Uma chance para o passado

(para D., com carinho)

Já passava da meia-noite quando Valquíria ouviu a notificação de mensagem em seu celular. Ela havia trabalhado arduamente na planilha de custos de sua consultoria a uma empresa de laticínios, e estava preenchendo as duas últimas linhas. Cerca de quinze minutos depois finalmente encerrou o trabalho, satisfeita com o resultado. A consultoria a essa empresa, se bem executada e trazendo os benefícios que ela projetara, certamente iria lhe abrir portas para novas oportunidades, e era exatamente isso que procurava desde que havia montado esse negócio, quase dois anos atrás.

Desligou o notebook, suspirando aliviada. Bom, agora era tomar uma ducha e ir pra cama, porque o dia seguinte prometia ser bastante atarefado. Teria que vender a ideia que acabara de elaborar para a gerência da empresa. Mas estava confiante que tudo iria dar certo. Pegou o celular no canto da escrivaninha, e quando a tela acendeu, viu a notificação de mensagem que havia escutado um pouco antes. Na foto, um rosto com traços conhecidos, se bem que não vistos há vários anos. O nome veio logo na mente, resgatado das lembranças do passado: Alex.

Ele tinha sido o seu primeiro namorado, ainda lá nos tempos do colégio Sagrado Coração. Alex era um menino extrovertido, inteligente, jogador do time de handebol da escola, bastante popular. Quando cravou nela aquele seu olhar cativante em uma noite de apresentações do colégio, não houve como não se apaixonar por ele. E conversa vai, conversa vem, bilhetinhos, toques de mão, beijinhos no rosto cheios de outras intenções; enfim, acabou virando namoro.

Valquíria ficou alguns instantes absorta em pensamentos, um meio sorriso nos lábios, enquanto as lembranças daquele tempo passavam como flashes diante de seu olhar perdido em um dos cantos do quarto. Os recreios, as festinhas, os jogos do campeonato de handebol da cidade, o passeio de fim de ano da escola. Tudo ao lado do namorado que ela, com o passar do tempo, amava cada vez mais. Porém, um certo dia, sem mais nem menos, ele chegou e terminou tudo. Sem querer dar maiores explicações, virou as costas e simplesmente passou a evita-la. Veio o fim do ano e durante todas as férias não houve nenhum contato entre eles. O novo ano começou e Alex não estudou mais no mesmo colégio.

Valquíria sofreu horrores. Lembrava-se de ter chorado descompassadamente por vários dias. Levou tempo para se recuperar. Ainda houve algumas vezes em que se viram na cidade, se encontraram uma vez em uma festa alguns anos depois, quando ela já estava namorando o homem com quem casara e permanecia casada até hoje. Mas nunca mais se falaram. Com que surpresa agora seu rosto aparecia na tela do seu celular. Quantos anos já fazia que não o via? Mais de quinze, certamente. Valquíria então voltou à razão: com qual propósito agora ele voltava a querer ter contato?

Visualizou a mensagem: “Oi, Val. Você pode falar?”

Voltou à foto. Parecia um pouco abatido, mas ainda trazia os mesmos traços do menino de outrora. Os cabelos estavam bem curtos, diferente da cabeleira que tinha na época do colégio. Ele permanecia online, mas naquela altura da noite ela não estava disposta a iniciar uma conversa, ainda mais com alguém que não via e não tinha contato há tanto tempo. Não respondeu. Desligou o celular e o deixou sobre a mesa. Pegou toalha e roupa, tomou a sua ducha, vestiu-se e foi se deitar. Antes passou no quarto dos meninos. Os dois dormiam como anjos. Puxou o lençol do mais novo, que sempre estava descoberto. Beijou o rosto dos filhos dizendo mentalmente “boa noite, minhas crianças”. Entrou então em seu quarto e deitou na cama. Abraçou o corpo quentinho do marido – que no meio do sono só se mexeu para dar espaço ao enlace do seu braço – e nem se lembrou do antigo amor colegial quando finalmente adormeceu.

