O Elixir

O ELIXIR

Ilha da Caldeira. Início do Inverno

O jovem acorda atrasado - a conversa estendeu-se além do necessário no bar. A geladeira estaria vazia não fosse uma garrafa d’água e um pacote de biscoitos velhos. Uma rápida passada pelo banheiro para pôr os cabelos no lugar, pega os biscoitos e desce correndo para pegar o bonde das 6. Em uma hora e meia está dentro da fábrica, pegando o cartão-ponto onde se lê “Llayn Ealiff”.

— Llayn!!! Atrasado de novo!!!

O coordenador da sua unidade, Sr. Joffer, estava indo em direção ao porta-cartões. O rapaz teve sorte em chegar antes dele. Sobre o relógio, uma placa de metal diz: “Indústrias Mërkens. A nº 1 no ramo farmacêutico”.

—Puxa, senhor. Uns moleques me abordaram aqui perto, sorte que consegui escapar deles, mas tive de vir pelo caminho mais longo...

O cavanhaque grisalho dá um ar ainda mais antipático à cara esquálida. Seu nariz curvo como o de um corvo.

— Certo - diz com sua voz aguda e monótona - agora vai logo pro seu posto porque tem quase quinhentos frascos pra você pôr rótulo!

O cubículo ao seu lado é ocupado pelo amigo Hönk.

— Homem... tá doido!!! Se o Urubu pega teu cartão ele faz você engoli-lo!

Llayn começa a colar os rótulos, do modo mais ágil possível, para correr atrás do relógio. Até o final da manhã, antes do horário do almoço, as 8 caixas de frascos já estão vazias em seu cubículo. A essa altura já estava sentindo as pernas moles de tanta fome. Toca o sinal para o intervalo às treze horas. Hönk ainda não terminou a sua sétima caixa.

Dois dias antes, aquele setor recebeu uma novata. No caminho para o refeitório, passam por seu cubículo. Llayn não a percebe. Em meio ao grande grupo, a dupla encontra Lawliet. Estes três foram contratados na mesma turma, e desde essa data tem sido bons amigos. No refeitório costumam sentar sempre no mesmo lugar.

Depois de terem servido seus pratos com um almoço que não chega a ser uma delícia, Hönk, fala-lhes em tom de segredo:

— Viram a garota nova que está trabalhando no setor?

— Não sei. Como ela é? – pergunta Lawliet.

— Eu vi que é um tanto magricela. – diz Llayn em tom jocoso.

— Ela é humana! – rebate Hönk, falando ainda mais baixo, aproximando o queixo à mesa.

Llayn e Lawliet não puderam disfarçar o espanto. Hönk continua:

— Acho que o último humano que trabalhou aqui deve ter sido há uns dez anos!

— Aposto que ela não deve estar no trabalho pesado. – diz Llayn, de boca cheia novamente.

— Humm... aí tem coisa! – diz Lawliet, arrastando as palavras.

Um dos colegas que estava ouvindo a conversa, sentado do outro lado da mesa, chama a atenção deles, cochichando:

— Ouvi dizer que ela é mestiça.

Ninguém disse mais nada.

Os quarenta minutos de almoço terminam. Um pequeno grupo de funcionários da cozinha sai da grande porta basculante, cada um carregando uma bandeja. Em instantes, chega à mesa deles uma das cozinheiras, uma mulher de uns quarenta anos, bastante forte. Ela coloca sobre a mesa, no meio dos rapazes, quatro frascos. O rótulo amarelo diz: "Elixir Vigor e Saúde"

— P’ra que isso? – pergunta Lawliet à recém chegada, em pé ao lado da mesa, ao que, ela responde:

—Nem vou te dizer o que é pra fazer com isso... Olhem lá. O diretor já vai falar.

Próximo à parede norte do refeitório, o diretor da fábrica, Sr. Merken prepara-se como quem vai fazer um pronunciamento.

— Lá vem o Chefe... – diz Llayn.

Lawliet resmunga um palavrão.

— Senhores e Senhoras, - o homem gordo e bem vestido começa a falar - funcionários das Indústrias Merkens. Esse é um dia memorável! Além de oferecermos trabalho digno a vocês, moradores da comunidade da Ilha da Caldeira, nós, da Merkens, com muito prazer e orgulho que estamos dando a todos os nossos empregados a oportunidade de serem os primeiros a provar os benefícios milagrosos de nosso novo produto: o Elixir Vigor e Saúde.

O homem pega um frasco de uma bandeja sobre a mesinha ao lado do púlpito

— Eu proponho um brinde ao Vigor e Saúde! Em seguida, abre a tampa e em um só gole, traga todo o líquido. O gesto é imitado por todo o pessoal.

