Meia Volta

I

“O que há?” Nada, nenhum barulho ou sorriso. Em todo o deserto de areias cristalinas não havia nada. Houvera em algum tempo, mas hoje desapareceram. Talvez, tenham apenas ficado para trás ou esconderam-se nos labirintos das montanhas de gelo puro. As pegadas efêmeras desenhavam uma trilha tortuosa e com destino certo, mas vacilantes e chorosas. Carregavam um corpo em ruínas, habitado, agora, pelos vermes da paranóia, apenas eles. Tinham vontade de parar, tudo havia parado, afinal. O vento lhe trazia sorrisos que faziam chorar, o paradoxo do tempo. A felicidade passada é a promissora matéria-prima para o futuro mais doloroso, pálido e doentio. Saudade, todos sabem o seu nome. Os passos continuaram, ainda havia muito para cruzar. Andavam no vazio, em uma grande e insólita redoma de tristeza. “O que há?” Ecos, fantasmas sem toque e imagens, não mais do que isso. Se houvesse algo, qualquer coisa feita de realidade, ele não perceberia. A triste loucura engolia os outros, distorcia e fazia esmaecer. O mundo escorria diante de seus olhos e por entre os seus dedos, não podia senti-lo, estava preso, envolto em letargia e medo opressor. O homem continuava, junto com os seus passos, certamente, ainda havia muito para viver, mas antes precisava voltar, encontrar forças para alimentar os vermes famintos do corpo decadente que carregava.

Tudo lhe parecia tão improvável, era apenas lembranças. “O que há?” Apenas recordações amargas de mentiras doces, de mel e nuvens. A verdade dói, é feita de ferro, pedras e fogo. Ela transfigura o rosto, fere a pele alva de mentiras macias. A verdade chora, soluça, enquanto a mentira consola e sorri em nossas costas, nos olha de esguelha e dá gargalhadas. O homem precisa se habituar ao seu novo mundo de verdade pétrea. Esteve sonhando? Por um instante, pela primeira vez em uma noite imensa. Ele continuou andando, os pés latejavam e o vento rodopiava ao seu redor, procurando alguma fresta em seu casaco de couro. Não olhou para trás, seu coração pediu inúmeras vezes, mas não podia, tinha que continuar sendo ele mesmo. Caminhou sob o sol congelante, sob as estrelas debochadas de brilho verde e sobre as dunas de neve arenosa.

Perdeu-se.

II

Tudo parecia girar, mas era ele quem desolado rodava, estava em um carrossel de dragões ferozes. Antes presos nas hastes de metal, agora sibilavam obscenidades e arrastavam suas caudas de serpente ao redor dele, de sua presa. “Perdido”, uma das malditas bocas do vento cuspiu em seu rosto. O homem manteve-se de pé, com uma das mãos sobre o estômago e a outra na boca para tentar impedir os vômitos. Não sabia o que fazer, os pensamentos lhe faltaram, oprimidos pelo medo. As cores, as poucas que ainda restavam no mundo, traçavam linhas quase luminosas ao serem arrastadas pelo giro do carrossel, havia algo de pueril naqueles desenhos, sentiu-se criança, indefeso. Os olhos pungentes dos dragões queimavam maliciosos, como se guardassem o maior dos segredos, sóis pequenos, amarelos e surpreendentemente profundos. Traziam toda a dor para a flor da pele, fazia dela tatuagens infernais, doloridas e pegajosas, de sangue podre escorrido de alguma ferida maldosa, feita pelas costas, pelo lado de dentro do escudo. Não suportou mais, deixou-se cair de joelhos. O carrossel parou, agora somente os dragões rodavam, andavam ao redor dele, calmamente e com estranho interesse. Sem ter forças para prosseguir ou fugir, o homem deixou-se mutilar pelos monstros, os demônios do deserto. “O que há?” Carne e sangue! Deixariam o melhor para o final. Morderam os dedos para que nunca mais pudessem tocar, os olhos para não poder enxergar. Um dragão azul, esguio como uma serpente marinha, saltou para dentro do corpo do homem. Atravessou toda a distância que há entre um corpo e sua alma e de espírito se alimentou. O homem ofegava e temia morrer afogado nas profundezas de seus sentimentos. Não ousava cruzar o olhar com os dragões, estava perdido – lembrou-lhe o vento. Das vísceras ensangüentadas sorveram a confiança desapontada, lamberam a admiração destruída e a loucura desmedida. Não restava mais do que um corpo nu e vazio, com um pequeno pulsar de vida involuntária. O dragão safira esgueirou-se para fora da alma, abriu espaço entre os dentes serrados e escorregou da boca para a areia, estava satisfeito. Afastaram-se do homem moribundo, andaram por mais alguns instantes ao redor dele e mergulharam na areia gelada, desapareceram.

