O exílio dos dias.

Genre: Literature & Fiction

Author: Léa Ferro

Manhã:

- Os dias não são iguais!

- E quando tudo o que se tem é o exílio dos dias?

Silêncio.

De olhos fechados pensava naquela pergunta e tentava encontrar uma resposta plausível. Já tinha consciência de parte de sua melancolia diante as palavras lidas, eram palavras que buscavam alguma esperança e traziam aos olhos, o mais claro do azul. Cores amenas trazem um pouco de sossego a alma e o azul representa a tranquilidade.

A manhã se fazia gostosa e cheia de preguiça, ainda deitada na cama deixava aquela pergunta invadir mais que seus pensamentos. Por um instante pegou-se pensando nela de forma diferente. Sorriu.

- Hum! Gemeu baixinho abraçando ao travesseiro solitário e olhando para a fotografia no porta-retrato.

Deixou-se levar pelas fantasias de uma manhã que preparava o verão e sentiu alma levitar. Uma sensação gostosa percorreu seu corpo e a respiração foi ficando profunda. Os pensamentos tinha um destino certo.

“O exílio dos dias deveria ser quebrado pela presença morena dos teus olhos... Nos meus.”

Era a resposta que deveria ter sido dada naquele final de tarde, mas guardou estes pensamentos apenas para si. Cobriu o corpo nu com o lençol fino e sentiu o perfume suave da primavera lhe embalar no sono mais uma vez. Lá fora o sol prometia mais um dia quente, mas ela não queria sair dali, queria dormir tranquilamente sem as preocupações dos dias de semana e permirtir-se ficar atoa.

Só despertou pela insistencia do estridente telefone que tocava na cabeceira de sua cama. Levantou a cabeça ainda com os olhos semi-serrados e atendeu o chato:

- Alôôô... Resmungou a voz rouca e sonolenta.

- Bom dia dorminhoca.

- Ah, o que é que tu queres? Eu estava sonhando, sabia?

- Deixa de preguiça e vamos a praia. O dia está lindo. Muito lindo.

- Então vem me buscar. Mas eu estava sonhando sua chata.

- Está bem. Eu também te adoro. Até já.

- Beijinho.

Não demorou muito para a sua animada amiga chegar e trazer barulho ao seu dia. Adorava sua amiga, conheciam-se há tantos anos que já tinham perdido as contas, mas adorava o bom e fiel silêncio das manhãs de sábado. Era o dia da semana que mais apreciava. Não fazia nada de útil. Não trabalhava, não arrumava a casa, não cozinhava, não lavava roupa, não se preocupava, não enfrentava o transito... Na verdade sábado era o dias mais útil, os outros eram apenas necessários. Coisas do mundo capitalista moderno, trabalha-se mais do que se deve e vive-se menos do que se precisa.

Achava o mundo moderno uma droga. Poesia sem nehuma rima, pintura abstrata que não dizia coisa nenhuma, ferros retorcidos em esposição, cimena sem romantismo e com muita explosão, música com apenas três versos repetidos durante quatro longos minutos, documentários sobre o trafico de drogas na tv, o telejornal preocupado com a política externa e expondo a interna no auge da desordem e livros nas prateleiras empoeiradas sobre a vida difícil e dramática das moças ricas que decidem aventurar-se nas esquinas da vida prostituindo-se.

O mundo moderno... Ei-lo. Frio e cruel matando cada vez mais a beleza da vida.

- Após a praia vamos almoçar na casa da minha mãe. Gritou da sala a sua amiga.

- Tááá. Devolveu o grito.

- Hum! Mas o que temos aqui, hein?! De escritora dramática passou a infantil? Provocou folheando seus escritos sobre o móvel da sala.

- Digamos que é apenas uma parceria agradável e desafiadora. Respondeu tirando de sua mão as páginas impressas na noite anterior.

- Literatura infantil? Tem certeza que te sentes bem? Sorriu arqueando o cenho.

- Eu não te sabia sarcástica. E sim. Me sinto infinitamente bem.

Tarde:

“As tardes também não são iguais”.

Pensava, enquanto apreciava o mar bailando na areia e beijando seus pés delicados. O sol morno aquecia e bronzeava seu corpo. Deitada na cadeira de praia, o único esforço que fazia era levantar a cabeça para beberiscar. Desligada do mundo por completo, a única coisa que a trazia para a realidade era a presença daqueles olhos escuros e manhosos. Pareciam pedir carinho, como bebe que chora pelo colo da mãe. Pensou em como seria agradável embalar aquele par de olhos e enroscar seus dedos faceiros naqueles cabelos macios.

