COLEÇÃO SANGUE ESCRAVO – O ÓRFÃO

''Mantenha os inimigos o mais próximo possível. Assim, com o tempo, vocês se reconhecerão como aliados.''

Cara, me transforma!

– Qual é, moleque, sai do meu pé! Você está delirando? Se liga no que vou lhe dizer: vampiros... não existem! – o rapaz já estava cansado de repetir, mas o garoto insistia em dizer que ele era um vampiro.

O garoto estava dormindo debaixo de alguns papelões no banco da praça, quando despertou por causa de um reboliço que acontecia ali perto. E, ao olhar por uma fresta dos papelões, ele viu, ou achou que viu, um catador de lixo atacar uma mulher que estava passando. E vivenciou os primeiros momentos aterrorizantes em que ela se debatia, tentando se livrar do homem que sugava seu pescoço.

Como qualquer morador de rua, consciente de sua pouca importância para o âmbito da sociedade, manteve-se quieto com medo de se tornar mais um número... O u talvez, nem isso.

A princípio, ele pensou que estava em um pesadelo. As ruas nunca foram tão perigosas, até monstros lendários estavam atacando em plena luz do dia. Seria verdade?

Mas quando a vítima demonstrou no semblante puro prazer em estar nos braços do homem que a subjugava, ele não teve dúvida; naquele momento, decidiu que também queria ser um vampiro.

– Sabe, qualquer dia desses você vai se meter em uma encrenca das grandes, garoto. Está usando drogas? – perguntou ríspido – Pare de afirmar que viu o que não viu, isso poderá nos trazer problemas. Para mim e para você. Posso ser até preso por conta disso. Já pensou nisso? Mas não pense que, se eu cair, irei para a lama sozinho. Arrasto-o comigo – o rapaz estava visivelmente zangado. Que inferno! Pensou. Não queria que nada disso tivesse acontecido.

O garoto inconformado não queria acreditar que não vira nada. Mas qual vampiro iria admitir que era um vampiro?

– Você é um deles... não é? – dizia o garoto rodeando o rapaz – e não adianta negar, eu vi! Eu só queria confirmar e ser igual a você. Transforma-me, vai! Faço o que quiser, mas me transforma também!

Implorava o garoto ao catador de lixo, que já estava impaciente. Esse moleque é pior que chiclete! Pensou. E se continuasse assim, iria acabar a quatro palmos abaixo da terra.

– Preste atenção no que vou lhe dizer, – repetia ele mais uma vez, encarando-o firme – vampiros só existem na telinha da TV , nos livros e no cinema. Está bolado, garoto? Acredita também em Papai Noel?

– Vai, cara! Por que você nega? Eu só quero ser como os vampiros: rico e poderoso - o garoto vislumbrou um futuro promissor.

– Sério? – o rapaz riu com a ironia, passando a mão por entre os cabelos revoltos – pareço rico para você? Estou catando lixo na rua, está cego?

Aquela ideia propagada pelas histórias de vampiros de que todos eles eram ricos e poderosos irritava o rapaz. Era do luxo dos 'ricos e poderosos' que gerava o lixo que muitos tiravam o seu sustento. Fossem eles vampiros ou não.

E daí se o trabalho de coletor de lixo não era bem-visto pela sociedade? Ele não se importava com isso.

O lixo que eles recolhiam era o mesmo que alguns esnobes hipócritas jogavam para fora de seus carros ou apartamentos de luxo, sem nenhum escrúpulo para com o meio-ambiente em que viviam. E ele acreditava ser uma injustiça que os coletores de lixo não fossem muito bem remunerados e reconhecidos como heróis daquela sociedade bichada, cancerosa que destruía e matava tudo à sua volta.

Além do mais, havia uma facilidade que aquele tipo de trabalho lhe proporcionava. Um anonimato para ele estar onde precisasse estar e completar o serviço que precisasse fazer; para espionar, para se infiltrar.

Naquele dia ele era um catador de lixo, em outro poderia ser: um vagabundo, um ambulante, um faxineiro... Estaria onde precisassem dele para trabalhar.