No outro dia também se esqueceu completamente da mensagem. Saiu cedo levando os meninos para a escola, depois rumou direto para a empresa, onde uma equipe, incluindo o gerente geral, a aguardava. Apresentou sua proposta, e a discussão atravessou a manhã. Quando se deu conta, já passava da hora de buscar as crianças. Despediu-se dos funcionários com a certeza de que tinha feito o seu trabalho da melhor maneira possível, e recebeu um aperto de mão caloroso do gerente da empresa. Iriam estudar a proposta, mas – palavras dele mesmo – parecia uma ideia muito promissora.

De volta para casa, com os filhos já almoçando, verificou o celular e, ao acender a tela, deparou-se novamente com a foto do Alex. Nova mensagem: “Val, poderíamos nos falar? É importante.” Franziu a testa. O que poderia haver de importante entre eles, depois de tanto tempo? Se mesmo no passado não houve nada de importante, caso contrário ele não teria terminado o namoro daquela maneira tão inesperada e abrupta. E, no seu ponto de vista, ela nunca foi realmente importante, ainda mais porque, depois do fim do namoro, ele nunca mais a procurou para nada. Porque esse interesse agora?

Resolveu não responder de novo, assim ele perceberia que não haveria conversa. Mas até o fim daquela tarde, chegaram outras três mensagens suas. À noite, quando chegou a quarta, ela não aguentou, e respondeu: “Prezado Alex. Bom ter notícias suas, mas estou casada, tenho dois filhos e não vejo razão nenhuma pra falar com você. Fique bem. Adeus”. Talvez assim, com todas essas letras, ele finalmente a deixasse em paz. No entanto, alguns segundos depois caiu nova mensagem. E essa foi um pouco mais longa:

“Valquíria, sei que você tem todas as razões do mundo para não querer falar comigo. O que fiz com você foi muito rude. Eu era imaturo, fui um grande imbecil, e infelizmente não tenho como reparar meus erros do passado. Mas eu queria te dizer, de preferência pessoalmente, que me arrependo todos os instantes da minha vida de não ter ficado com você, e de não ter me dado a oportunidade de ser feliz junto a uma pessoa tão maravilhosa. Eu tenho certeza absoluta que você foi e sempre será a mulher da minha vida. Se tiver como me deixar dar somente um último abraço, eu ficarei eternamente grato. Venha me encontrar nesse endereço, vou te esperar ansiosamente.”

E depois mandou o localizador. Era rua de um bairro relativamente distante, mas que ela conhecia. Achou aquilo tudo muito estranho. Estava dando a entender que era uma recaída, e ninguém tem recaída à toa. Provavelmente ele estava saindo de algum relacionamento e queria reviver coisas do passado. Típico de pessoas mal resolvidas na vida. Não ia dar corda praquela baboseira toda. Iria simplesmente ignorar. Deletou o localizador, a mensagem, e todas as outras anteriores.

No meio da manhã do outro dia, Valquíria recebeu um telefonema da empresa de laticínios. Haviam aceitado sua proposta, e gostariam de agendar uma reunião para aquela tarde já com a intenção de dar início ao projeto. Exultante, ligou diretamente para Rodolfo, seu marido, que vibrou com o seu sucesso. Tudo estava sendo muito maravilhoso na sua vida: o marido perfeito, os filhos incríveis, agora a vida profissional que parecia estar finalmente decolando. Depois de anos afastada da profissão, envolvida com os cuidados com as crianças, não achava que ainda teria chances de se encaixar novamente no mercado. Mas, pelo menos por ora, tudo levava a crer que a realidade estava superando todas as suas melhores expectativas.

