Um conto de xadrez

Muitos e muitos séculos atrás, contam que já haviam disputas, lutas armadas e também esportivas. No campo do esporte eram combates entre os chamados soldados valentes que se envolviam em lutas às vezes até a morte. Isso para divertir povos que enchiam as arenas, os chamados “maracanãs” da época e, alternando eventos nesses fabulosos “estádios” tinham também os massacres. Condenados à morte eram jogados para as feras devorarem sem piedade, ou eram torturados pelos soldados, peões, súditos que obedeciam orgulhosos as ordens macabras para a suposta diversão do público.

Nessa época aconteceu um fato inusitado que mudou completamente as disputas dos tais “jogos” que enchiam os tais “maracanãs” daqueles dias.

Um rei que assumira o trono em virtude da morte precoce de seu antecessor já foi dando mostras de breves mudanças em seu reinado. Ele tinha pavor a tragédias, sangue e principalmente a morte... Ele tinha enorme medo de morrer.

Com receio de invasões, saques ou mesmo de supostos psicopatas, ordenou maior segurança para a corte. Convocou dezesseis soldados para se revezar na segurança do castelo, aliou-se à igreja para apoio futuros... Ficou restrito a pequenas aparições em público e por tal foi chamado de preguiçoso. Sua amada, a rainha por sua vez ficou cheia de privilégios, o rei deu-lhe amplos poderes, chegou a ser mais importante que o próprio rei.

Certa vez ao ser informado que havia problemas religiosos na região, solicitou ajuda ao clero. Pediu que enviasse autoridades religiosas (se possível para residir no castelo) para resolver os tais problemas e, por conseguinte deixar sempre a corte em clima de oração. E o Papa enviou quatro Bispos atendendo prontamente o pedido do rei. Com os Bispos residindo no castelo o rei se achou no direito de dar maior proteção aos Bispos.

Para chamar a atenção do Papa e visando maior proteção para o castelo, chamou quatro soldados de maior confiança e os promoveu a soldado real I. Ordenou que pegassem os quatros melhores cavalos (pretos e brancos) para diferenciar por cor os locais dos plantões. Os brancos começavam a ronda diária, o qual tinha uma certa vantagem, pois ficavam com a frente do castelo, enquanto os cavalos pretos garantiam a parte inferior do palácio real.

O rei em um certo dia de tensão política foi indagado pela rainha:

- Amor... Estou achando que você pensa muito em se proteger e nunca pensa em atacar. Já parou para pensar que você tem muita proteção aqui perto, mas não vê ao longe um eventual perigo e nem pode atacar à distância.

E o rei no alto de sua sapiência medrosa mandou construir quatro torres. Duas em cada lateral do castelo e em cada uma um soldado para proteger e ao mesmo tempo estar pronto para um contra-ataque. Embora o rei não gostasse muito dessa ideia de atacar, ele preferia ser protegido.

Com o passar dos tempos o rei se via até certo ponto realizado, pois diminuiria os conflitos, lutas, mortes... Porém nas arenas continuavam o derramamento de sangue, torturas... O que o povo gostava, contudo não era do gosto do rei. Às vezes fugia com desculpa para não presenciar os massacres sangrentos, execuções etc.

Sua majestade em silêncio arquitetava algo para abolir aquele tipo de esporte sem afastar o público do seu “lazer”. Foi quando o rei teve uma ideia: fez um convite ao mais consagrado cientista, possivelmente o homem mais inteligente de sua época. Em seu gabinete, o rei mostrou ao tal cientista a necessidade de se idealizar um esporte, um jogo no qual não afastasse o público e ao mesmo tempo acabasse com o sangue na arena. O rei não admitia brincar com o sofrimento alheio, vibrações com a morte de pessoas, mesmo que condenadas...

- Você como o homem mais inteligente, mais sábio desse século, podemos assim dizer, lhe autorizo a colocar seu cérebro em prol dessa causa. E o cientista já tinha o problema resolvido, todavia não disse ao rei com medo de ser condenado à forca, ou ver alguém em tal situação.

O que o rei queria era um jogo com emoção, uma disputa sadia, algo que despertasse curiosidade, inteligência, arrancasse aplausos com grandes lances, estratégias, defesas, ataques e, sobretudo sem violência.

Na reunião a portas fechadas o rei aguardava uma resposta do cientista. Já impaciente o rei notou algo no ar e perguntou:

-O senhor entendeu? Já tem o que preciso?

