O conto do Corvo

E, foi percorrendo o Norte daquele reino, que me encontrei com um velho conhecido. Ele estava parado, olhando todo o movimento de longe, uma mistura de receio, medo e solidão.

Me aproximei quieta, sabia que qualquer movimento brusco poderia assustá-lo e ele então voaria para longe. É isso o que as aves fazem. Mas não foi o que ele fez. Talvez quisesse ter minha companhia naquele momento, talvez estivesse tão distraído que não havia percebido minha chegada.

- Acho que nos conhecemos, de outros caminhos - eu lhe disse.

- Você é uma viajante, - ele me respondeu - conhece muitas pessoas.

- Mas você é um corvo. Eu não me esqueceria fácil de você.

Eu então me sentei ao seu lado. Ele não esboçou nenhuma reação, continuou a observar o que fosse que observava.

- O que te aflige, meu velho amigo?

- Roubaram meu bem mais precioso.

- E sabe onde encontrar o que está perdido?

- Estou cansado - o corvo me diz - estou fugindo a tanto tempo, que perdi meu rumo e agora não sei mais para onde ir.

- Pois lembre-se que tens a sorte de ser um pássaro e poder voar.

- Do que adianta poder voar se não tenho destino?

- Um amigo me ensinou que é possível encontrar o seu lugar no mundo quando menos se espera e menos se procura.

Mas o corvo não precisava de palavras bonitas. Ele só queria a paz que haviam lhe roubado. Então eu coloquei a mão no bolso do meu casaco e tirei um pedaço brilhante de algo que eu ainda guardava.

- Isso por acaso é o seu coração? - o corvo me perguntou - Não vale de nada, está quebrado.

- Mas ainda brilha.

- Até eu, que sou um corvo e gosto de coisas brilhantes, sei que é apenas lixo e não tem valor algum.

- Gosto da ideia de entregar pedaços para certas pessoas importantes na minha vida. - eu disse enquanto segurava o pedaço mais brilhante nas mãos - Eu gosto da sensação de me apaixonar. Gosto das borboletas no estômago.

- Eu não gosto de borboletas, eu sou um corvo.

Rindo, eu lhe entreguei o pedaço que segurava. Primeiramente, o corvo bicou, checando a integridade daquele fragmento. Depois observou curioso, como se o brilho lhe chamasse a atenção, mas ao mesmo tempo ele quisesse saber o motivo de eu ainda guardar aqueles pedaços quebrados com tanto carinho.

Depois de alguns segundos em silêncio, apenas esticou suas asas, espreguiçando em deboche.

- É perda de tempo. Guardar cacos.

- Mas eu não estou guardando. Estou distribuindo. E desta vez, hoje, deixo um pedacinho com você.

- E quando acabar? E quando sobrar apenas um pedaço, o que vai fazer? Como vai saber que não quebrarão teu coração novamente?

- Talvez não tenha como saber. Mas é um risco que podemos tomar. Gosto do gosto de amar.

- Me deixe adivinhar, gosta da sensação das borboletas?

- Um pouco, sim.

- Pois eu ainda odeio borboletas.

- Mas eu gosto de corvos. Principalmente dos cerúleos.

Dizendo isso, levantei- me ajeitando o casaco e me preparando para ir embora.

- Está esquecendo esse pedaço do seu coração, senhorita Viajante - o corvo me avisou.

- Me prometa que continuará escrevendo. Em um dia, em alguma primavera, nós nos reencontraremos e então você poderá me entregar de volta o pedaço mais brilhante que estou deixando com você.

O corvo então voou.

E não olhou para trás.

Estava um pouco perdido, sem rumo.

Mas estava livre e lembrava que podia, sim, voar.

O futuro estaria logo ali, no próximo bater de asas.

Aquele não é o fim.

Era apenas o começo.

Viajante atemporal
Enviado por Viajante atemporal em 24/03/2024
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