A tarde na empresa foi muito proveitosa. Colocariam funcionários à sua inteira disposição para a execução do plano sugerido na consultoria. Acataram todas as suas sugestões, sem nenhuma objeção. Ela não poderia estar mais orgulhosa de si mesmo. Quando chegou a noite em casa foi recepcionada com o abraço mais caloroso e o beijo mais doce que já havia recebido de Rodolfo. Deixaram as crianças na avó e saíram para um jantar delicioso. E para terminar aquele dia inesquecível, um amor extraordinário seguido de hidromassagem maravilhosamente relaxante em uma suíte encantadora. Deus – pensou ela quando se deitou em sua cama ao lado de seu homem – que vida abençoada o Senhor me deu!

Na tarde do outro dia, após deixar os filhos na escola, constatou que havia outra mensagem do Alex em seu celular. Aquilo já estava ficando irritante. “Val, eu preciso te ver”, dizia a mensagem. Teve vontade de ser mal-educada, mas não iria responder. Guardou o celular na bolsa, arrancou com o carro e foi para a empresa. Trabalhou o dia todo sem pensar em mais nada. À noite, como não podia deixar de ser, mais mensagens. Na última, enfim, ele disse: “Essa provavelmente é minha última chance de te ver. Venha antes que seja tarde demais”. E enviou novamente o localizador. Ela então disparou: “De uma vez por todas, Alex: esqueça que eu existo!”.

Foi para a cama mas algo a incomodou a noite toda. O que ele quis dizer com tarde demais? Será que aquele maluco ia fazer alguma besteira? Podia estar com depressão, talvez. Daí a sua resposta poderia ter causado um grande estrago. Mas afinal, o que aquele sujeito queria com ela? Tanto tempo passado, tanta coisa que havia acontecido sem que se vissem, agora de uma hora pra outra ele aparecia com essa maluquice de querer vê-la? Qual seria o seu propósito, meu Deus?

Amanheceu, e ao verificar no celular, não havia mensagem dele. Mas naquele instante já não sabia se ficava aliviada ou se aquilo aumentava ainda mais sua preocupação. Durante todo o dia não chegou nada. E ao longo da noite igualmente, nenhuma mensagem. Rodolfo notou sua apreensão, mas ela jogou a culpa nas tarefas da consultoria na empresa. Não queria que qualquer pretexto pudesse pôr em risco a fase tão boa da sua vida conjugal. Mas como no dia seguinte não houve nenhuma tentativa de contato dele, a apreensão ficou insustentável, e no fim da tarde ela se viu cruzando a cidade em direção ao endereço do localizador. O sol acabava de se pôr quando ela estacionou em frente à casa indicada. Desceu do carro e ficou diante do portão. A porta e as janelas estavam fechadas, e as cortinas cerradas. Parecia não ter ninguém. Bom, não tinha vindo até ali à toa. Bateu palmas. Esperou. Nada. Bateu novamente. Nenhum sinal. É, pelo jeito, tinha feito papel de otária. Voltou-se para o carro, mas antes de abrir a porta, alguém chamou a sua atenção. Da casa vizinha uma senhora apontou a cabeça para fora do portão. “Você está procurando quem?” “O Alex. Acho que ele mora nessa casa, não é?” “Sim. Morava.” “Porque, se mudou?”. A mulher então a olhou com um tom de tristeza. “Faleceu ontem. Que Deus o tenha”.

Um frio percorreu-lhe a espinha. Surpresa e um pouco confusa, se aproximou da mulher para perguntar: “Ontem? Mas eu ainda falei com ele antes de ontem? Como foi isso?”

A mulher acabou abrindo o portão e saiu para a calçada. “Ele estava bastante doente. Tinha enfermeiro cuidando dele noite e dia. Mas o Alex não resistiu, coitado. Bom, estava sofrendo muito. Agora, com as bênçãos de Deus, descansou”. Valquíria não queria acreditar no que estava ouvindo. “Mas o que ele tinha?” “Cancer”, foi a resposta.