Hönk olha pra os dois colegas, esperando alguma coisa. Sem hesitar, Lawliet bebe. Llayn faz o mesmo movimento. Hönk dá um sorriso amarelo e os acompanha:

— O gosto desse até não é tão amargo. — segue-se um breve silêncio — Estão sentindo alguma coisa?

— Não.

— Nada.

O Diretor agradece mais uma vez. Segundo ele, os efeitos, ditos milagrosos, são maior disposição para as atividades do dia-a-dia, combate ao mau funcionamento intestinal e ao cansaço.

De volta aos cubículos, mais uma leva de 8 caixas de frascos os esperava. Hönk comenta com o parceiro:

— Que ótimo. Agora tenho dez caixas pra terminar!

Quando senta para recomeçar sua atividade, sem que ninguém perceba, Llayn derrama por baixo da mesa o conteúdo de seu Elixir Vigor e Saúde.

...

O bonde verde oliva está lotado. O trecho é o mais assustador dessa linha. Nunca um só passageiro disse alguma coisa durante os intermináveis vinte minutos sobre aquele elevado. Do outro lado, já em Fæling, a conversa recomeça algo animada.

Na primeira parada, dois terços dos passageiros descem. Entre eles, a garota novata da fábrica foi a última a pôr o pé na rua. Hönk e Lawliet estão sentados nos últimos bancos do bonde. Llayn está em pé, diante deles. Olhar para trás foi um ato involuntário.

Já é bastante escuro. O bonde pára entre dois postes de iluminação, em uma rua comprida, de prédios antigos. O bonde se afasta, rumo ao leste. Os trabalhadores caminham em várias direções, menos a garota. Ela está imóvel, olhando para o conjunto de edifícios do outro lado da rua. O bonde alcança a curva. A moça some da vista dos que assistiam à cena.

— Puxa – diz Hönk – essa moça me dá arrepios!

...

— Vamos para o Oito hoje? – pergunta Hönk dirigindo-se aos colegas.

— Eu não. – diz Lawliet – Prometi chegar mais cedo em casa hoje. Fica pra próxima.

“Um misto-quente com uma cerveja bem gelada não ia ser nada mal”, pensa Llayn.

O carro chega ao penúltimo ponto da linha. Lawliet se despede. O condutor do bonde faz alguma piada que o faz rir antes de alcançar a rua, por causa do poste. A lâmpada está quebrada outra vez. Lawliet foi o único a descer ali.

Oito é o nome do bar contíguo à última parada do elétrico, Estação Pedra 8. Nos finais de semana é um ponto de encontro certo dos artistas e músicos da Ilha da Caldeira, que aqui é chamada Cidade das Cinzas. Nestes, como nos outros dias, é também o refúgio de muitos trabalhadores das fábricas de Fæling — os trabalhadores da usina freqüentam outro bar.

Hönk está mais animado que Llayn, que acha que o amigo está começando a ficar bobo com a história da colega nova. Não fosse o Elixir que tiveram como sobremesa, teria sido seu único assunto. Não havia nenhum artista tocando aquela noite, o que permitiu aos dois colocarem o assunto em dia. A gerente do bar, Daf, serviu aos dois uma rodada de cerveja por conta da casa, para que Hönk parasse de falar por cinco minutos.

A essa altura já passava da meia-noite. Llayn não queria ser advertido pelo supervisor outra vez.

...

No dia seguinte, Llayn está na estação no horário. Na geladeira não havia mais biscoitos. Não há nenhum estabelecimento aberto às cinco da manhã. Preferiu torcer para que Hönk tivesse perdido a hora e carregado o café da manhã para comer durante a viagem. Ainda sonolento, o colega alcança-lhe um pacote de papel pardo cujo fundo está apetitosamente morno.

— Minha mãe fez pães doces – diz, bocejando – Prova um.

...

O portão lateral, por onde os funcionários costumam entrar, está fechado. A pequena multidão de trezentos funcionários do turno do dia aguarda para entrar. Os cento e tantos do turno da noite esperam para sair. Defronte ao portão, três homens, um deles desconhecido: o diretor Merkens, visivelmente tenso; Joffer, o Urubu; e um terceiro, vestindo um capote preto e um chapéu de aba curta.