– Deve ser um disfarce, só pode – o garoto parecia adivinhar – quem iria suspeitar de um catador de rua? Gente como a gente passa invisível – viajou com a própria ideia – maneiro!

O rapaz balançou a cabeça em negação, o garoto era mesmo difícil de se dobrar. Já não havia mais argumentos para convencê-lo de que ele não era um vampiro. O jeito era apelar para os homens da IRAR.

A IRAR era uma grande Instituição Responsável em Apagar Rastro. E era formada por uma quantidade infinita de pessoas. Cada uma com uma função, um objetivo. Algumas, super-dotadas com o poder de persuasão, que apagavam as memórias dos humanos através da hipnose, daquilo que nunca deveriam ter notado. Outras, resgatavam e davam fim a qualquer coisa que pudesse comprometer de alguma forma os integrantes da Comunidade do Sangue Escravo.

Ele tirou o celular do bolso e ligou para o número de emergência, enquanto o garoto não tirava os olhos dele. Que vacilo! Pensou. Como ele não percebeu que havia um moleque no banco da praça? Agora o jeito era resolver para não ser punido. Pois ninguém queria receber uma intimação do Conselho.

Um grupo de anciões respeitáveis formavam o Conselho da Comunidade. Eles deliberavam, promoviam e aplicavam as leis a qualquer ato ilícito praticados pelos cidadãos da Comunidade. E as punições que eles aplicavam poderiam ser bastante severas para quem desobedecesse as leis. E ele desobedecera uma das leis mais importantes: nunca deixar ser notado enquanto matava sua sede. Que merda!

Já tentara apagar a memória do garoto, mas nada! Ele resistira a sua persuasão. Às vezes isso acontecia. E quando eles encontravam pessoas resistentes assim, eram instruídos a passar o problema para o IRAR.

E se entregasse aquele garoto para a equipe da limpeza não seria punido, apenas advertido.

Então, não havia outro jeito.

Contudo, o serviço não era de graça. Podia-se entender o desgosto do rapaz em ter que fazer aquele contato. Aquela seria uma necessidade que mexeria com seu fundo financeiro.

– Alô, IRAR? Estou precisando da assistência dessa instituição. Um moleque de rua está me acusando de coisas que não aconteceram. E não tem nada que o faça acreditar do contrário.

– Entendido, Sr... Ruam? Pronto! Já identificamos sua chamada, encontramos sua localização e registramos a sua solicitação que será atendida em alguns segundos – responderam do outro lado da linha.

– Beleza!

Apesar de serem muito caros, a verdade era que eles eram muito competentes. Essa era a propaganda que se fazia de seus serviços. Ruam nunca havia necessitado acionar a instituição antes. Mesmo porque, ele fazia parte daquele grupo. Indiretamente, é claro! Pois o trabalho que ele prestava, em relação ao todo, era um grão de areia.; juntamente com o trabalho de outros iguais a ele. Mas era por isso mesmo que tornava aquela instituição tão absolutamente eficaz. Mesmo assim, estava impressionado com a eficiência no atendimento. Pelo menos foi a primeira impressão que eles passaram.

– Qual foi? Está querendo me assustar? – falou o garoto, debochado – não adianta que não vou largar do seu pé enquanto não me transformar.

Nesse instante, três motos pretas frearam bruscamente em torno deles. E delas desmontaram três homens totalmente cobertos de negro: capacetes, jaquetas, luvas e botas que os cercaram. O menino ficou com os olhos esbugalhados para um dos homens. Apesar de toda a indumentária, dava para perceber o tão musculoso que ele era. Mais parecia um fisiculturista.

– Então, o moleque é esse? – perguntou o forte ao catador de lixo, olhando ameaçadoramente para o garoto. O outro fez que sim com a cabeça.

– Não consegui fazê-lo esquecer – disse.

– Hum! Pode deixar, agora é com a gente. Em dois tempos estará tudo resolvido – um outro homem da instituição afirmou.

O forte segurou o garoto dos dois lados da cabeça e o fez encarar. Assustado, quis fugir. Mas já era tarde demais para tentar. Suas pernas fraquejaram. Ruam chegou a sentir pena do garoto, pois o poder de persuasão de alguns membros da instituição era tão forte que poderia causar até demência em alguns indivíduos. Esse era o slogan do departamento.

