H.U.V.E.R.

Harold Biggs estava tão próximo da morte que sentia as pupilas pesadas. Os livros na estante da biblioteca estavam enfumaçados, e o salão na forma de um octógono, parecia girar como as hélices de um helicóptero. Mas ele não estava triste. Tampouco sentia medo pelo que fosse acontecer logo após seus olhos escurecerem, e os sons desligarem-se como se desliga o rádio. Ao contrário, ele até sentia-se feliz. Muito feliz. Finalmente poderia se beneficiar com seu próprio invento. Ele que tanto beneficiara outros mortos, em breve poderia beneficiar-se também.

Na imagem vertiginosa e circular ele ainda viu o borrão de sua enfermeira. Claudete. Morena vistosa, de ancas largas, e peitos fartos que mal se continham no sutiã. Um deleite para os olhos daquele velho sádico. No entanto naquela noite de sexta-feira não era para seus volumosos seios que Biggs olhava. Sua atenção estava voltada para as mãos da enfermeira. Bem verdade que eram mãos angelicais, que muitas vezes brincaram com as genitálias do pobre velho. Mas também não era por isso que elas eram um ponto fixo nos olhares do velho. O motivo de tanta atenção era o H.U.V.E.R.

Antes de dizer o que era o H.U.V.E.R, é minha obrigação lembrar-lhes que nem todo velho sádico apaixonado por secretárias formosas foi sempre assim. Na mocidade, Harold era um homem estudioso, com tempo apenas para as fórmulas, e uma secretária como Claudete, talvez lhe passasse despercebido. Formou-se em física com vinte e três anos, sempre em busca de sua invenção genial. No princípio não conseguiu quase nada. Na verdade não conseguiu nada. Tanto é que seu fracasso levou-o ao que menos pretendia quando começou a estudar física: dar aulas em uma escola pública.

Por alguns anos Harold Biggs tornou-se alguém triste. Um homem solitário, e afastado de todos, onde a única coisa que acontecia em sua vida era o correr lento e torturante do calendário, e quando ele despertou frente a um espelho trincado tinha quarenta anos, e uma corda na mão, com o laço já pronto para suicidar-se. Faltou-lhe apenas uma coisa para sacramentar o ato: A coragem. Ou talvez, tenha lhe sobrado o medo. Não havia nada mais que o físico temesse que a morte.

O medo de Biggs tornou-se uma obsessão, e ele não cogitava mais as cordas. Ao contrário, queria afastar-se delas. Foi quando sua vida começou a mudar. O século XXI tinha trazido muitos avanços para a ciência e para medicina, mas em menos de três décadas findaria sem trazer para os humanos qualquer resposta sobre o que lhes unia: A morte. Todos morriam, e praticamente todos acreditavam que aquilo não era o fim. Biggs discordava em partes, lhe era difícil conceber um universo paralelo, para onde iam as almas. Era fisicamente impossível.

No entanto, ele não queria morrer. Não queria descobrir o que acontecia depois que a senhora ossuda e ceifadora de vidas lhe visitasse. Mas isso seria um fato, mais dia menos, dia. Então ele debruçou-se sobre os livros, mas foi ao mero acaso depois de acabar de comer um saco de batatas fritas, e por causa do entupimento de um tubo de ensaio, onde ficou à mostra a tabela nutricional, que uma idéia começou a martelar seu cérebro de gênio. “Números”.

Seres humanos não passam de números. Códigos que se erguem biologicamente, como os códigos binários que formam o arquivo em um computador. Os números estão presentes no DNA, nas células, no cérebro... Em cada parte, inclusive nos alimentos, que não passam de números de energia consumidos por cada um de nós. Harold equacionou todos esses números, e chegou a um resultado fantástico, que preferiu manter com a nomenclatura alma, ou aura para não confundir os leigos. Esta energia invisível circula por nossos corpos, e logo Biggs notou que na morte não se perdia por completo. Esses números de energia ficavam por alguns dias concentradas, até se dispersarem na atmosfera.

Como um arquivo que você deleta para a lixeira de seu computador, mas que números binários podem reconstituí-lo, Biggs descobriu que a energia dos seres humanos ficava a disposição, semelhante a um arquivo possível de recuperação. Bastava criar algo para capturá-la. Elaborou uma estranha engenhoca capaz de ler os pontos energéticos onde se concentrava a energia dos falecidos, e como um aspirador de pó, capturava ao que muitos chamavam de alma. E assim depois de alguns insucessos chegou ao H.U.V.E.R. Human Vital Energy Restore. Um sucesso de vendas. A aliança com a US.Robot permitiu que a energia condensada e capturada fosse inserida em robôs, os quais eram carregados com todas as informações da vida dos humanos mortos, pois a energia decodificada permitia todas as lembranças vividas, e de uma forma não muito ortodoxa trazia de volta a vida a energia que se dispersaria pelo universo.

O H.U.V.E.R e os robôs tornaram rico e poderoso, o velho Biggs, cujo corpo era admirado pelo robô metálico, que era capaz de sorrir, e sentir-se feliz pela ressurreição. O velho Biggs agora controlava a máquina, por toda sua eternidade, e talvez fosse sentir saudades da sua época de ser biológico só ao acessar suas lembranças com Claudete, que auxiliava os cremadores a retirar o corpo da biblioteca. Biggs assistiu pelo olhar cibernético, sem qualquer pesar sua matéria biológica queimar no forno ardente. Não importava com isso, nem com os protestos do lado de fora do edifício, dos que temiam o desaparecimento biológico da humanidade.

Douglas Eralldo
Enviado por Douglas Eralldo em 22/03/2010
Código do texto: T2152299
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