— Senhores, por favor!, por favor!, muita atenção. — diz o diretor, que não é ouvido de imediato. Começa a bater palmas vigorosamente com suas mãos gordas. — A família de uma de nossas funcionárias contatou a força policial da Ilha da Caldeira porque a moça não retornou para casa na noite de ontem após o trabalho. Por isso, pedimos que qualquer um que tenha visto a funcionária Rëhna Vehlze depois das 19 horas, por favor, informe ao detetive Hurst – e aponta para o homem de capote.

Hönk segura com força o braço Llayn.

— É a garota.

— Qual?

— Rëhna é a novata, Llayn! A gente a viu ontem! Ninguém some a poucos metros de casa sem que ninguém veja!

— O quê? Você nem a conhece e já sabe onde ela mora?

O detetive Hurst já estava falando

— ... por isso, eu estou aqui com a lista dos nomes de todos os funcionários que poderiam ter estado com ela ontem por volta das vinte horas. Já houve confirmação de que a senhorita Vehlze tomou o elétrico no ponto aqui em frente. Por favor quando eu chamar pelo nome, a pessoa chamada se posicione aqui, ao longo do muro, formando uma fila. Precisamos saber se mais alguém que tomou aquele bonde está desaparecido.

Nesse exato instante Llayn e Hönk entreolham-se. O mesmo pensamento caiu-lhes como um raio. Lawliet não havia subido no trem esta manhã.

...

Vinte e três horas. O telefone toca incessantemente no apartamento da senhoria. Em alguns instantes ela sai. A mulher sobe as escadas com alguma dificuldade. No terceiro andar, já sem fôlego, pára diante da porta do apartamento nº 34. Duas pancadas secas. Llayn acorda.

— Llayn, alguém ligou. Não disse nome, nem me deixou perguntar nada, porque falou muito rápido. Só me mandou anotar isso. — e entrega um pedaço de papel ao jovem.

— A senhora está bem?

— Estou sim, não se preocupe. É o meu pulmão. Acredita que já tinha alguém batendo na porta hoje à tarde querendo vender o remédio novo do seu patrão?

— E a senhora comprou? — perguntou ele, deixando clara sua ironia.

— Claro que não! Sei que você trabalha lá, mas... Eu não confio em nenhum remédio que eu não saiba de que é feito. E o “charme” da Merkens é o segredo sobre a fórmula dos elixires, não é? Bem, mas afinal, o que é isso que me mandaram anotar e eu anotei. Porque eu, meu filho, não entendi nada.

Ele olha o papel pela primeira vez. Estava escrito assim: “Gena-3. Ylma-9. Théa-6. Lehna-2.”

— Sabe o que quer dizer? – ela perguntou.

— Para mim, não faz o menor sentido. Quem ligou disse-lhe para entregar isso a mim? — gesticula com a mão no peito.

— Sem dúvida.

— Era homem ou mulher?

— Não percebi. Não dava para distinguir. A ligação também estava um pouco ruim. Bem, já fiz a minha parte. Agora, boa noite, menino. E tente dormir. Sua cara está péssima.

...

Pelo meio da manhã, Llayn espia na direção onde Joffer, o supervisor, costuma ficar. O barulho das esteiras é constante e monótono. Os dois vizinhos aproveitavam-se dele quando queriam bater um papo. Joffer acaba de dar as costas para o corredor, indo em direção aos banheiros.

— Hönk — cochicha Llayn imediatamente.

— Só um segundo...

Llayn espicha o braço pela frente do escaninho, em direção ao vizinho. Entre o indicador e o médio, tinha um pedaço de papel retangular, com alguma coisa escrita.

— O que é isso? A lista das garotas com quem você tem saído? — diz Hönk.

— Alguém ligou no meio da noite para o número da dona do prédio onde eu moro, disse pra ela anotar o recado e entregar pra mim. Esse aí é o recado.

— E por que você não me esperou a hora do almoço como todo mundo? Eu não sou tão rápido quanto você e...

— Não sei. Meu instinto diz que isso tem alguma coisa a ver com o sumiço do Lawliet e da garota.

— Seu instinto devia dizer: ”Deixe o Hönk trabalhar em paz”.

— Tem idéia do que pode ser?

— Eu não tenho. Mas acho que sei a quem perguntar.

...

A mulher olha para os nomes no papel silenciosamente. A fumaça do cachimbo e o vapor das xícaras de chá formaram uma nuvem acima da mesa redonda, sobre a qual estava a caixinha de fumo prateada, um relógio de bolso e o bule de porcelana pintado à mão. Llayn olha em volta, vendo a quantidade enorme de coisas que há nas paredes: livros, animais empalhados, tabuleiros de jogos, discos, esculturas de barro e de madeira. Está ficando frio. Hönk cochila, e quando a cabeça pende para frente, ele acorda com o susto:

— E então — pergunta, piscando muito — viu alguma coisa, mãe?