– Agora preste muita atenção no que vou dizer... você só viu duas pessoas se beijando.

O garoto ficou olhando o homem, hipnotizado. Mas logo, passado alguns segundos, ele interpelou:

– Você também é um deles?

Os três homens da IRAR ficaram sem palavras. Geralmente as pessoas que passavam pela inspeção do Adrian, o fortão, esqueciam-se de tudo imediatamente.

– O garoto é pouco responsivo a hipnose – ele disse, finalmente, desolado.

– É mesmo? Não diga! – sacaneou Ruam, o catador de rua. Mas estava mais aliviado por saber que não foi só ele que tinha falhado no ato de persuadir o garoto. Não era tão fraco assim.

Os funcionários da IRAR ficaram momentaneamente sem saber o que fazer. Afinal de contas, eles eram o último recurso que havia para proteção do anonimato de seu povo, se eles falhassem nada mais poderia ser feito. A não ser...

Era melhor chamar Samuel.

Samuel era um dos cabeças da instituição, e o que possuía a maior força de persuasão. Com certeza, conseguiria bagunçar a mente daquele moleque. Porém, ninguém gostava de contatar Samuel, pois ele liberava um feromônio que causava mal-estar, medo e repulsa. E era tão forte a sua indução que até para os próprios integrantes do IRAR era difícil de lidar.

Porém, para o desespero deles, Samuel estava indisponível naquele momento. Encontrava-se em uma conferência médica em Istambul e só deveria voltar depois do fim de semana, como reportou a administração.

– Então, o que faremos com ele? – perguntou um dos rapazes da IRAR aos outros dois companheiros.

– 'ELE' está ouvindo tudo – disse o garoto.

Eles o olharam sem vê-lo. Seria um pé no saco ter que lidar com aquele pirralho no momento de folga. Ninguém estava disposto a assumir a responsabilidade por ele durante todo o fim de semana.

Até que, o fortão teve uma ideia fantástica.

– Já sei! De jeito nenhum ele nos causará problemas. E ainda teremos um fim de semana bem lucrativo. – o fortão piscou para os companheiros e eles riram de volta de maneira conivente.

– Oh, oh ,oh!... Esperem aí! Como assim? Não!... Não podem levá-lo. Deve haver outra forma de resolver o problema sem precisar chegar a esse ponto – o catador de lixo se colocou de braços abertos entre o garoto assustado e a equipe de limpeza. E os três o olharam enviesado.

Nesse momento, um jeep 4 por 4 parou, e dele saiu um rapaz forte como um rolo compressor, de cabelo cacheado e olhos da cor de mel. E interpelou:

– E então, o caso já foi resolvido? – observou, pela posição de defesa do catador de rua para com o menino, que ali parecia ter um impasse.

  Os rapazes da IRAR entreolharam-se. Aquele era Damião, o irmão de Samuel, o outro cabeça da instituição. E eles tinham um grande problema em mãos.

Provavelmente, Damião tinha interceptado a chamada de emergência – deduziram. Era algo que cabia a Damião fazer, já que seu trabalho estava ligado a internet, as redes sociais e interceptando ligações telefônicas. Atento a qualquer comentário que levasse a exposição da Comunidade. E logicamente, a sua equipe havia grampeado as redes da IRAR. Que droga!

Na verdade, Damião apenas monitorava as ligações da IRAR, para manter a ele e ao seu irmão Samuel informados das ocorrências solicitadas à instituição, principalmente quando Samuel estava ausente. E só acionava uma interferência caso houvesse uma necessidade maior.

O fato de ter sido um garoto o centro do problema na petição interessou a Damião. Pois, havia uma situação delicada ao se envolver crianças nos assuntos da Comunidade. Normalmente, esse tipo de assunto acionaria um outro irmão, o Rafael. Era ele que estava no comando de uma força tarefa protetora ao menor vulnerável. Mas como Damião não estava fazendo nada naquele momento, não custava ir verificar. Pois, conhecendo bem a prática dos agentes responsáveis pelo bem estar e segurança da Comunidade, se não houvesse ninguém olhando, com certeza, o lixo seria jogado para debaixo do tapete. Afinal de contas, quem iria se preocupar com o sumiço de um garoto de rua em comparação às tantas outras crianças de família que eram subtraídas diariamente do seio da sociedade?