O que restou de seu corpo tremia, tentando atrair a morte, precisava dela. Desejou morrer, apertou os olhos e rezou para ela. Mais uma vez o céu não lhe atendeu. Começava a congelar e a tornar-se parte do vento. “O que há?” Força, energia de algum lugar. Ficou de pé, precisava continuar por si mesmo, caminharia até a morte. A dor em seu peito havia diminuído, parecia dormir e quase não respirava. Os passos continuaram até o topo da próxima duna.

III

Lá de cima pôde divisar, pela primeira vez, sua cidade gelada. Uma onda de calor reconfortante começou em suas orelhas e foi até a ponta dos dedos dos pés. Ela trouxera consigo um sentimento doce de segurança que só um lar é capaz de transmitir, não importa o quão ruim o seu morador esteja. Por mais que aquelas torres frias de metal espelhado e as pessoas superficiais e frívolas, que era maioria naquele lugar, não representassem nada, a sensação de estar perto de casa esquentou o coração do homem com uma chama que havia se extinguido com a distância. Agora, ao se aproximar do lugar familiar, onde nenhum intruso é capaz de entrar, o fogo de chama azul voltara a crepitar suave, finalmente, uma nova fonte de esperança surgira, ele até havia se esquecido dessa encantadora sensação. Com os olhos marejados e lutando contra a morte que ameaçava usurpar o seu corpo, desenhou sobre a areia uma linha de pegadas apressadas, que unia o cume da duna aos portões da cidade, e cruzava o sussurrante Vale Horizonte.

Durante a travessia do vale, a sombra tênue de um pássaro acompanhou-o. Não lhe atribuiu importância, concentrava-se em andar, precisava alcançar o seu destino, abraçar alguém e curar suas feridas. Suas vestes pareciam ser feitas de chumbo e suas mãos estavam sem lugar, pareciam inúteis e insensíveis. Uma inquietação enlouquecedora apoderou-se dele, como se estivesse atravessando uma nuvem de mosquitos peçonhentos que passeassem apressados por todo o seu corpo. Seus olhos teimavam em fechar-se e os pés a descansar. Parou sob a sombra raquítica de uma árvore vítrea, parte da couraça do deserto, faria uma pausa ali. O rosto encontrou abrigo entre as mãos, teve vontade de chorar, mas ela foi espantada pelo pássaro. Ele havia pousado no galho mais distante, era vermelho vivo, como se tivesse sido banhado em sangue pulsante, e pequeno, um canário, talvez. O homem sentiu um calafrio rubro, olhou com curiosidade para a ave e aproximou-se dela.

IV

Encostou seus olhos nos da ave. Pôde ver dentro dela, viu liberdade e vontade de voar. As asas vermelhas abriram-se e sem se despedir voaram para o meio de uma nuvem alva de gelo. O homem apenas observou imóvel, no entanto, algo começara a se mover dentro dele, as engrenagens de um relógio, um tic-tac, um punhado de tempo, alguns grãos dele.

“O que há?” Lembranças duvidosas, talvez, não tenham, em algum dia, mesmo que remoto, sido realidade. São tão distantes da verdade, completamente diferentes do todo que certamente pertenceram a alguma outra vida ou a algum sonho desta. Elas estavam dentro do homem, enfurnadas em algum canto. Surgiam vez ou outra, trazidas por algum gancho ousado lançado por alguém inconveniente ou por alguma situação que deveria ter sido evitada. Era o momento de despedir-se e voltar de uma vez por todas para casa, não lembrar-se mais e conter-se. Olhou timidamente para trás. “O que há?” Desejou não ter visto nada, mas ainda havia algo lá, sempre haverá. Por sorte, o homem não costuma olhar para trás e mesmo havendo algo, se ele não olhar, não verá mais, nunca mais.

Continuou andando, uma dor arranhava seu coração por dentro, com unhas de ferro enferrujado, continuou andando, um passo depois do outro, precisava seguir. Teve vontade de voltar, parou, faltavam poucos passos para o portão. Apertou os olhos e temeu que os dragões voltassem para lhe roubar a vida. Conteve-se, já cruzara todo o deserto, não cabia mais resolver regressar. O coração disparado e um tremor interior foram suas companhias até o umbral de entrada. Tampou os ouvidos e ajoelhou-se, os portões fecharam-se às suas costas. Estava em casa.

Fillipe Evangelista
Enviado por Fillipe Evangelista em 12/01/2008
Reeditado em 01/02/2009
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