O Caroneiro da vida alheia

O Caroneiro da vida alheia

Ali estava ele, de novo, na espreita de alguma vítima indefesa que pudesse ser atacada. Tanto se exercitou nessa proeza que suas artimanhas chegaram ao requinte da perfeição. Ele não se impacientava. Quantas vezes o sol ao amanhecer já o avistara naquela praça, sentado, em posição de espera, sondando e escolhendo por eliminação qual seria a sua próxima vítima.

A tarde já ia dobrando sobre si mesma e o sol sumindo. Porém, ali permanecia ele. Sem pressa, nem demonstração de cansaço ou desejo de abandonar o posto. Para ele não havia derrota. O segredo do sucesso se baseava nas três “ências” formadoras do seu caráter: paciência, persistência e resistência. O seu destino foi marcado pela escolha que fizera de se aprimorar na arte de revelar informações confidenciais inéditas para confundir e envergonhar suas presas e insuflar a opinião pública, tão marcada pelos preconceitos.

Sentado de forma estratégica, na extremidade de um banco da praça, de costas para o movimento de transeuntes e de ouvidos fechados ao vozerio dos estudantes. Olhos atentos, porém discretos, perscrutavam o desespero estampado no rosto de algum aluno daquele Colégio de classe média alta que acabara de abrir os seus portões.

Ao perceber a aproximação de duas amigas que se acomodaram na extensão do banco, desdobrou um velho jornal tirado de debaixo das suas nádegas, cruzou as pernas e deu início a uma leitura atenta. Seus ouvidos, porém antenados para captar a mensagem do diálogo entre as suas duas presas fatais que acabavam de se alojar no que sobrara daquele assento frio e duro, pouco confortável.

. – Vem cá, Regininha, o que está acontecendo? Você passou toda a aula inquieta, amiga. Seus olhos grudados no quadro, mas seu espírito estava longe. Dá pra qualquer um notar a olho nu a sua angústia

– Não sei como lhe contar, porque não consigo prever as conseqüências. De fato fui surpreendida por uma informação que me tirou o tapete de debaixo dos pés e me desestruturou por inteira.

Vem bomba aí, pensa o nosso amigo fofoqueiro curioso enquanto se posicionava procurando um melhor ângulo de escuta, prevendo uma manchete sensacional que explodiria em todos os jornais da manhã seguinte, depois dessa confissão.

- Fale, amiga, se isso lhe faz bem e vai ajudá-la a tirar esse peso do seu coração.

- Preciso respirar fundo, colocar meus pensamentos em dia para planejar alguma saída melhor para todos nós lá de casa.

- Você acha que sozinha conseguirá se sair, sem ressentimentos, do que lhe aflige?

- No momento não há outra alternativa, Emília. Fico lhe devendo essa, por enquanto. É uma situação em que toda a nossa família foi colocada sob pressão e, qualquer coisa que eu lhe fale é como se eu tivesse traindo todos os meus. Você entende?

Não é possível – reflete para si mesmo o nosso amigo fofoqueiro – não posso perder esta oportunidade de publicar o maior furo de reportagem! Esta menina tem que falar! A notícia é das boas! Vai dar um ibope daqueles! Isso não pode ficar assim! A minha última notícia foi uma bomba fenomenal! Até hoje, apesar de todas as investigações policiais, ninguém conseguiu descobrir quem soltou no ar aquela sensacional informação! Manter no anonimato é a minha arma e a minha garantia para continuar nesta profissão de desvelador dos grandes segredos alheios, de perito na escuta grampeada ao pé do ouvido. Os pais da garota pagaram o maior mico! Tiveram até que deixar o país. Adoro, amo este trabalho de mentor das grandes manchetes anônimas que sacodem, em primeiro lugar a família da vítima! É muita adrenalina! Uma sensação de prazer incontrolável! Esta menina não pode me tirar esta satisfação! Se isto acontecer, terei que amargar minha derrota!