Um sentimento de completa desolação se apoderou do seu corpo. Agora entendia a aflição dele nas mensagens. Estava vendo o fim chegando cada vez mais perto, e ela não foi sensível o suficiente para supor qual poderia ser o real motivo do seu desespero. Meu Deus, porque não passou pela sua cabeça que ele estivesse em uma situação como aquela?

Entrou no carro totalmente arrasada. Guiou quase cegamente pelas ruas até chegar em casa. Foi direto para o banho onde, debaixo do chuveiro, chorou demorada e copiosamente. Sentia-se tão culpada por não tê-lo procurado, por não ter oferecido ajuda naquela hora crucial e fatídica. Diante de sua súplica, simplesmente o ignorou, deixando-o morrer às minguas. Como pode ter sido tão cruel?...

Na escuridão do quarto, ao lado do marido, o sono não veio, atormentada pelas lembranças de sua convivência com Alex no passado. Como imaginar que um rapaz jovial, forte, atlético, tão cheio de vida, iria perder a vida precocemente de uma forma tão trágica?

E a madrugada foi se estendendo enquanto mantinha seus olhos úmidos estarrecidos pelo terrível destino de seu primeiro amor. Até que por fim, tomada pela exaustão, acabou adormecendo.

Com os primeiros raios de sol invadindo o aposento, ela sentiu um afago no ombro, e foi despertada por uma voz doce e conhecida, mas que já não ouvia há muito tempo: “Acorda, minha princesa. Hora de ir pra escola”. Abriu os olhos espantada, e perplexa constatou o que parecia ser um completo desvario de sua mente: estava de volta ao seu quarto, na casa de seus pais, como nos seus tempos de menina! Ali, ao lado da sua cama, estava sua mãe a acordá-la, exatamente como fez ao longo de toda a vida escolar da filha. E para seu espanto, a aparência da mãe agora era a mesma daqueles tempos! Como podia aquilo?

Levou as pernas para fora do colchão, colocou os pés no chão de piso laminado, e sentou-se na cama. Seus olhos muito abertos percorreram o quarto, o seu quarto de outrora, exatamente o mesmo. Depois de alguns minutos observando, levantou-se e saiu pela porta. A porta à direita do corredor dava para o banheiro. Ouviu barulho na cozinha, que ficava além do corredor. Entrando no banheiro, deparou-se com seu reflexo no espelho acima da pia. E no espelho era ela, novamente jovem! Sua feição de adolescente naquele espelho! Não sabe quanto tempo ficou ali, se mirando, até que a mãe apareceu atrás dela: “O que aconteceu? Ainda nem lavou o rosto, assim vai se atrasar!” Voltou-se então, abraçou-a fortemente e desatou a chorar. “O que foi, Valquíria? O que está acontecendo?” Mas não teve resposta. Ela não tinha como dizer nada naquele momento.

E ao longo do dia passou por uma sucessão de fatos que fizeram parte do seu cotidiano daquela época, mas que para ela era um completo absurdo: o café na mesa, o uniforme do colégio, o dia de aula, a velha turma da escola, o encontro com o Alex no intervalo, a caminhada com ele de volta pra casa. Os mais próximos notaram que ela estava meio estranha, mas a trataram como em qualquer dia normal. Ela não conseguiu dizer nada do que sentia para ninguém, nem para a mãe, nem para qualquer amiga da escola, muito menos para o Alex. Só pode abraça-lo com mais força, e beijá-lo com mais ternura do que de costume. Não entendia como aquilo tudo podia ser real, mas era. Estava de volta à sua adolescência, estava novamente com o seu primeiro namorado. Um milagre estava lhe dando uma chance de reconstruir sua vida. No escuro do quarto, na primeira noite de volta ao seu passado, ela concluiu que o único intuito possível daquilo tudo era salvar a vida do seu primeiro amor. E foi por isso que, dias depois, quando ele chegou dizendo que queria terminar o namoro, ela teve um rompante de loucura, agarrou-o aos prantos dizendo que não poderia viver sem ele, que jamais aceitaria um desfecho assim, sem nenhum sentido, que a sua vida só faria sentido ao seu lado, e que se ele realmente terminasse o namoro, ela iria se matar. Alex, então, recuou. Chorou também copiosamente e disse que não a abandonaria nunca mais. E naquele momento não teve dúvidas de que a menina na sua frente haveria de ser para sempre a mulher da sua vida.

