Rirone - Ato 1

Soldado de Fe-ho (Parte 1)

Desde a primeira vez que Ícaro ouviu de seu mestre as passagens do documento que retratava muito resumidamente o passado recente do Mundo de Rirone, ele estava convencido de que era uma dessas crianças cuja semente da vida foi plantada no peito.

Com seus cabelos ruivos caídos no rosto, Ícaro olhava para seu tutor como um recém nascido olha para sua mãe. Um olhar de afeto tão grande que, por um breve momento, ele pode esquecer da sua triste vida na cidade de Fe-ho.

Sua mãe, já velha e rabugenta, não aceitava a idéia do garoto de apenas 16 anos na força militar da cidade e seu pai, um mineiro alcoólatra, não era o melhor dos exemplos.

Em Fe-ho, a cidade industrial como era chamada pelos estrangeiros, um jovem que não possuía antecedentes militares dificilmente conseguia seguir uma carreira no exército. Um cargo de respeito na cidade, pois noventa por cento dos homens de Fe-ho ou eram militares ou trabalhavam nas minas de tripodium.

Sentado sob uma pedra esculpida em forma de nuvem, Ícaro recebia de seu mestre uma pequena espada de aço, a qual poderia apresentar na cerimônia de iniciação militar. Geralmente, essas espadas eram passadas de pai para filho, mas Ícaro recebeu-a de seu tutor como prova de amor e amizade.

Foram quatro anos de treinamento nas colinas que cercam a cidade, e durante esses quatro anos, Shugal, o sacerdote dos ventos, foi o único amigo de Ícaro. O velho homem de barba branca e quase nenhum cabelo, reconheceu o garoto como sendo uma das crianças descritas na profecia. O sonho de um dia aprender a voar e o sorriso sereno que apesar dos problemas nunca saíam do seu rosto, foram os principais fatores a convencerem o velho. Desde o dia em que Ícaro teve certeza de que era o jovem certo, ele sustentou a força necessária para se tornar um militar, e assim poder partir em sua jornada sem destino.

Na pedra em forma de nuvem, Ícaro presta reverência a seu tutor com um majestoso movimento com a mão esquerda – Obrigado por ser meu amigo, disse ele.

-Não seja bobo pequeno, tenho certeza que na guarda mirim de Fe-ho você fará muitos amigos. Quem sabe não consegue até uma namorada. - Sorriu o velho Shugal.

-Ah, a guarda mirim, nem acredito que ainda vou ter que passar por isso antes de me tornar um soldado de verdade.

-Tudo ao seu tempo Ícaro, você será um grande soldado. Seja paciente como sempre foi.

-Desculpe-me mestre Shugal, eu serei.

O sol já se escondia por detrás das colinas quando Ícaro retornava para sua casa. Era bem provável que falar novamente com seu tutor seria daqui pra frente mais difícil. A guarda mirim de Fe-ho iniciava os jovens com pequenas missões, que apesar de simples, eram demoradas e com o término dos ensinamentos, Shugal provavelmente iria encontrar um novo pupilo.

-Soldado de Fe-ho. Pensava Ícaro no caminho de casa. Era uma descida literalmente fácil, pois quase toda a natureza em volta da cidade havia sido modelada pelas máquinas. As colinas possuíam escadarias de concreto e as poucas árvores que ainda restavam eram protegidas pelo governo como bens militares. Diferente dos outros reinos, Fe-ho não possuía o dom da arte e da magia e por isso, viu-se obrigada a trabalhar em busca do conhecimento mecânico. Suas criações eram vistas pelos outros povos como aberrações destruidoras, mas muito do que foi construído na cidade ajudou Fe-ho a manter-se como uma das maiores potências militares do muno de Rirone, e isso não incomodava nem um pouco seu governo.

Passando pelas ruas de pedra e aço retorcido, Ícaro tentava não pensar na voz irritante de sua mãe e bolava mais uma história sem graça para fazer com que seu pai fosse pra cama logo. Nas vias interligadas da cidade, Ícaro passou novamente pelo mendigo que o cumprimentava todas as noites, pegou sua cota mensal de cereais no armazém do governo e olhou sob o muro da casa da pequena Lili, uma garota que despertava certo interesse nele.

-Oi Ícaro! –A voz que jamais havia se dirigido diretamente a ele, agora parecia muito interessada, mas após os três segundos de êxtase do jovem, veio o desespero de pensar que acabara de ser pego em flagrante espionando a casa da garota.

-Oh, ah, eu... Ícaro estava perdido em suas palavras.

-Não se preocupe, eu sei que você olha aqui todos os dias.

-Ah sim – um sorriso constrangido – eu só queria ter certeza que estava tudo ok com o jardim do seu pai, o dinheiro que recebo dele é de grande ajuda.

-Tudo bem, mas não foi pela bisbilhotada que eu vim falar com você.

-Ah não?

-Não. Eu vi que você carrega uma espada, e estou me perguntando se seria uma nova ferramenta de jardinagem.

Ícaro não havia percebido que durante todo o caminho, trouxe sua pequena espada na cintura, e por sorte não foi abordado por um guarda. Carregar armas fora da bainha era direito exclusivo dos militares e isso poderia arruinar o sonho dele.

-Foi o mestre Shugal quem me deu, para que eu possa realizar a cerimônia de iniciação militar.

-Quem diria o jovem jardineiro filho de um mineiro, entrando para o exército. Parabéns Ícaro, você finalmente conseguiu provar que meu pai estava errado.

-Ah é?

-Sim, ele sempre disse pra mim que você era muito franzino para ser um soldado e que mesmo eu sendo uma garota, me daria muito melhor no exercido do que você.

-E você concordava com ele?

-Não, na verdade, eu queria muito poder participar da cerimônia com alguém mais próximo.

-Então somos próximos? – Ícaro não conseguia disfarçar a empolgação.

-Próximos o suficiente para podermos ir juntos amanhã. Encontramos-nos ao nascer do sol, aqui na rua, combinado?

-Combinado!

Uma noite nunca demorara tanto a terminar quanto aquela.