Ela olha para o relógio, sem voltar a cabeça. Torna a olhar para as palavras escritas. — São nomes de prostitutas — diz.

— O quê? — a resposta de ambos foi simultânea. — Mas como a senh...

— Vocês são jovens. Não conheceram o tempo em que as cantoras eram as rainhas dos salões da Capital. Gena Samët, Ylma Pevre e Théa Goinas eram algumas das melhores cantoras até 2460.

— Elas eram fæ? — perguntou Llayn, cruzando os braços.

— Sim. Acredite. Exceto Gena Samët, todas nasceram aqui, na Ilha da Caldeira. — ela responde; dá uma tragada no cachimbo e continua — Depois do apogeu da moda das grandes cantoras, caíram no esquecimento. Exceto nas zonas de prostituição.

— Por quê?

— Porque, na Capital, o que é moda, passa. Mas algumas sempre são resgatadas pelo submundo.

— Quer dizer que elas tiveram que se prostituir depois que saíram de cena?

— Nem todas. Na verdade, foram os donos de cabarés que deram vida nova às cantoras. Uma multidão de moças pobres acabou nas boates. Era sua chance de terem alguma notoriedade, mesmo que em um ambiente tão restrito. Muitas delas adotam até hoje os “nomes artísticos” das divas. Por isso, nos cabarés encontrava-se, no mínimo uma Gena, uma Ylma, uma Théa...

— Mas e o último nome — Llayn questiona, pegando o papel — a tal Lehna não era uma cantora famosa?

— Não que eu tenha conhecido. Mas por causa desse nome tive mais certeza de que se trata de uma lista de nomes de cantoras de boate e não das divas dos anos 60.

— Por quê? Lehna é nome de puta? — perguntou Hönk rindo-se. Sua mãe olhou-o nos olhos com dureza, o que o fez calar-se novamente.

— Então, por que alguém liga para a minha senhoria, dá uma lista de nomes de prostitutas endereçada a mim e não se identifica? — pergunta Llayn, olhando alternadamente para o papel e para a mãe de Hönk.

A mulher coloca uma das mãos sobre a mesa. Dá mais uma tragada no cachimbo, soltando a fumaça pelo nariz. Com a mesma mão que segura o cachimbo, toma o relógio de bolso pela corrente e arrasta-o até o centro da mesa, formando uma espiral com a corrente.

— O que você sente sobre tudo isso? — inquire.

O rapaz olha fixamente para o relógio. O vidro reflete a luz da lâmpada que pende sobre a mesa.

— Eu — ele hesita — eu acho que alguém está tentando nos dizer algo sobre Lawliet e a outra garota.

— Então, se querem mesmo saber o que significa, sugiro que comecem perguntando a alguém que já freqüentou os bordéis.

...

Ehlmök está terminando sua ronda. Os ossos velhos já passaram por tantos invernos naquela guarita que seu reumatismo agradecia por cada dia a mais de atraso do frio. No tempo em que foi policial, perdeu todos os dedos da mão direita, acidente provocado por sua própria arma. Hoje, aposentado, trabalha como vigia da Estação Pedra 8. Por prevenção, usa um cassetete. Divide um quarto na própria estação com o condutor do elétrico, também aposentado da companhia Ferroviária Avvenin .

Dois jovens caminham em silêncio. O vigia ouve seus passos ecoarem pela rua escura e deserta.

— Boa noite, Sr Ehlmök. Está ficando frio, não é? — diz Hönk.

— Boa noite, meninos. Não é um tanto cedo? O bonde só sai daqui a umas duas horas.

— Na verdade — diz Llayn — nós viemos um pouco mais cedo para falar com o Sr Pinöf. Ele já acordou?

— Ah, não! Esse só levanta poucos minutos antes de ligar o trem. Eu mesmo o chamo. Mas se vocês saem no meio da madrugada para conversar com um velho fæ, bem, eu sou um velho fæ. Talvez eu possa ajudar.

— É que é uma situação um tanto quanto constrangedora e...

Llayn é interrompido. Uma tosse seca vem do interior da casa.

— Com quem você está falando, Ehlm? Acordei no meio de um sonho estranho.

— Esses jovens notívagos querem falar contigo.

Um homem velho surge na moldura iluminada da porta. Era o Pinöf, o condutor.

...

Llayn resume os acontecimentos dos últimos dias, e explica o motivo de o terem procurado.