- Está bem, Regina, eu entendo. Você sabe que pode contar comigo para tudo e a qualquer hora. Só quero ajudá-la. Se você quiser podemos permanecer um tempo em silêncio. Assim, você arruma as coisas na sua cabeça enquanto eu fico aqui ao seu lado, sentadinha e em silêncio, eu lhe prometo. Vou ali buscar um saquinho de pipoca na carrocinha do Fred. Você aceita?

- Não. Obrigada!

Como um pescador que confia no beliscão da isca, mesmo que demore uma eternidade, o fofoqueiro continuava inerte, muito atento na sua leitura e no rumo que as coisas estavam tomando. Nada como um minuto depois do outro.

Ao voltar, a amiga percebe que Regininha soluçava baixinho, numa intensa agonia. Tentou consolá-la. Abraçou-a com força e deixou que a sua presença silenciosa e atenta a acalmasse. Não durou muito tempo e ela começou a narrar sobre o seu sofrimento:

- Nunca pensei que a minha família pudesse passar por tal experiência! O meu pai está sofrendo muito e me dói vê-lo assim. Ele ama esse povo e faz da sua condição de prefeito dessa cidade um serviço que, de fato, seja uma resposta honesta aos seus eleitores que o elegeram por uma maioria esmagadora de votos. Ele tem consciência da sua responsabilidade como homem público. Repete todos os dias para nós que para ele é uma questão de honra levar até o fim o seu mandato de prefeito. Vai ser o fim da sua carreira política. Sabe, Emília, ele lutou muito para conquistar esta chance de trabalhar, de mostrar que é possível manter o respeito, a dignidade, mesmo tendo adquirido o poder de governar e administrar um povo. De forma nenhuma ele pretende lançar mão da sua autoridade de prefeito para resolver questões pessoais e, ou familiares.

Nestas alturas, o nosso amigo fofoqueiro já não se continha de tanta curiosidade e se coçava todo inteiro, preparando-se para uma noite de muito trabalho e um amanhecer do novo dia cheio de manchetes nos jornais com a foto do prefeito retirando sua máscara de bonzinho e de justiceiro. Este prazer escorria pelos cantos da sua boca qual veneno acumulado nas mandíbulas, pronto para ser instilado num ataque mortal.

Depois de alguns minutos de silêncio, Regina, já mais serena e confiante soltou um profundo suspiro e desabafou:

- Você não vai acreditar, mas, a minha mãe descobriu, numa das suas visitas sociais como primeira dama, um bom número de adolescentes e até crianças prostituídas por alguns homens da alta que as mantém em regime de cárcere privado para servirem seus filhos e a eles próprios. Meu pai foi buscar apoio junto aos seus correligionários para acabar com esta injustiça e vergonha social, porém descobriu que muitos deles também estão envolvidos nesta corrupção de menores. Alguns deles lhe disseram que seria o fim da sua condição de prefeito, caso ele tomasse qualquer decisão. Estes homens são muito poderosos e, até hoje, todos os prefeitos anteriores fecharam os olhos para esta questão. O melhor que ele podia fazer é seguir como se não fosse do seu conhecimento, disseram. Isso não está deixando nem o meu pai, minha mãe e nós dormirmos sossegados. A grande pergunta lá em casa é: O pai continuar prefeito ou arriscar tudo em defesa dessas pobres vítimas e de suas famílias? O meu pai até já está decidido a deixar a Prefeitura, mas não se calar e correr o risco de até ser morto, você entende? Ninguém pode aceitar uma situação dessa!

Pela primeira vez, no outro dia, nas grandes manchetes dos jornais, este nosso amigo fofoqueiro, ao invés de desacreditar publicamente uma família, salvou toda uma comunidade de um vício social imoral e inaceitável e levou para trás das grades criminosos, até então intocáveis pela justiça, lançando a seguinte manchete:

ACORDA E REAJE, PREFEITO! NOSSA CIDADE ESTÁ INFESTADA DE PEDÓFILOS DO COLARINHO BRANCO E DE POLÍTICOS! O POVO EXIGE UMA CPI DA PEDOFILIA E DO RESPEITO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE!