Não existe tal lugar

Para Ricardo Luiz.

À minha frente, o deserto estendia-se vertiginosamente por milhares de parsecs. Os sóis brilhavam imponentes no céu, despejando um tom alaranjado àquela paisagem populada abundantemente com o nada em estado bruto.

Sob meus pés, a areia cinzenta parecia tentar acompanhar-me qualquer que fosse a direção que eu rumasse, mas não sei se posso dar qualquer crédito a esta afirmação, já que o sol escaldante pode ter afetado profundamente a minha capacidade de distinguir a realidade da fantasia. Ou não.

Por quantas horas eu caminhei, não faço idéia; a direção para a qual rumei também me é totalmente desconhecida, mas ao longe, não muito distante, avistei uma imensa muralha, que parecia estender-se por todo o horizonte. Por cima dos muros, imponentes edifícios erguiam-se quase tão colossais quanto a própria muralha. Apesar do tamanho, suas formas eram tranqüilizantes, construídos com uma arquitetura envolvente, a qual eu nunca vira antes, e apesar de sua aparência desgastada e morta, ainda assim pareciam novos e brilhantes.

Quando cheguei ao imenso portão de entrada, uma pessoa – que apesar da aparência humana, eu tinha certeza que não o era – estava parada, de pé, como se estivesse me esperando. Estendeu a mão, e quando retribuí o gesto, trocamos um forte aperto de mãos.

– Seja bem vindo. Imagino que esteja cansado, portanto, apressemo-nos e deixemos a conversa para depois. – disse-me o estranho com a voz mais suave que eu já ouvira. Ouvi-la era como ouvir a canção dos deuses, e causava-me tremendo bem-estar.

Apenas acenei positivamente a cabeça em resposta.

Devo confessar que toda aquela hospitalidade me era estranha, e não fosse a sede e a fome que eu sentia, eu não teria aceitado, embora aquele fosse o único local visível por todo aquele deserto. Além do mais, eu não conhecia aquele homem, ou aquela cidade.

Caminhamos por alguns minutos por uma rua larga, feita com a mesma pedra que vi na muralha. Muitas pessoas caminhavam na rua, e todas que cruzavam comigo acenavam sorridentes. A surpresa só me permitia acenar de volta.

Chegamos a uma espécie de praça, e logo sentamos em um banco. Antes que eu pudesse pronunciar qualquer palavra, outras pessoas, muito semelhantes ao meu anfitrião, prepararam uma farta mesa. Frutas de todas as cores, tamanhos e formatos, pães, geléias, queijos, sucos, e outros alimentos não identificados formavam uma vista tão agradável quanto um pôr-do-sol na praia.

Hesitei um pouco, mas não resisti e ataquei aquele banquete. Durante alguns minutos, comi e bebi sem parar, como se não houvesse amanhã.

– Onde estou? – Foi a primeira pergunta que me veio à cabeça, e a única que consegui fazer com a boca ainda cheia.

– Chamamos este lugar de lar. O lugar onde vivemos. – Ele me respondeu com aquele ar sereno que o acompanhava desde que nos encontramos.

– Mas qual o nome deste lugar? Esta cidade tem um nome, não?

– Nome? Para que nomes? Este é o nosso lar, e isso basta.

– E você, tem um nome? – Perguntei, colocando o prato de lado e levemente satisfeito com o meu pequeno banquete.

– Não. Eu sou eu, e isso basta. Todos aqui neste lugar se conhecem, não precisamos de nomes.

– Quem é você, afinal? Prefeito, presidente, assessor?

– Não temos este tipo de estrutura aqui. Ao longo dos séculos, ficou comprovado que este excesso de hierarquias é falho e totalmente prejudicial à ordem. Este sistema foi um dos motivos do colapso da sua civilização.

Enquanto eu pensava sobre o que o estranho sem nome acabara de me dizer, peguei-me surpreso com uma das frases que ele disse. “Ao longo dos séculos”.

– Em que ano estamos? – Eu estava quase gritando quando fiz esta pergunta.

– Não sabemos. O tempo parou de ser contado. Não existe utilidade prática para isso.

Eu parei, perplexo. Não conseguia imaginar uma civilização que não contasse o tempo. E tentei argumentar:

– Em minha civilização, tudo é baseado no tempo. Sem ele, acho que entraríamos em colapso.

– Na verdade, entrou em colapso. Mas o tempo não teve nada a ver com isso. Não se pode basear uma civilização em algo não confiável. Um cientista chamado Einstein, que viveu no século XX, se não me engano, provou que o tempo é relativo. Como seria possível viver baseando-se em algo que não é uniforme? – Aquele estranho sorriso nunca abandonava o rosto do estranho.

A última resposta me fez pensar mais uma vez. E antes que ele pudesse continuar, perguntei:

– O que você quer dizer com “entrou em colapso”? Você não está falando da raça humana, está? E por que você fala do século XX como algo longínquo?

– Já que você perguntou, eu respondo. De fato, eu falo da raça humana, aquela da qual você é proveniente. Ela entrou em colapso em algum ponto do século XXI. Mas era esperado, dado o nível de desenvolvimento de vocês. – Estas palavras foram ditas com ar de desdém, o que me deixou um pouco desconfortável e ofendido. Ele fez uma pausa, e continuou: – Este deserto é o que restou do planeta terra, eu acho.

Naquele momento, eu não podia acreditar no que eu estava ouvindo. Eu estava mais curioso para saber sobre o fim da raça humana do que como eu havia parado ali. E prossegui:

– Como a raça humana foi extinta? Guerra nuclear?

– Longe disso. – Ele respondeu, agora rindo – É verdade que uma guerra nuclear dizimou parte da população mundial, mas não foi o suficiente para destruir o planeta. Por mais destruído que ele já estivesse antes da guerra, ela serviu apenas para esgotar o arsenal e eliminar grande parte da população. Não tenho muitos detalhes em mente, mas sei que, no final, a população restante acabou se matando com paus e pedras. – Quando terminou a frase, foi a primeira vez que vi seu semblante mudar. – Irônico, não acha? Grande evolução tecnológica, para no final matarem-se uns aos outros usando os artefatos que seus ancestrais usavam quando ainda eram quase macacos. Revertere ad locum tuum.

– E como vocês estão aqui? Vocês não são humanos, são?

– Não exatamente. Somos parecidos com vocês, mas, desculpe-me a comparação, somos mais evoluídos.

– O que os tornam mais evoluídos? O fato de não terem estruturas de poder? – Devo admitir que senti-me ofendido com a comparação, por mais que não fosse a intenção dele.

– Este é um dos pontos, mas não é o único. Nós chegamos a um estágio aonde não precisamos de líderes. Somos auto-suficientes. Pra que preciso de alguém dizendo o que fazer, ou que tome decisões que ele julgue ser melhor, se todos nós sabemos exatamente o que é melhor para todos nós? É redundante e passível de conflitos. Além disso, somos capazes de viver somente com aquilo que precisamos, nada mais, nada menos. E também produzimos tudo o que precisamos. Se alguém precisa de algo que não tem, alguém com certeza ceder-lhe-á, já que podemos fazer outro. Com isso cortamos também a redundância da moeda, tão comum em sua época e também causadora de conflitos. Mas observe que também não fazemos as coisas na base da troca. Nós simplesmente damos o que os outros precisam. Você, por exemplo, precisava de comida e bebida.

– Entendo o seu ponto, mas, e se alguém quiser mais do que precisa? Não existe nenhum mecanismo que impeça isso?

– Pra que alguém iria querer mais do que precisa? Não ostentamos aqui. Pelo contrário, a pessoa que produz mais do que precisa logo se desfaz de tudo, mesmo que tenha que jogar no lixo. É um pouco, digamos, fora do comum, a pessoa ter muita coisa. Como todos tem o que precisam, ninguém rouba.

– Isto é uma utopia. Não consigo acreditar que uma sociedade consiga durar muito tempo assim, sem líderes, sem posses.

– Considerando que você viveu toda sua vida em uma sociedade assim, realmente é difícil acreditar que não é possível. Eu me coloco na mesma posição, até hoje não entendo porque as pessoas precisavam de tanto, de líderes, de entidades para adorar. A divergência de opiniões causa conflitos.

– Acho que a falta de coisas para fazer causa conflitos.

– Nunca ficamos sem ter o que fazer. Normalmente estamos ocupados cuidando de nossos filhos, esposas e esposos. Passamos nosso tempo conversando, convivendo.

– Isso ainda me soa utópico. Acho que a minha civilização não teria entrado em colapso se fossemos assim.

– Não teria, mas para os humanos é impossível viver assim. Não existe qualquer mecanismo dentro de vocês que iniba a agressão ritualizada. Sem isso, não há como garantir a preservação da espécie. – Ele fez uma pausa, e continuou: – Agora você precisa ir.

– Como preciso ir? Pensei que vocês eram solidários! – Perguntei quase gritando, e sentindo uma leve tristeza por ter que deixar aquele lugar.

– Isso acontece com alguma freqüência por aqui. Viajantes da sua era aparecem por aqui. Alguma anomalia no espaço-tempo. No começo, tínhamos a esperança que, ao voltar, talvez vocês pudessem fazer algo pela sua civilização e evitar sua autodestruição, mas depois de algumas centenas de visitas, desistimos. Só espero que você não sofra.

Ficamos um longo tempo nos olhando. Eu ainda não conseguia acreditar que pudesse existir uma sociedade utópica como aquela. Por um momento, fiquei sem palavras, sem perguntas. Limitei-me a olhar as pessoas à minha volta, sempre sorrindo, como se a vida fosse simplesmente maravilhosa; na verdade, é bem provável que a vida daquelas pessoas fosse maravilhosa. Eu era um estranho naquele lugar, o animal, a besta irracional sedenta por posses e por sangue.

Continuei sentado no banco, enquanto o estranho sem-nome se afastava. Ele já sabia que eu sumiria em alguns instantes, mas, apesar do que ele disse, eu ainda tinha alguma esperança que algo falhasse e pudesse continuar ali, vivendo aquele sonho utópico. À medida que aquela visão foi sumindo, a cidade desaparecendo diante dos meus olhos, encontrei-me de volta ao meu habitat, à minha selva, à minha jaula. Foi então que eu percebi que aquilo era realmente uma utopia, um sonho distante. Foi então que eu percebi que não pode existir tal lugar.