E o cientista pensou:

"Se o rei soubesse do jogo que ronda toda cidade, acho que teríamos muitas forcas a ativa". E falou:

- Claro, claro majestade trabalhei minha inteligência em dobro pela sua causa, seu reinado será marcado para sempre, criarei um jogo que correrá gerações e jamais sairá da memória desse povo. Alias, para muitos não será considerado jogo e sim uma terapia. Irá substituir o sangue pela emoção, a atitude impensada pela estratégia, a morte pela vida. Sabe senhor, estou fazendo alguns ajustes e em breve lhe trarei a solução para o seu problema.

No entanto humildes moradores da chamada periferia da corte, satirizando as atitudes do rei se divertiam com o tal joguinho que rapidamente se tornou a febre do lugar. Porém existia uma norma para ter acesso ao jogo, era preciso fazer um pacto, jurar fidelidade. Jamais alguém da corte poderia saber do tal jogo sob pena de ser levado à forca. Era um desrespeito ao rei satirizar suas ordens, a corte tomaria a “brincadeira” como motivo de gozação, galhofa para com o rei.

Alguns meses se passaram e como era lei punir severamente quem desrespeitasse a corte, levasse infâmia, baderna etc, e também era recompensado quem denunciasse... Um tal “Joaquim Silvério dos Reis” daqueles tempos idos levou até ao rei um tabuleiro completo.

- Veja majestade o que estão fazendo com sua imagem na Vila Norte, nas fazendas, e principalmente na rua de baixo, todos se divertem com isso.

- O que significa isso? Exclamou o rei surpreso.

- Ora majestade é um tal jogo e cada peça representa suas atitudes e também parte de sua personalidade. Veja! Essas peças laterais...

- Estou vendo são torres.

- As torres que o senhor fez, lembra? Observe... Os cavalos! Esses da frente são soldados, estão querendo mudar o nome... A rainha, majestade é a privilegiada desse tal jogo. Não é uma afronta? Sim, colocaram até os bispos nesse tal jogo, se não vejamos... Quatro torres, quatro cavalos, o senhor, a rainha, os soldados, essas quatro peças só podem representar os bispos, não os caracterizaram em respeito ao Papa.

- E quem criou isso?

- Ninguém sabe, fazem segredo com medo da forca, sua majestade vai condená-los não vai?

O rei com ar de felicidade depois de entender tudo sobre o tal jogo ordenou:

- Pronto caro súdito, pode ir... Queria lhe agradecer, era isso que eu precisava.

- Mas majestade, o senhor não vai fazer nada? E minha recompensa?

- Claro vou recompensá-lo com uma barra de ouro por ter resolvido o problema que me afligia e vou fazer sim, um grande espetáculo.

O rei chamou seu principal assessor e ordenou que construísse um tabuleiro gigante (16m x 16m) quadrados pretos e brancos se alternando ( 2m x 2m) ordenou também que convocasse 32 soldados e mostrasse como era as regras caracterizando-os e com suas determinadas funções na arena, digo, tabuleiro. Sim, pediu a um dos Bispos que emprestasse uma de suas vestes (completa) para que tirasse modelos e assim foi feito.

O assessor em dificuldade para a formação do tal espetáculo interroga o rei.

–Entendi tudo, majestade, porém há um problema. Os cavalos e as torres?

-Ora bolas! Será que não cabe um cavalo em um quadrado! Dois metros! Traga cavalos brancos e pretos, mansos é claro. Quanto às torres faça de madeira e coloque os soldados mais fortes da corte para que as movimentem sem dificuldade.

Tudo pronto em seus respectivos lugares. Os soldados (peças) brancos se movimentavam sob ordem do rei que ficava em uma tribuna e no lado oposto. Os soldados (peças) pretos sob ordem da rainha que estava em uma tribuna oposta a do rei obviamente.

É chegado o grande dia. Espalhou-se por toda a região que não ia haver mais lutas... Chegava o fim dos gladiadores, surgia uma nova modalidade...Para muitos o jogo não era surpresa, para todos era uma alegria. Tanto podiam assistir quanto praticar.

Nas tardes iniciavam-se as partidas sob fortes aplausos. Torcidas brancas e pretas dividiam-se nas arquibancadas, quando eram pegas pelo tempo, os atletas, digo, as peças marcavam seus lugares para numa nova data voltarem às suas posições e terminarem a partida.

E assim o famoso rei que tinha medo da morte, morreu oferecendo uma fortuna para o criador do tal jogo e que jamais apareceu, talvez com medo da forca. Por isso que nunca se soube ao certo o nome do inventor desse instigante jogo. Terá sido o tal cientista?

Na verdade contam também que o jogo por não ser divino, Deus mostrou apenas as peças para o rei sem querer formar seu tabuleiro.

Autor: Geraldo Silva.