— O senhor queira nos desculpar, Sr Pinöf — segue falando Hönk — mas, certa vez, não pudemos deixar de ouvi-lo conversando sobre o tempo em que era maquinista da ferrovia, e que conheceu alguns cabarés e...

— Posso ver essa tal lista? — disse rindo o velho condutor. — Talvez já tenha mesmo encontrado com alguma destas; o que você acha, Ehlm? Já sou reconhecido por ser um entendido no assunto.

Ambos os senhores lêem o papel. Na expressão dos dois, nenhum ar de surpresa.

— Alguém os recomendou que viessem até aqui?

— Ninguém. — responde imediatamente Llayn. — Foi só uma intuição.

— Então sua intuição está bem calibrada, meu jovem.

O guarda busca dentro do casebre um caderno grosso. A capa é dura e as folhas amareladas. Alcança-o a Hönk.

— O que é isso? — ele diz, abrindo aleatoriamente, em uma página central. É uma folha quadriculada, onde havia um traçado amplo e irregular, quase na extremidade da folha. Abriu outra página, mais adiante, e havia o mesmo quadriculado, mas o desenho era outro. A folha em que está aberto tinha o título “Ilha nº 89: Häkendem”.

— São mapas. Na verdade, é o Atlas da Cartografia Oficial Avvenin. — aponta com a mão sem dedos — É meu, do tempo da polícia. Fiz várias anotações à mão de coisas que os cartógrafos oficiais não incluíram.

— Certo mas o que isso tem a ver com o bilhete? — pergunta Hönk.

— Os marinheiros, e depois, os maquinistas, começaram a utilizar o rádio para comunicar dificuldades. É um código. Para não haver confusão com as letras. Usávamos vinte e seis nomes de garotas de programa.

— Então, o que isso quer dizer?... – fala Llayn, olhando para as margens da página aberta, com números na horizontal e letras na vertical.

— Quer dizer, rapazes... — responde Ehlmök — que alguém está lhes dando um endereço.

...

Avvena, Capital do Arquipélago.

— É aqui?

— Rua dos Ourives, número 799. É. É aqui sim.

O edifício de dois andares é um armazém velho. As portas e janelas estão lacradas com tábuas.Em frente, do outro lado da rua, um caminhão de feirante, vazio.

Hönk estava afoito. Ele percorre toda a fachada do edifício. No final da parede, entre o armazém e o prédio vizinho, há um corredor estreito e úmido. Ele entra antes que Llayn pudesse dizer qualquer coisa. Alguns passos adiante e encontram uma porta de ferro.

— Esta aqui não está lacrada. — diz ele, enfiando a mão na maçaneta.

Está escuro. Llayn esbarra em algo metálico, um fogareiro rústico sobre o qual estava uma lata cheia d’água.

Depois do susto, têm a impressão de ouvirem passos.

— Vem!

Hönk sai em disparada. Llayn quase não consegue acompanhá-lo. No fundo do armazém vazio, encontram um alçapão cuja abertura dava para uma escada em espiral. Llayn agora teve certeza de ouvir os passos, mas além disso, ouve também barulho de água corrente. É um corredor longo, talvez mais que o armazém acima. No final, os contornos de uma porta que se abre e por ela, vêem que alguém acaba de sair. Abrem a porta com o impacto do próprio corpo, e Llayn precisa segurar o amigo para que este não caia. Estão diante de um rio subterrâneo. Uma tubulação grande o suficiente para caber um pequeno barco.

Por um instante, esqueceram que estavam perseguindo alguém. Llayn, voltando a si, olha em volta. A poucos metros de onde pararam há uma entrada, uma portinhola rente ao chão, aberta grosseiramente na parede de tijolos, de onde vinha uma luz azulada. Entreolham-se. Hönk abaixa-se e entra. Llayn, tentando não raciocinar, o segue.

...

Trata-se de um porão. Há várias caixas de madeira e baús empoeirados. Há também uma cama improvisada. Sobre ela, um homem deitado de costas para a entrada. Ele tem as pernas cobertas com um casaco velho e sujo. Em suas costas, braços e pescoço são visíveis vários hematomas e algumas queimaduras. No chão, ao lado do homem, prostrada como um animal acuado, uma menina de uns seis anos, vestida com uma camisa de marinheiro velha. Ela segura com força a mão do homem. Ela traz no pescoço uma corrente fina com um pingente. O homem se mexe. Llayn e Hönk conseguem ver-lhe o rosto machucado. É Lawliet..

Quando os rapazes se aproximam, a criança repentinamente levanta-se e sai correndo novamente, desaparecendo pela portinhola. A luz azulada também sumiu.

...

Rëhna Vehlze nunca foi encontrada.