- Vai ou não me contar sobre a tal parceria literária? Perguntou a jovem tirando os óculos escuros e ajeitando-os nos cabelos.

- Hum! Sorriu.

- “Hum” sempre significa alguma coisa, não é mesmo?! Divertiu-se.

- Não é nada do que tu estás pensando, viu! Deixa de ser danada.

- Mas não estou pensando nada. Gargalhou.

- Eu te conheço. É só uma pareceria literária, escrevemos juntas um conto infantil mais por desafio mesmo. E eu adoro desafios, tu sabe.

- Parceria literária significa que tu está começando a esquecer aquela desalmada. É, eu também te conheço.

- Bobinha. Sorriu feliz por não ter de explicar mais nada.

- Isto é bom. Muito bom. Tu merece dias melhores. Exclamou com um sorriso que vinha da alma.

“O exílio dos dias transformam-se em fragmentos”. Foi o que respondeu.

Porque tinha respondido isto? Porque sentia-se tão insegura diante ela? Porque ela lhe transmitia tanta paz? Pensava.

Paz. Fazia muito tempo que a buscava, mas não a sentia. Mesmo nos dias de maior tranquilidade não conseguia atingir a tão desejada paz. Os últimos anos de sua vida tinham sido de total desordem. Talvez tivesse dado sorte para o azar. Talvez!

A paz lhe escapava por entre os dedos como água da chuva escorre pelo rio em busca do mar. Mar, o magnífico repouso das águas e a caminhada até o oceano tinha sido muito longa. Almeijou por tanto tempo este sentimento branco dentro de si, e agora percebia ele chegar de mansinho fazendo seus dias azuis.

A tarde caia sem pressa trazendo uma brisa suave e as sensações deliciosas da estação. Adorava as flores! Todas elas, mas em especial as orquídeas. Fotografava todas que seus olhos encontravam por ai.

Deixou-se sentir o entardecer e o degustar da comida caseira na casa onde havia passado boa parte de sua infância. O cheiro do arroz tropeiro invadiu suas narinas fazendo-a soltar um suspiro, era um suspiro que expressava o melhor da saudade.

Entre lembranças e boa conversa, passou maior parte do tempo com os pensamentos perdidos na imensidão daquele olhar, do que a prestar a atenção ao que diziam. Sempre que esboçava um sorriso sua amiga fazia um comentário divertido, na verdade estava adorando vê-la serena após tanto sofrimento. Tinha acompanhado o negro de seus dias sempre com uma palavra de conforto e um abraço familiar, mas sabia que tinha de partir dela o primeiro passo para prosseguir e enterrar de uma vez por todas a tal desalmada que tanto mal lhe causava.

“Nada como um novo amor para curar as dores de um amor velho”. Repetiu infinitas vezes, mas parecia em vão, quanto mais tentava animá-la, mais a via mergulhar no fundo do poço rumo a uma depressão infinita.

“Deus é o absurdo!” Contestava sempre que uma frase colorida era colocada a sua frente tentando fazê-la abandonar toda a dor.

Era uma contestadora nata. Adorava discordar das pessoas só para ver a reação que teriam, mas naqueles dias que traziam o Outono das folhas mortas a toda e qualquer estação, não respondia apenas pelo prazer da contestação amiúde, mas porque não conseguia caminhar sem sentir os pés descalços nas ruas de pedra.

“Existem outros números entre o oito e o oitenta”. Ouvia de seus amigos, mas insistia na dor do oitenta.

Sentindo-se a última das mortais, mergulhava em dias sombrios e noites estranhas, acompanhada do bom e velho vinho tinto, onde até sua literatura transformava-se tristonha e por vezes, fria. Tentava a todo custo perdoar sua bem amada por cada uma de suas ações, mas não conseguia, não entendia e esta revolta trazia a ruína aos seus sentimentos e na fé que tinha no ser humano. Já não ousava citar o nome de Deus, achava que este, há muito tempo tinha lhe abandonado.

“As partículas são fragmentos da espera. Vivemos exiladas em nós mesmas”. Ouviu-a protestar com o olhar no extremo da melancolia.

Sentiu as palavras doerem em sua alma. Percebia que não era a única a sofrer mal de amor e pôs-se a pensar nos dias que ficavam para trás lentamente.

Noite:

As noites devolvem a melancolia sem dó.

