O Fundo Ilusório dos Espelhos sem Fundo - Conto Dois - Intrusão Patagônica

Contextualidade com o conto de Jorge Luis Borges, “Tlön,Uqbar, Orbis Tertius”. Publicado em “Ficções”, 1944.

amilton

“Fazia dois anos que eu descobrira num volume de certa enciclopédia pirática, uma sumária descrição de um falso país;

agora o acaso me mostrava algo de mais precioso e mais árduo”. Jorge Luis Borges, Tlön, Uqbar, Orbis Tertius. (frag.).

Uma década se passa desde o Alegrete. O episódio não me sai da mente e povoa as noites, bem ou mal dormidas. Incidentes isolados contribuem em manter acesa a memória. Signos e signos de signos por toda parte. Vida afora propenso a ver fantasmas ou suas pegadas.

Algumas situações inextricáveis perturbam-me ao longo desses anos. Há pouco, trafego solitário na imensidão patagônica e de repente vejo-me impelido a trocar um pneu. Estou no topo da região. Em jornadas desse tipo através do nada, carrego duas rodas sobressalentes, mais duas câmaras, um kit de reparos e o ferramental necessário para enfrentar qualquer situação; portanto, acabo sorrindo ante o fato. Seria frustrante se nada acontecesse após tanta precaução. Vapt vupt, guardo a tralha e lavo as mãos com água e sabão trazidos a propósito; depois, acomodado numa pedra anatômica, desfruto do sanduíche de lombo e dum copo de Etchart Privado. O grande vazio descortinado é magnífico, humilhante.

Perdido em complexos pensamentos existenciais, noto algo esférico cintilar ao alcance da mão. Tem no máximo, centímetro e meio de diâmetro e reflete em meio àquela areia, um dourado esmaecido. ‘Que diabos faz essa coisa por aqui? Por que justo neste ponto do nada e não quilômetros antes, ou após?’. Não esboço a menor reação. A pedra onde sentara fora posicionada como se para facilitar o achado. A posição do sol, devido à hora, permite-me captar o tênue brilho. Qualquer outra combinação de fatores não possibilitaria o encontro. Devido à improbabilidade do fato, poderia levantar e seguir caminho como se nada tivesse visto. Testemunha alguma perceberia a dissimulação. Mesmo para um observador a espreita, munido de poderosas lentes e oculto por detrás de rochas distantes, tentando detectar alguma reação diante daquela armadilha do acaso, seria improvável ou mesmo impossível através de minhas atitudes, perceber o acontecido. Era apanhar ou deixar. Resolvi levar comigo; mas a coisa escorrega-me da mão e se queda imóvel. Tento de novo. Desta vez uso os cinco dedos e cerco-a pelos lados de modo a não escapulir; mesmo assim malogro. Estaria ancorada por alguma haste? Resoluto, busco a pá no porta-malas, assim consigo pegá-la por baixo e erguê-la com grande esforço; passa dos oito quilos e emana algum calor. Abro a porta e a deponho aos pés do assento ao lado do motorista; olho desconfiado ao redor, recolho o resto do equipamento e sigo viagem assustado.

À medida que desço rumo à planície deserta, o tempo fecha prenunciando terrível tempestade e preciso acender os faróis. Nos dez quilômetros rodados percebo gradual perda na tração do veículo. O indicador do painel acusa aquecimento excessivo; resolvo verificar. Abro o capot e o radiador fumega. Enquanto arrefece observo a esfera; reparo ter triplicado de volume e causado uma mossa profunda no assoalho através do tapete. Aproximo a mão, mas recuo ao senti-la muito quente apesar da distância mantida; agora, irradia intenso brilho dourado. Suspeito ser o aumento de volume, massa e temperatura, devido ao afastamento de onde o artefato estivera em repouso, sabe lá desde quando. Com sobeja razão, o leitor me julgará insano; assim também o veria, caso nossa posição fosse inversa. No entanto sou normalíssimo, acredite!

Decido voltar ao lugar da descoberta. Dirijo e reflito. ‘Será um hrön? Um hrönir? Quem sabe, um Ur? Verdadeira esta última hipótese, será admitir a loucura. Talvez um meteorito!’ O carro no retorno, apesar da subida, recupera o desempenho de forma progressiva conforme se aproxima do lugar. Minha teoria revela fundamento. O tempo desanuvia e o sol reaparece. Ao chegar, removo o objeto com ajuda do tapete; só então percebo que resfriou, readquiriu o volume e o peso inicial ainda absurdo. Ao colocá-lo no solo, rola por dois metros em terreno impróprio e aloja-se no exato lugar onde o encontrei. Ali permanece. O carpete está tisnado no ponto de contato e o assoalho apresenta profunda depressão pelo efeito de uma força elevadíssima concentrada em um mesmo ponto. Por pouco não atravessa o aço.

Retomo a estrada e sequer olho para trás. A sensação de estar sendo vigiado permanece. O observador distante deve estar caçoando da cobaia ridícula, fruto da civilização já sentenciada a ser engolida por algo muito mais complexo e surrealista do que o vivido pelo homem até então. Segundo Jorge, “Os metafísicos de Tlön não buscam a verdade nem sequer a verossimilhança: buscam o assombro”; “Tlön será um labirinto, mas um labirinto urdido por homens, um labirinto destinado a ser decifrado por homens”; e mais, “Encantada por seu rigor, a humanidade esquece e torna a esquecer que é um rigor de enxadristas, não de anjos”. E conclui convicto: “O mundo será Tlön!”.

Anoitece quando chego à cidadezinha de destino. Alojo-me no hotel de costume e solicito um interurbano. Enquanto aguardo, desço ao bar para bebericar um Schnapps e pôr conversa fora com outros hóspedes. O assunto gira em torno de aerólitos, de certa maneira, bastante comuns na região. Há quem os colete para vender a colecionadores e com isso fazem um bom dinheiro, afirma um dos caixeiros-viajantes. Outro Schnapps! Pergunto-lhe se já viu algum; indago pela forma, peso, tamanho e características físico-químicas; por quem os compra e sua cotação no mercado. Mais um Schnapps! Dou-me conta de meu estranho e súbito interesse por meteorólitos, bólides e assemelhados. O papo corre solto frente ao espelho atento ao universo visível do bar. Levanto a mão para pedir algo ao barman; mas justo no momento completam a ligação e corro à cabine. ‘¿…Jorge? Ocurrió nuevamente…’.

Pelotas, julho de 2007