Os dias se passaram e o namoro realmente ficou cada vez mais firme. Valquíria acabou se acostumando com sua nova velha vida, e em como ela tinha sempre em mente os fatos que aconteciam. Felizmente ela não guardava memória de nenhum fato mais trágico daquela época, somente lembranças de episódios corriqueiros que, ao acontecerem, ela imediatamente se lembrava e pensava consigo mesma: “isso aconteceu exatamente dessa maneira”. Mas uma passagem ela notou ser diferente. Em uma festa, junto com o Alex, ela ficou frente a frente com Rodolfo. E então lembrou-se que, naquela mesma festa, na passagem anterior, ela estava com Rodolfo, e tinha se deparado com o Alex. Na verdade havia sido a última vez em que tinha ficado frente a frente com o Alex em sua, digamos, vida anterior. Agora via os personagens se inverterem. Porém, o que mais lhe chamou a atenção não foi realmente isso: foi o olhar profundo com que Rodolfo a encarou naquele instante. Valquíria ficou com a sensação de que ele também guardava algo deles dois em sua lembrança, porque aquele olhar tão penetrante era próprio de uma cumplicidade que não se adquire somente com um primeiro encontro. Eles sequer trocaram um cumprimento, mas a lembrança do olhar do seu antigo marido ficou cravado na sua mente por todos os anos que se sucederam.

Valquíria e Alex se casaram tempos depois, e tiveram dois filhos, dois meninos lindos que, mesmo com a aparência ligeiramente diferente, tinham o mesmo comportamento que os seus filhos da sua realidade anterior. Eram as mesmas pessoas, diziam quase as mesmas coisas que os seus filhos de outrora. Por mais fantástico que podia lhe parecer, a sua vida era praticamente a mesma do passado, só não vivia na mesma casa, não tinha as mesmas amizades, o seu dia a dia era diferente, o seu marido era outro. Contudo, era igualmente feliz.

Estudou novamente, formou-se no mesmo curso, abriu seu negócio de consultoria, vivia dias tranquilos e sem grandes preocupações. Exigia que o Alex fizesse exames periodicamente, com intervalos menores que os mínimos recomendados pela medicina, de maneira a detectar qualquer anormalidade que pudesse evoluir para a doença que, da outra vez, havia lhe tirado a vida. E, felizmente, jamais houve sinal de qualquer anomalia. Alex era um homem maravilhoso, um pai amável, um marido exemplar. Valquíria tinha certeza de que, ao voltar para o passado, a sua missão era salvar aquele homem, e ela tinha certeza de que a estava cumprindo da melhor maneira.

Um contato de uma empresa de laticínios, buscando seus serviços de consultoria, a fez lembrar que estava novamente no ano em que sua vida havia voltado ao passado. E então uma curiosidade começou a atormentá-la. Por onde andaria Rodolfo? E houve um fim de tarde em que ela enfim procurou o seu antigo endereço. E qual foi sua surpresa quando se deparou com a fachada da sua antiga casa, onde vivera com sua antiga família e seu antigo marido, exatamente como fora anteriormente! A noite estava chegando quando ela desceu do carro e parou diante da grade do portão, completamente deslumbrada com o que via. Até a cor da casa era a mesma! Estava absorta em suas lembranças quando ouviu uma porta se abrir. E logo em seguida, pela calçada ao lado da casa, apareceu um homem empurrando alguém sentado em uma cadeira de rodas. E os olhos dela imediatamente se encheram de lágrimas quando reconheceu a pessoa sentada na cadeira de rodas, com a aparência singular de quem se encontra em situação de saúde extremamente precária: Rodolfo.