– O garoto é resistente, – respondeu o cara forte – íamos mandá-lo para o orfanato até Samuel chegar.

–Hum hum!

Damião ponderou. Sabia que eles estavam com conversa fiada, sentiu o clima tenso entre eles e o catador de rua. Provavelmente o garoto iria 'fugir' no meio do caminho e nunca mais teriam notícias dele. Sabe-se lá o que poderiam fazer com ele. Além do mais, no comércio negro, o sangue infantil poderia render muita grana. Era tentador demais. E como dizia o ditado: ''o que os olhos não veem o coração não sente.'' Ele não iria dar mole em deixar o garoto aos cuidados dos faxineiros.

– Que coincidência! Eu estava mesmo indo para lá. De boa! Sobe garoto, vamos dar um passeio – disse Damião, já abrindo a porta para o garoto entrar – podem deixar, eu mesmo levo ele para o orfanato.

Via-se a decepção na cara dos faxineiros. A grana que vislumbraram em seus bolsos saia voando de suas mãos.

O garoto estava um pouco perturbado com tanta gente decidindo sobre sua vida. Mas com certeza, não estava disposto a descobrir o que aqueles motoqueiros mal-encarados queriam fazer com ele. Eles eram assustadores.

Além do mais, não havia como o manterem em um orfanato se não quisesse. Pois, nenhuma fechadura era forte o suficiente para não ser arrombada. Subiu no jipe sem vacilar.

Damião fez uma leve continência para o grupo e levantou voou em seu jipe envenenado.

Andaram algumas ruas sem se falar nenhuma palavra, até que Damião perguntou:

– Quem são seus pais? Eles não estão preocupados com a demora de você voltar para casa?

O menino deu um olhar triste aos transeuntes que passavam a toda velocidade na calçada.

– Não conheci meus pais, fui deixado em uma caixa de sapato no lixão da cidade. Quem me achou foi o Donato, que me criou. Mas ele também já morreu,... de overdose.

Damião avaliou o garoto.

– Quantos anos tem?

– Acho que tenho treze, segundo o meu pai de criação. Mas é difícil de saber, já que ele sempre estava alcoolizado e não sabia nem a própria idade – e riu.

– Então não tem ninguém que vá sentir sua falta, se sumir?

O garoto esbugalhou os olhos para Damião, que já desmentia com a mão o que deixara entender.

– Não se preocupe, ninguém vai lhe fazer mal. Está sob a proteção da família Ferret agora.

O garoto respirou mais aliviado, fosse lá o que significasse ser protegido pela família Ferret. Mas ainda estava preocupado com o desfeche daquela história.

– Você é um deles?

Damião encarou o menino que parecia decidido a desvendar aquele segredo. Isso era louvável. Destemido, apesar dos apesares. Mas também, ele era um menino criado nas ruas, não tinha medo de nada.

– Sou – respondeu Damião sem fazer rodeios.

O menino ficou boquiaberto. Até que enfim alguém afirmava ser o que ele suspeitava que eles eram. Não era louco.

– Você vai me matar ou me transformar?

Damião começou a rir, ele não queria desfazer do coitado, mas achar que poderia se tornar um deles era no minimo uma ilusão.

– Como já disse, você está seguro agora, ninguém vai lhe fazer mal. Mas não entende o que somos. Não somos vampiros, pois vampiros não existem.

– Mas eu vi o homem no parque atacando a mulher.

Idiota! Pensou Damião, batendo no volante com força. Como pôde se expor assim?

– Certo. Não vou entrar em detalhes, mas não somos vampiros. Apesar de bebermos o sangue humano não matamos ninguém, nem dormimos em caixões, nem tememos a cruz, nem a água benta. Sim, morreríamos se colocassem uma estaca em nossos corações. Mas você também não morreria?

O menino ficou olhando Damião, curioso.

– Beber sangue humano parece coisa de vampiro.

Damião riu, o menino tinha um ponto.

