, elfos, anões e outras raças.

Entre todas as cidades ou províncias, uma das mais impressionantes fica no reino oriental de Wutao e chama-se Wah. Nela, a maior parte da população vive em um dos vários monastérios, praticando artes marciais.

Cada templo prega um motivo para os lutadores se exercitarem. Alguns acreditavam que isso fosse um estilo de vida, outros buscavam manter uma tradição e havia boatos que alguns monastérios ensinavam técnicas de combate para criminosos.

O Templo da Neve fica em uma das montanhas mais altas da província, mas, nem, por isso, procura se isolar do que acontecesse com o restante da população. Os que ali residem, treinam arduamente tanto quanto ajudam as comunidades carentes com comida, acupuntura ou conselhos.

Leng é um dos monges do templo. Jovem, exímio lutador com espada reta e muito querido tanto pela população quanto por lutadores de outros monastérios.

Certo dia, durante a refeição matinal, o jovem foi chamado pelo grão-mestre a uma reunião particular na sala de meditação. Leng foi até lá e encontrou o velho responsável pelo treinamento de todos sentado no chão, à frente da estátua de um monge sorrindo com o olhar direcionado a um pergaminho. Era Yen, O Primeiro, fundador do templo.

— Sente-se, meu jovem – ordenou o grão-mestre.

Leng era sábio o bastante para saber que, antes de entrar, era preciso curvar-se em respeito ao local. E antes de se acomodar, curvar-se perante o mestre também era um sinal de respeito.

O velho sorriu e disse:

— Leng, todos os anos a nossa província manda um representante para o torneio de esgrima entre províncias e o vencedor vai competir com os campeões de outros reinos. Se vencer, ele será consagrado o melhor guerreiro do mundo. O senhor sabia disso?

— Sim, mestre.

— Pois bem. O rei da nossa província veio falar comigo pessoalmente e pediu que eu escolhesse um lutador para representar o nosso povo. E eu penso em indicá-lo.

Leng teve vontade de falar, mas procurou se conter. Era falta de respeito desacatar um pedido do mestre. Cerrou os lábios discretamente, deixando o silêncio no ar.

— Está com alguma objeção? – perguntou o grão-mestre.

— Não, senhor.

— Fico honrado. Pedirei a um monge que leve minha carta de recomendação. O senhor continuará seu treinamento com seus irmãos e está dispensado das tarefas domésticas para realizar treinos individuais. Fique a vontade para pedir auxílio aos seus irmãos mais velhos – notificou o mestre, referindo-se aos discípulos mais antigos — Alguma coisa a dizer?

— Não, senhor – mentiu Leng.

— Então o senhor está dispensado.

*

Leng seguiu a rotina indicada pelo grão mestre, porém, sentia-se pressionado. Ele não podia pedir conselhos a ninguém no templo, pois ele era o primeiro monge a participar do torneio. Até pensou em pedir audiência com algum discípulo de outro monastério que houvesse participado, contudo temeu soar como uma afronta pela confiança que o grão-mestre depositara nele.

Com a alimentação e o sono ficando cada vez mais desiquilibrados, Leng passou a meditar com grande frequência. Às vezes, em conjunto e em outros casos, sozinho.

Faltando poucos dias para o primeiro duelo, ao ver que a meditação não trazia a paz que precisava, interrompeu sua atividade e começou a andar em círculos pela sala do templo.

Sozinho, passou a observar as coisas. A luz do luar entrando pela janela, o som na neve acumulada caindo do lado externo da sala e a expressão feliz da estátua em sua eterna leitura.

— Como o senhor conseguiu lidar com a pressão de ser o primeiro de seu monastério, Mestre Yen? – perguntou Leng, até que teve uma curiosidade de saber: será que tinha algo de importante naquele pergaminho?

O monge foi até a estátua e leu no pergaminho a seguinte mensagem:

"Aquele que conseguir atingir cem flocos de neve com sua arma durante uma única nevasca, terá qualquer desejo realizado".

Leng sentiu um peso enorme sair de cima de seus ombros. Havia esperança! Yen era conhecido pela sua sabedoria e, se ele sabia daquela profecia, é porque ela era verdadeira.

Com o ânimo renovado, ele foi até a sala de armas do templo e pegou uma espada. Em seguida foi até os pátios abertos, onde viu a neve caindo.

Sacou a arma e aparou um floco de neve que ia cair em seu ombro:

— Um! – gritou.

Depois viu outro floco caindo à sua frente. Deu uma estocada nele e contou:

— Dois!

Em alguns momentos, Leng teve que ser ágil para atingir três flocos ao mesmo tempo. Em outros, teve de ter paciência para esperar um floco cair. Houve até raros casos em que precisou correr para alcançar algum que caía bem distante dele.

No início da madrugada, Leng tremia de frio e estava todo molhado de suor e neve derretida. Mas estava satisfeito.

Ele havia conseguido atingir cem flocos.

*

Alguns dias depois, Leng saía do templo acompanhado do grão-mestre e discípulos. No caminho, ouviu desejos de sucesso de outros monges e civis.

O monge foi até uma praça que seria usada como arena de duelo entre ele e um samurai de outra província.

Leng e o samurai se apresentaram, ouviram as palavras do rei de Wah e se posicionaram para começar o combate.

Com a visão mais apurada de tanto focar nos flocos, Leng parou para analisar o oponente: sem armadura, usando vestes tradicionais, o samurai ia aproveitar a mobilidade e investir em ataques rápidos. O olhar dele estava dirigido para o ombro de Leng, e ele deduziu que era lá que ia ser atacado.

O samurai desembainhou sua espada e tentou usá-la para golpear o ombro de Leng como previsto, que defendeu e contra-atacou com uma estocada certeira no abdômen do guerreiro. Sem defesa, o adversário do monge não resistiu ao impacto e caiu para ser socorrido pelos seus aliados.

A plateia ficou tão pasma que demorou alguns segundos para começarem a aplaudir.

Leng refletia sobre tudo que aconteceu e lembrou-se dos movimentos que executara durante a nevasca: proteger o ombro... e atacar com uma estocada.

Yen tinha razão.

Seus desejos estavam começando a se realizar.

Davi Paiva
Enviado por Davi Paiva em 11/03/2018
Código do texto: T6277250
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