A cabeça dele pendia para o lado, em estado de total letargia. Mas ao ouvir seu nome proferido por aquela mulher desconhecida diante do portão da sua casa, voltou-se para ela e, no mesmo instante, seus olhos brilharam. Não entendeu como aquilo podia acontecer, mas reconheceu prontamente a moça que vira vários anos atrás em uma festa. E também não entendeu porque ela começou a chorar desesperadamente. Pediu para o enfermeiro abrir o portão e trazê-la para dentro. E ao chegar próxima da cadeira de rodas, ela simplesmente desabou sobre seu colo, suplicando perdão em meio às lágrimas abundantes.

Entraram na casa – ela mal pode perceber que o interior era idêntico à sua antiga casa – e o enfermeiro a conduziu até o sofá, procurando acalmá-la. Ofereceu-lhe água. Valquíria tomou um pequeno gole enquanto repetia seguidamente “eu não podia ter feito isso com você, não podia”, sem que Rodolfo pudesse entender o que aquilo significava. Mas percebia que aquela mulher não lhe era completamente estranha, apesar de tê-la visto uma única vez na vida. Era talvez um completo absurdo, mas sentia que entre eles havia um laço inexplicavelmente forte.

Rodolfo estava sem condições de manter um diálogo. A doença em estágio avançado havia minado completamente as suas forças. Valquíria ajudou o enfermeiro a deitá-lo em sua cama – meu Deus, aquela era a cama deles! – e deu-lhe um singelo beijo na testa antes de desejar-lhe boa noite. Depois, de volta à sala, sentou-se novamente no sofá e pediu ao enfermeiro: “Será que eu poderia ficar mais um pouco aqui perto dele?” Ele assentiu: “Claro, fique o quanto quiser. Ele está precisando de alguma companhia”.

Depois de vê-lo se retirar, ela recostou o corpo no móvel, e pregou no teto os olhos vermelhos e inchados. Então pode entender o que estava realmente acontecendo: sua volta ao passado para salvar Alex teve um preço. E agora, o que poderia fazer por Rodolfo, seu marido tão amável de outrora, aquela pessoa com que convivera e que a tinha feito tão feliz?

Fechou os olhos, e desejou ardentemente voltar de novo ao passado. Poderia assim procurar salvar os dois. Ambos eram pessoas maravilhosas, que não mereciam perder a vida daquela maneira tão precoce. Se tivesse a chance, faria tudo a seu alcance para evitar que aquele fosse o fim tanto para um quanto para o outro.

Envolvida nesses pensamentos fantásticos, acabou adormecendo. E qual foi a surpresa quando acordou novamente: estava diante do notebook aberto, a planilha de custos de sua consultoria quase finalizada. Olhou ao seu redor e aquele era o quarto de sua antiga casa. Retornava à sua vida normal! Meu Deus, será que tudo não havia passado de um sonho? Mas como tinha sido tão real viver novamente a sua vida, ao longo de tantos anos! Foi até seu quarto, e viu o marido que dormia tranquilamente. No outro aposento, os meninos, dormindo também feito anjos. Voltou ao seu quarto de trabalho, sentou-se na poltrona, levou as mãos ao rosto e suspirou. Mesmo nada fazendo sentido, naquele instante sentiu uma grande paz interior, e fechou os olhos agradecendo por ter de volta a sua vida como sempre a conheceu. Então ouviu a notificação de mensagem em seu celular. Esticou o braço para pegar o aparelho no lado da escrivaninha. E não foi capaz de definir o que sentiu quando viu o rosto do Alex na tela, com sua mensagem que dizia: “Oi, Val. Você pode falar?”