– Sim, de certo modo sim. Os vampiros foram inventados por meu povo, para que os humanos acreditassem em histórias de terror e não em histórias reais. E além do mais, nós não transformamos ninguém. Para ser um de nós é preciso nascer assim.

– Como assim?

Eram muitos ''como e por quês'' que teria que responder para ele entender. Damião não estava disposto a isso.

– Vamos fazer assim, se você passar por Samuel e não conseguir esquecer tudo isso, eu prometo que lhe conto tudo.

– Promete? – o menino perguntou duvidoso.

Na verdade, ele não queria esquecer nada do que vira. Mas se existia uma possibilidade de não apagarem-lhe a memória, parecia promissor poder se inteirar da história dos vampiros, ou fossem eles quem fossem. Porém, não se iludia. Por tudo que ele tinha escutado o mais certo era que dariam cabo de sua existência. Então, era melhor fingir concordar com tudo até encontrar a melhor hora para fugir.

Mas quando Damião estacionou o carro nas dependências do orfanato o menino arfou. O orfanato era gigante. Tinha tudo que um colégio de luxo possuía. Até uma piscina olímpica.

– Eu quero ficar aqui – disse animado.

– Só vai depender de você, amiguinho – Damião disse, já levando-o para a administração do orfanato.

Ao entrar no prédio, deu de cara com sua irmã Ema.

– Que coincidência, era você mesmo com quem queria falar. Esse aqui é o...

– Rafael – disse o menino, causando uma reação de surpresa aos dois.

Damião sorriu com a possibilidade de causar intriga com o seu irmão. Pois eles estavam sempre procurando um motivo para tirar sarro um dos outros, principalmente Damião. Ele se divertia com isso.

– Pirralho, gosto mais de você agora – disse, sorrindo. E voltou para Ema – mas como eu estava dizendo, precisamos deixar o pequeno Rafael sob os cuidados do orfanato até a chegada de Samuel. Os faxineiros não conseguiram fazer uma limpeza. Daí, esse pirralho é um perguntador nato.

Ema sorriu para o menino de maneira agradável, já o conduzindo para a sala de triagem.

– Pode deixar, ele está em casa. Depois de fazer alguns exames médicos estará liberado para participar dos entretenimentos do orfanato – explicou ao garoto.

– Eu vi algumas máquinas para jogar games, assim que entrei. Eu posso jogar lá também?

– Claro que poderá, assim que tudo estiver acertado e você ouvir a listas de normas do orfanato. Aqui você terá oportunidade de fazer tudo que desejar. Mas também terá que seguir as regras.

– Que chato! Poderíamos viver sem regras.

– Verdade, – retrucou Ema – então, também penso assim. Mas sabe, quando não se tem normas e regras a seguir as pessoas costumam ultrapassar a linha imaginária que dá a segurança de se viver. Por isso é preciso respeitar os direitos do próximo para que o próximo respeite os seus. Senão... viveríamos em uma baderna.

– Inferno às normas e regras!

Ema sorriu amistosamente e enviou um menino rabugento ao centro médico através das mãos de um funcionário. Foi contrariado, mas ao mesmo tempo curioso para conhecer aquela nova morada que mais lhe parecia um sonho. Mesmo que fosse por pouco tempo.

– Assim que Samuel vier, eu mando buscá-lo – avisou Damião a Ema.

– Poderíamos ficar com ele aqui – disse Ema, agradada pelo menino.

– Sim. Ao que parece, ele não tem ninguém lá fora. Mas vou pesquisar. Vou pegar seu DNA para conferir.

E, ao se dirigir ao consultório médico para verificar se já haviam tirado o sangue do menino para exames, um enfermeiro já saia. Ia comunicar a Ema uma novidade.

– Ah, Sr. Damião! Temos um problema, o garoto é um mestiço.

Damião entrou na sala do consultório já pegando o garoto pela camisa surrada e perguntou de maneira ríspida

– Quem são seus pais?

O garoto ficou assustado com a pergunta de Damião. Afinal de contas, ele já não havia lhe dito que não sabia? Como se ouvisse sua resposta mental, Damião já saiu arrastando-o.

– Vamos, você não vai ficar aqui. Irá para o centro de treinamento especial.