A noite engolia o dia derramando a negritude fiel sobre a serra do mar. Em poucas horas a lua crescente iluminava o céu dando vida às estrelas. Sob o céu sem nuvens, ela caminhava rumo ao bar onde prometera reencontrar os amigos. Após os meses de casulo, agora se sentia mais segura e tranqüila para compartilhar de uma taça de vinho a beira da praia.

No bar tipicamente caiçara com cobertura de sapê e decorado com rede de pesca e variado tipo de conchas, ela permitiu-se a companhia agradável daqueles que realmente a amavam.

Acompanhava as letras de músicas como se tivesse acabado de nascer para a vida. Por mais que conhecesse de cor a música popular brasileira, parecia que tudo era novidade e cada música era cantada como se fosse à primeira vez. Seus ouvidos sentiam-se privilegiados por ter sobrevivido a tanta fúria e silêncio, falava pouco, sorria muito e mantinha o olhar fixo nas ondas do mar.

- Telefona pra ela. Sugeriu sua amiga percebendo o olhar perdido.

- Mas eu nem tenho o número. Disfarçou.

- Eu aposto que se tu realmente quiseres consegue o número. Insistiu sorrindo.

- Não sei. Sinto-me insegura e penso que seria ousadia demais da minha parte. Não sou assim. Defendeu-se.

- Hum. Então está mais do que na hora de mudar e ousar. Provocou enquanto tirava o telefone da bolsa.

- Está bem. Vou conseguir o telefone, mas ainda não estou preparada para telefonar.

- Então envia uma mensagem de texto. Se tu não enviar eu envio. Combinado?

- Está bem, está bem. Vou enviar. Parece a minha mãe, credo.

- Vê lá se deixa a melancolia de lado e seja romantica nas palavras. Sorriu.

- Boba. Retribuiu o sorriso e aceitou o telefone.

Enviou. Não esperava por resposta alguma, mas agradava-lhe a sensação de que ela soubesse de seus pensamentos naquela noite em que a magia tomava conta de seus sentimentos. Sorveu mais um gole de vinho e caminhou para a pista de dança. Pensou em como seria bom dançar com ela e vê-la soletrar a canção.

“Ela deve gostar desta música”. Pensou.

Uma gota de insegurança alojou-se em si e a noite passou de tranqüila a agitada numa fração de segundos ao pensar nas palavras que tinha enviado.

“Fiz besteira.” Pensou.

Voltou para a mesa e tentou deixar a madrugada correr. Naquele momento queria estar em casa envolta aos seus poemas e enrolada no lençol macio que forrava sua cama. Os amigos insistiram para que ficasse mais um pouco, mas decidiu ir embora quando o cantor iniciou um repertório de nostalgia e cada frase parecia ter sido escrita para si, trazendo lembranças desagradáveis do tempo da estação das folhas caídas.

“E agora que faço eu da vida sem você, você não me ensinou a lhe esquecer, você só me ensinou a lhe querer...” (Caetano Cantava)

Tentou afastar a presença insistente da melancolia enquanto caminhava para casa pela praia. Molhando os pés na água morna do mar e escrevendo um poema no vento, um daqueles poemas que jamais deveriam ir para o papel. Somente o oceano para compreender seus sentidos.

Abriu o portão e abandonou-se na rede da varanda, onde dormia quase todas as noites de verão. Ficou olhando o mar calmo cantando nas rochas a melodia da natureza, mas não conseguiu adormecer.

Fechou os olhos cansados e pensou nela, nas palavras enviadas momentos atrás, na paz que lhe transmitia. Absorveu o silêncio que a madrugada trazia e relembrou das palavras que ambas havia trocado dias anteriores. Pensava no exílio dos dias.

“A espera... Tempo, tempo, tempo, és um senhor tão bonito quanto a cara do meu filho”. Já dizia Caetano Veloso com sua voz mansa e o sorriso maroto exibindo suas covinhas bem desenhadas. Foi o que respondeu.

Silêncio.

Mas o silêncio foi quebrado com o barulho do telefone. Tirou do bolso e sorriu ao ver o nome dela na mensagem de texto. Por um breve instante tremeu. Não esperava uma resposta. Um brilho de tranqüilidade e conforto instalou-se em seus olhos, acalmou seu coração e a fez adormecer como um anjo que dorme contente na nuvem fofa de carinho.

Os dias não são iguais e o exílio dos dias é quebrado violentamente pela paz.

Hum! Suspirou. Estava sonhando tranquilamente.

Léa Ferro

SP - Dezembro 11, 2007.

Léa Ferro
Enviado por Léa Ferro em 21/04/2008
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