– Mas eu gostei daqui, eu estava gostando da ideia de ficar.

– Mas não pode ficar, as crianças mestiças vivem separados das crianças humanas. Pelo menos quando descobrimos a tempo.

O garoto franziu o cenho, curioso – eu sou um mestiço? O que significa isso?

– Bem, amiguinho, essa conversa será longa.

Durante a trajetória até a mansão Damião não deu uma palavra. Sua cabeça estava borbulhando. Era coincidência demais.

Eles estavam travando uma guerra silenciosa contra um grupo de mestiços. E aquele menino não poderia aparecer em momento pior. Com certeza, se fosse pego pelos guardas da liderança, ele iria acabar em maus lençóis.

Não era à toa que a IRAR não conseguira fazer uma limpeza em suas memórias. Os mestiços eram imunes a hipnose.

Há muito tempo, a criação de mestiços tinha sido proibida. Pois, segundo os antepassados, eles eram incontroláveis e não seguiam regras, nunca! Expondo assim a Comunidade. Por isso, o relacionamento com os humanos não era aceitável.

Mas como todas as regras foram feitas para serem violadas, nasceram muitos mestiços por baixo do pano. E, apesar de ser do conhecimento das autoridades, que deveriam controlá-los, eles simplesmente os ignoraram, deixando-os a própria sorte.

Agora a guerra batia à porta. Os mestiços estavam sendo recrutados e treinados como soldados por oportunistas que os viam como armas letais a seus inimigos.

Um rebelde que fora condenado ao exílio pelo Conselho, por estar traficando o sangue infantil, jurara vingança. E logo após à sua condenação, tomara a iniciativa para formar um exército com a ajuda de outros rebeldes.

Aproveitando da ignorância dos mestiços sobre sua origem, recrutava-os e manipulava-os para serem suas armas vivas. Queria, com isso, tomar a liderança da Comunidade.

E como os mestiços eram fisicamente superiores aos membros da Comunidade, levava a alguns estudiosos a acreditar que em poucos anos a evolução viesse a torná-los o topo da cadeia alimentar. E se isso acontecesse, tendo-os como inimigos, logo eles estariam em um lugar muito apertado e escuro. Em um futuro próximo... próximo demais!

Mas em contramão às decisões das autoridades da Comunidade, a família Ferret, por iniciativa própria, resgatava crianças mestiças e as colocava sob a sua guarda. Oferecendo-as um lar e uma família para representá-las. Com o direito a educação e de se tornarem membros da Comunidade com dignidade. E ofereciam também um treinamento militar para garantir um emprego no futuro, caso se interessassem. Porque eles queriam os mestiços do lado certo da luta. E para que tudo isso funcionasse, era preciso inclusão e empatia.

Damião deixou o menino sob os cuidados da guarnição interna da família Ferret. Pois, independente de quem fosse seus pais, ele tinha o direito de ser alguém. La ele teria tudo que encontraria no orfanato, mas o esclarecimento de quem era. Antes que descobrisse por terceiros o porquê fora jogado nas ruas; como se fosse um mal a ser eliminado. E melhor ainda, teria um nome e sobrenome. Seria mais que um soldado para lutar, seria um filho adotado pela família Ferret.

Os Líderes da Comunidade, ao longo do tempo, se deixaram levar pela irresponsabilidade ao deixar de abraçar os frutos dos relacionamentos que eles mesmos proibiram, mas que nunca conseguiram controlar. Ignorando assim a existência de um mal que eles mesmo criaram. E logo estariam colhendo monstros que poderiam ser evitados, se não tivessem feito vista grossa e abandonado as crianças a própria sorte.

Como dizia seu pai: ''tenha seus inimigos o mais próximo possível. Assim, com o tempo, vocês se reconhecerão como aliados''. Dar abrigo, educação, condição digna de vida a uma criança, mestiça ou não, seria sempre menos um marginal na rua para se preocupar. E mais um do lado certo para lutar – pensou Damião.

Voltou para casa mais leve, com a certeza de que ganhara o dia.

Jussara Pires
Enviado por Jussara Pires em 30/12/2023
Reeditado em 30/12/2023
Código do texto: T7965321
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